Alice 10

 

 A tensão entre os dois era palpável.

Ela observava-o, olhava-o desafiante. Tentava avaliar o que ele quereria.

Ele olhava-a como fêmea. Sentia-se aprisionado naqueles olhos, paralisado por aquela atitude. Estava habituado a intimidar não a sentir-se intimidado. Bem, intimidado não seria a palavra mais apropriada, mas sentia-se incomodado. Por um lado, sentia-se atraído pela força que ela emanava, por outro lado sentia que tinha de se controlar, não podia perder o raciocínio. Estava ali para averiguar. Tinha que ser objetivo. Mas, caramba...

Alice foi, mais uma vez, a primeira a quebrar o silêncio.

- Já soube que está aqui para averiguar a morte de D Augusta.  – “Disparou”.

- Só não percebo o que faz aqui em minha casa.

Carlos estava impressionado. Não era só o porte, era a linguagem e a frontalidade.

Puxa! Ficou atrapalhado. Coisa que não lhe acontecia desde os seus tempos de caloiro.

Resolveu usar de franqueza também. Até porque desconfiava que dificilmente a enganaria, mesmo que tentasse.

- Sim. É verdade. Estou aqui para tentar perceber o que se passou, se é que se passou alguma coisa, com a morte dessa senhora.  - Carlos falou num tom amável, mas firme.  - E a razão pela qual aqui estou, a falar consigo, é porque me disseram que era íntima da família, e que nos últimos tempos passou muito tempo com a referida senhora...

- Sim. É correto. Mas continuo sem perceber o que aqui faz.

Carlos bebeu um gole de água.

- Bem, na verdade quero perguntar-lhe se notou algo de estranho nessas visitas.

- Estranho? Estranho, como? Não estou a perceber. -  Alice sentia crescer dentro dela uma indignação.

- Não sei se sabe, mas foram encontrados alguns sinais pouco usuais no corpo de D. Augusta. E a sua filha, a dona Lurdes, bem como a sua amiga - Aqui Carlos consultou um bloco de notas. - A Sra. Olinda - Disse após uma pequena pausa. - Afirmaram que ela não se sentia bem, que só se alimentava a chás…

- E? – Alice arrumou um prato que estava na bancada, virando-lhe as costas.

- E esses chás teriam sido fornecidos pela senhora.

- O quê?  - Alice estava indignada, aliás, estava possessa.

Como é que aquele homem se atrevia a insinuar alguma coisa?

No entanto não o demonstrava, ou melhor não o fazia na voz, mas os seus olhos, os seus olhos castanhos e expressivos não deixavam dúvidas em relação ao que sentia.

- Desculpe-me - Pediu com um ar altivo.  - Explique-me como se eu fosse muito burra. O que é que eu tenho a ver com tudo isso?

-  Quer saber se vi alguma coisa fora do normal? Vi. Vi que a D. Augusta de repente começou a ter dores de estômago, a sentir-se prostrada, a queixar-se de tudo e de todos. Agora porquê? Não sei. Se lhe dei chás? Sim dei. Como dou a toda a aldeia, e que eu saiba todos estão vivos e de boa saúde!!!

Carlos tentou acalmá-la. Não a estava a acusar de nada. Estava apenas a fazer o seu trabalho. A tentar perceber o que se tinha passado. Não sabia bem porquê, mas sentia uma necessidade de se justificar.

Ela virou-lhe a cara e cerrou os lábios. Ele percebeu que naquele momento não conseguiria mais nenhuma informação, e como não estava ali oficialmente, resolveu retirar-se.

Levantou-se. Dirigiu-se ao lava-loiça, lavou o copo e olhando-a bem nos olhos despediu-se.

Em breve voltaria a falar com ela.

Alice não lhe respondeu. Estendeu o braço indicando-lhe a primazia e seguiu-o até à porta da rua.

- Não lhe faltava mais nada! - Pensava.

Já na rua, Carlos pensava.

Não poderia ser Alice. Aquele tipo de crime não condizia com ela. Além do mais tudo apontava para ela e daquilo que tivera oportunidade de se aperceber, Alice era inteligente. Se quisesse cometer algum crime não deixaria indícios assim espalhados. Não. Alguém a queria incriminar. Mas quem? E porquê? Aliás, houvera de facto algum crime?

