Guilhermina
Guilhermina
Guilhermina era uma mulher de 65 anos,
mas com uma aparência de 80.
Não que tivesse cabelos brancos, rugas,
a pele ou o corpo maltratado, antes pelo contrário, tinha um porte atlético,
uns cabelos pretos, curtos, e uma pele que de pouco sol apanhar se mantinha com
um ar juvenil.
Era o seu ar, a sua aparência no
vestuário, o modo como baixava a cabeça, triste, quando se cruzava com alguém
que a faziam parecer ter mais idade do que tinha.
Na verdade Guilhermina nem sempre fora
assim.
Ela já tivera 10 anos, 15 anos, 20 anos
e como todas as moças daquelas idades tinha um fogo dentro de si, uma
curiosidade enorme acerca do que a rodeava, uma vontade enorme de rir e de
amar.
Mas, infelizmente para ela, Guilhermina
era filha única de uns pais cuja mentalidade aldeã tinha ficado parada no
tempo. E foi com essa mentalidade que criaram e condicionaram toda a vida de
uma Guilhermina sonhadora que adorava poder sair da gaiola, viajar, conhecer
mundos.
- Viajar? Respondia-lhe a mãe sempre que
ela tocava no assunto.
- Mas nós viajamos todos os anos. Tens
de te dar por muito feliz por poderes ir para o campo, mudar de ares. – Dizia,
referindo-se as viagens que faziam à terra por ocasião das colheitas.
Depois, encerrando o assunto, virava as costas
e terminava alguma tarefa que era sempre mais importante do que ouvir os sonhos
de uma miúda.
- Viajar? -
Respondia-lhe o pai sempre que ela abordava esse assunto. - Viajar é para gente
rica que não precisa de trabalhar para pôr o pão na mesa
Como Guilhermina sonhava ser rica.
-Ser rica? - Diziam lhe ambos.
- Isso só traz doenças e vícios. Estuda.
Constrói o teu futuro, foi para isso que viemos da terra. Para que possas ter
uma vida melhor que a nossa. Para que encontres um bom marido e tenhas uma
família. Isso sim é que é riqueza.
E Guilhermina foi enterrando os seus
sonhos, os seus desejos, o seu fogo.
Tal como os pais queriam, estudou. Acabou o
liceu e os pais escolheram, para ela, a universidade de agronomia para que
tirasse um curso e arranjasse um bom marido que lhe permitisse regressar à
terra e explorar as terras da família que cada vez mais estavam ao abandono.
Guilhermina, obediente e boa filha,
acabou o curso e ao contrário dos outros colegas não ria. Não festejava.
Havia, porém, no seu curso, um professor
muito dedicado aos seus alunos. Para ele estes eram quase os filhos que não
tivera, e apercebendo-se do desgosto que a esperava, ir definhar numa terra sem
perspetivas, conseguiu convencer os pais a deixaram-na entrar para os quadros
do ensino. Sempre era um trabalho mais digno, mais bem pago e mais seguro para
o seu futuro.
- Mas e as terras? - Diziam os pais?
- As terras logo se veem, quando ela
arranjar um marido. - Respondia ele com um ar bonacheirão, mas algo firme.
O tempo foi passando e não aparecia
nenhum marido. Não aparecia nenhum marido que agradasse a Guilhermina, que
queria conhecer mais da vida antes de se enterrar na aldeia. Queria viajar.
No entanto, de nada lhe serviu dizer que
agora que era independente financeiramente que podia, que queria fazer uma
viagem.
- Não! Nem pensar. Viajar sozinha? Onde
já se vira uma coisa dessas? Se ainda fosse com o marido...
A
pressão era muita e Guilhermina acabou por ceder. Era uma boa filha, obediente,
e por isso lá arranjou um marido, um bom marido segundo os critérios dos pais,
um bom marido segundo a comparação com os maridos das amigas. Um bom marido
segundo os critérios da época.
Sim, de facto Paulo era um bom marido.
Amava-a, respeitava- a, fazia-lhe todas as vontades. Bem, quase todas. Havia
uma que ele não fazia. Não viajava com ela e nem a deixava viajar.
Guilhermina ainda tentou, lutou,
negociou, mas o melhor que conseguiu foi não ir para a terra.
Não viajaria, mas também não se iria
enfiar num buraco. Isso não! E Paulo concordou.
Os pais muito contrariados amuaram, mas nada
podiam fazer. Ela já não lhes pertencia.