Ato contínuo pegou no telefone.

- Estou? Então estás bom?

- Sim, tudo a caminhar, e tu? Como estás?  Como vão as coisas por aí?

- Um pouco confusas. Já sabes alguma coisa das amostras?

- Não, pá. Só para a semana. Aguentas-te aí mais uns dias?

- Que remédio… Belas férias. Podia estar na praia e estou para aqui enfiado. – Lamuriou-se Carlos com um ar de enfado. -  Só tu é que me fazes destas!

- Deixa lá. Não estás na praia, mas estás nas montanhas, é turismo na mesma. E além disso tu não consegues estar de papo para o ar.…

- “Try me” – Desafiou-o Carlos.

Despediram-se e Carlos foi para a casa da Sra. Margarida onde alugara o quarto.

A Sra. Margarida, assim que o viu chegar, perguntou-lhe se estava bem acomodado, se tudo estava a seu gosto e se iria ali jantar, ou se jantaria fora. Carlos estava cansado. A viagem tinha sido longa e o facto de não ter nada concreto irritava-o. Decidiu ficar. Perguntou o que seria o jantar.

- Chanfana de cabrito. - Disse-lhe D. Margarida.

- Boa! - Pensou Carlos, e de repente sentiu-se esfomeado.

As 19.00h sentou-se à mesa.

Juntamente com ele estavam o marido de Margarida à cabeceira, Margarida à sua direita e os três filhos homens sentados ao lado da mãe.

Carlos estava em frente a Margarida, do lado esquerdo do patriarca.

O pai deu a oração de agradecimento pelos alimentos e a refeição começou. No início a conversa era forçada, saía aos poucos, da boca de Margarida, mas pouco a pouco, as barreiras foram-se quebrando e Carlos acabou por ter uma refeição bem agradável.

A conversa variou entre os costumes da cidade e os costumes da terra, e Carlos aproveitou para perceber melhor aquela coisa de as filhas terem de ficar a tomar conta da mãe.

D. Margarida era contra este costume, assim como o seu marido, mas os seus filhos, uma geração mais nova, estranhamente eram a favor.

Foi então que falaram de Lurdes e de Alice, e Carlos ficou a conhecer e a admirar mais um pouco a Alice

 A opinião geral da aldeia era a de que Alice não fora feita para viver ali. Quando o professor lá estivera, ensinara-a a pensar e dizia que ela tinha capacidade para ser Sra. da farmácia. Quisera mesmo levá-la com ele, mas a família não tinha deixado.

Alice, naquela época, vivia enfiada na escola, e quando não estava na escola era vê-la com os livros na mão, livros grandes e pesados.

- De medicina. - Diziam.

Depois o professor teve de partir. Veio uma professora em seu lugar e as coisas já não foram as mesmas. Alice tinha sofrido muito com esta partida, mas levantara a cabeça e continuava a sua vida. Sem demonstrar rancores e sem se meter em confusões como muitas se metiam.

Lurdes era a sua melhor amiga. Quem as queria ver, era ir a casa de uma ou de outra, até que aparecera Olinda. Aí as coisas mudaram. Lurdes andava sempre com Olinda que era uma estouvada e metia-lhe coisas na cabeça.

Tinha mudado de comportamento, andava sempre na vila, a mãe tinha ficado sozinha. Se não fosse Alice, teria morrido mais cedo.

- Como assim? -  Carlos aguçou os ouvidos.

- Então, enquanto Lurdes andava de cabeça virada com a outra, de um lado para o outro era Alice quem fazia companhia à sua mãe, muitas vezes até era ela que lhe dava o almoço que as outras até se esqueciam...

As coisas não estavam fáceis para Alice. Tudo apontava para ela, mas faltava o motivo.

Porque mataria ela a mãe de Lurdes? Aliás quem beneficiaria com a morte da Sra. era única e exclusivamente Lurdes que ficava liberta.

Que confusão!  Alice tinha os meios e as oportunidades, Lurdes tinha os motivos. Conseguia colocar Alice no local do crime, mas não lhe conseguia atribuir um motivo, e além disso havia algo nele que lhe dizia que Alice não era uma assassina. Nada fazia sentido...



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