Foi então que tudo mudou. Um belo Dia
Guilhermina descobriu que estava grávida. A alegria foi enorme. Os pais
esqueceram os amuos. Paulo tornou-se mais carinhoso e Guilhermina pôs de lado a
ideia de viajar.
A
gravidez foi uma gravidez santa, sem enjoos, dores ou grandes cansaços que a
impedissem de realizar as tarefas do dia a dia, nada daquelas gravidezes
típicas da altura, de que era exemplo a da sua amiga Ana que passou a gravidez
sentada no jardim da casa por sofrer de enjoos e de um cansaço extremo.
Guilhermina, não. Ela não era assim.
O tempo passou a correr e com tanto que
preparar nunca mais ninguém falou em viagens, nem sequer para a terra.
Chegou o dia do nascimento e em vez de
um…vieram dois.
Um menino e uma menina. Manuel e Clara.
Ninguém cabia em si, de tão contentes que estavam, embora essa alegria pouco
durasse.
Aconteceu que Paulo sofreu um acidente fatal,
atropelado, por um condutor embriagado, quando os gémeos tinham apenas 6 meses,
e… Guilhermina ficou mais uma vez sob o jugo dos pais.
Ela precisava deles. Tinha dois filhos
pequenos para criar, e embora trabalhasse, só o seu ordenado não chegava para
os sustentar. Só o seu ordenado não lhe permitia pagar a creches que na altura
além de raras eram muto caras, não chegava para os vestir, para pôr comida na
mesa e para pagar a renda.
O que faria sem a ajuda dos pais? Mais
uma vez, foi viver com eles.
A
vida caminhou e os miúdos foram crescendo, os pais envelhecendo e Guilhermina
envelhecendo juntamente com eles.
Manuel tirou um curso de engenharia e
foi trabalhar para Inglaterra.
Talvez agora o possa ir ver, esperançou
-se Guilhermina, mas quando estava com as malas feitas e o bilhete na mão o pai
teve um AVC e ... Mais uma vez ficou em terra.
- Desisto! - Disse para si. Nunca mais me
permitirei sonhar.
Clara, entretanto, casou-se com um
colega de faculdade e teve também gêmeos. Duas meninas, Maria Inês e Maria
Leonor. Tão lindas, tão traquinas tão cheias de vida. Como contrastavam com o
ambiente pesado que se vivia em casa da avó.
As gémeas eram o escape de Guilhermina
que entre cuidar da mãe e do pai, e trabalhar, pouco tinha que a alegrasse.
A vida era madrasta para ela pensava.
Porquê? Porque lhe acontecia tudo
aquilo? Quem lhe dera... Mas não, já não ousava sequer pensar no assunto.
Quando as gêmeas fizeram 4 anos morreu o pai
de Guilhermina. Já não estava consciente há muito, pelo que os médicos diziam
que fora o melhor que acontecera. Que
ele não sofrera, que não se apercebera da morte nem tivera dores. Fora uma
bênção, Deus ter-se lembrado dele.
Quem não ficou conformado com isto foi a
mãe dela, que desde o dia a seguir ao funeral “caiu” à cama e nunca mais se
levantou, nem falou, até ao dia da sua morte, exatamente 1 ano depois.
Era por tudo isto que Guilhermina
parecia ter mais 20 anos do que na realidade tinha. Era por tudo isto que
Guilhermina baixava a cabeça quando encontrava alguém. Ela não se permitia
sonhar, não se permitia sentir.
Exceto quando estava com as netas. Aí
ela transformava -se, e as 3 juntas brincavam, sonhavam e viajavam para mundos
longínquos onde ninguém as podia alcançar.
Foi numa sexta feira, à noite, quando se
sentou em frente ao computador para ver se tinha alguma mensagem do seu filho,
que Guilhermina recebeu um Mail do seu chefe de gabinete.
O instituto tinha necessidade de reduzir
custos e ele estava a propor-lhe a reforma antecipada. Em anexo seguia a
proposta para ela analisar.
Guilhermina ficou sem palavras.
O palerma nem sequer tivera a hombridade
de falar com ela pessoalmente? Era mesmo cobarde.
Enviar-lhe a proposta por Mail?! Isso
seria sequer constitucional? E o que deveria fazer? Aceitar? Ou rejeitar?
Estava neste dilema quando Maria Inês
lhe telefonou. Agora com 20 anos ela era a mais parecida e a mais próxima da
avó.
Guilhermina contou-lhe o que acabara de
acontecer. Maria Inês refletiu um pouco e disse-lhe.
- Se o corte na reforma não for muito
grande, aproveita. Aproveita e vive a tua vida livre pela primeira vez. Realiza
os teus sonhos. – Incentivou-a no seu tom de voz animador.
- Guilhermina riu-se – Era mesmo à Maria
Inês. E, após falar mais um pouco desligou o telefone.
Adorava as netas, mas a Maria Inês era
especial. Era um doce. Via sempre um lado bom em tudo.
Foi para a cozinha, preparou o jantar e
sentou-se a comer em frente à televisão.
O telejornal já tinha acabado pelo que
ia fazendo zapping com o comando enquanto comia.
Estava já a levantar a mesa e a pôr a
loiça na máquina quando algo na televisão lhe chamou a atenção.
O apresentador falava de uma aldeia no
interior da China que havia sido descoberta há pouco tempo e cujos habitantes
estavam literalmente a viver no passado.
Naquela aldeia perdida no meio das
montanhas o tempo não tinha por lá passado e eles continuavam com os costumes
de há 200 anos.
Guilhermina largou tudo e pôs ao som
mais alto.
Todo o fogo de viajar que estava apagado
reacendeu e foi ali que ela tomou a decisão. Iria aceitar a reforma e iria
viajar. Sozinha!
Nessa noite mal dormiu.
Sonhou que apanhava o avião para um país
e que o avião caía. Depois apanhava um comboio para uma viagem pela Europa e o
comboio levava-a a África. Depois estava nos Pirenéus a fazer o “Caminho de
Santiago” a pé. Enfim, uma série de medos e de aventuras e de desejos
reprimidos vieram ao seu sonho misturando-se todos, confundindo-se,
confundindo-a.
De manhã imprimiu a proposta e ligou
para Ana, a sua amiga que se tornara numa advogada do sindicato.
Foi ter com ela e juntas analisaram-na.
Chegaram à conclusão que tirando um ou outro item que teria de negociar com o
seu chefe, estava bastante aceitável. Estava decido. Segunda feira, iria dar
início ao processo.
Na segunda feira chegou ao trabalho de
cabeça erguida.
Trazia um ar mais leve e uma
determinação no rosto que não passou despercebida a ninguém. Dirigiu-se ao
gabinete do seu chefe e com um ar de superioridade, disse-lhe que aceitaria a
proposta mediante certas condições.
O seu chefe arregalou os olhos e abriu a
boca. Mas não emitiu nenhum som. Não estava à espera. Não estava habituado. Não
sabia como reagir.
Negociações feitas, Guilhermina saiu
feliz.
A reforma teria efeito imediato, ela
tinha-o exigido e ele com medo que ela mudasse de ideias aceitou. Batendo a
porta suavemente, saiu e dirigiu-se ao seu gabinete e deu as boas novas
enquanto arrumava as coisas.
Sim, ela apareceria de vez em quando
para dar notícias, combinariam almoços. A vez deles também não tardaria muito.
Enfim, toda uma série de frase feitas foram ditas. Algumas sentidas, outras
não.
Guilhermina tinha pena de deixar o seu
trabalho, fora ali que muitas vezes procurara refúgio quando as coisas em casa
se tornavam difíceis, mas por outro lado sentia-se eufórica. Sentia-se livre.
Mal saiu da faculdade ligou para a neta.
Queria a sua ajuda. Queria ir a uma agência de viagens marcar uma grande
viagem, e queria que fosse com ela. Seria possível?
- Claro que sim. – Prontificou-se de imediato. – Vem
ter comigo. Aqui ao lado do meu trabalho há uma e eu conheço as moças de lá.
Vamos lá à hora de almoço.
- Inês? - Disse ainda Guilhermina antes de desligar.
-Sim? - respondeu Inês do outro lado
-Podes guardar segredo?
Inês riu-se. – Claro que sim avó. Sabes bem que podes
contar comigo. E desligou.
Guilhermina queria ir à China, queria ver aquela
cidade de que ouvira
falar, mas Maria Inês e a agente lá a convenceram a
começar pela Europa.
Viajaria sozinha, coisa a que não estava habituada, e
assim, qualquer coisa que acontecesse sempre seria mais fácil de socorrer.
Ela acabou por aceitar.
Iria a Madrid depois a Paris e depois a Roma. Para
começar não estava mal. O que lhe parecia? Além disso era melhor ir num pequeno
grupo, para começar. Diziam.
A ela
sabia-lhe a pouco, queria ir mais longe, queria ir sozinha, mas achou que
tinham razão. Para começar era melhor assim. Marcaram as passagens, os hotéis e
os museus e teatros a visitar.
Partira na próxima segunda feira. Tinha de estar no
aeroporto às 6.00 da manhã.
Guilhermina
mal cabia em si de contente. Parecia uma miúda.
-Tens
de ir comprar roupa nova. – Disse-lhe Maria Inês assim que saíram da agência. E
malas de viagem. Sim, - Afirmou perante o seu ar de espanto
- Não vais
viajar com roupas da tua avó.
- E
não, não vais sozinha às compras. Eu não confio em ti. Vais para casa organizar
as coisas e às 18.00 vens aqui ter outra vez e vamos as duas às compras. Sempre
aproveito e compro qualquer coisita para mim- Piscou o olho e deu-lhe um
beijinho na cara.
- Até
logo e não te atrases – Advertiu-a entrando para o edifício do seu trabalho.
Guilhermina
não foi para casa. Não lhe apetecia estar fechada. Agora que experimentara um
pouquinho de liberdade não se iria trancar em casa.
Foi até ao rio
e sentou-se numa esplanada. Pediu um sumo e deixou-se ficar a observar o
movimento, as crianças, os animais com os donos, os turistas, a vida…
Chegou
a hora das compras e aí foram elas. Divertiram-se imenso, criticando os gostos
uma da outra, experimentando várias roupas e vários estilos. No fim lá
acertaram num que agradou a ambas.
- Porque
queres guardar segredo disto? - Perguntou-lhe a neta quando se sentaram para
jantar, cheias de sacos e algumas bolhas nos pés.
- Porque
quero ser eu a contar. – Respondeu. E em parte era verdade, a verdadeira razão era
a de ter medo que ao contar algo acontecesse que a impedisse de ir…. Desta vez
iria jogar pelo seguro.
Quando
no domingo disse aos filhos que iria estar três semanas fora, a viajar, “caiu o
Carmo e a Trindade”
- E o
teu emprego?
- Estou
reformada.
- Reformada?
Desde quando?
- Desde
há uma semana.
- E
não disseste nada?
-Não.
- Vais
com quem?
- Vou
sozinha.
- Como?
- Sozinha.
- Não
achas que é perigoso?
- Não.
- E se
te acontece alguma coisa?
- Resolvo.
- E o
dinheiro? Achas bem gastares as tuas poupanças nisto?
- Acho.
- Estás
diferente. Estás doente?
- Estou
livre. – Respondeu, e desligou o telefone.
A adrenalina percorreu-lhe todo o corpo. Agora que
estava quase a partir sentia a coragem a ir embora, e se eles tivessem razão. E
se acontecesse algo? O melhor era desistir.
E foi
o que disse a Maria Inês quando esta a foi buscar na madrugada de segunda-feira.
- Estás
louca? Desistir? É que nem penses. – Ralhava-lhe meigamente ela enquanto lhe
arrancava as malas da mão e a levava para o elevador.
- Vá,
vamos. Já estamos em cima da hora. Não faças fitas. Vamos.
Chegaram
ao aeroporto e procuraram pela Sra. da agência.
Ela estava ao fundo, junto às escadas rolantes perto
da zona de embarque com um grupo de pessoas à sua volta. Avistou-as e fez-lhe
sinal para que se aproximassem.
Quando chegaram, Guilhermina sentiu uma batida forte
no coração. Ao lado da agente, de costas estava um homem que lhe parecia
familiar. Não podia ser, mas ela deixou escapar.
- Paulo?
– E o homem voltou-se. E sorriu. Estendendo-lhe a mão disse-lhe:
- Muito
Prazer. Sou o Paulo, o vosso guia durante esta viagem. E a Sra. é a
Guilhermina? – Disse consultando um bloco que tinha nas mãos.
-Sim.
– Gaguejou ela. Não era o seu Paulo claro, mas o seu coração não parava de
bater. Tudo nela acordou. A vida reapareceu.
- Já
fez o check – in? – Perguntou ele.
- Não-
respondeu.
- Então,
permita-me que a acompanhe. – E dando-lhe o braço partiram os dois….
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