A promessa 1
Júlia
era uma mulher feliz.
Solteira
e boa rapariga, como diz o povo, vivia em Inglaterra, na região de Mid Sommer,
numa pequena vila onde trabalhava numa livraria.
Adorava
o seu emprego, os seus amigos e a sua vida.
Estes
e os clientes preenchiam os seus dias, já que os seus familiares tinham ficado
em Portugal, o país onde nascera, e onde vivera até aos seus 25 anos, altura em
que devido a uma crise económica que o seu país atravessou, se viu forçada a
emigrar.
Reclamava
apenas de uma coisa.
Do
tempo.
Do
tempo físico e do tempo cronológico, já que lhe fazia falta o sol, e as horas
que os dias tinham não lhe chegavam para ela fazer tudo o que gostava.
Sentia
a falta do aconchego do calor, das tardes de verão, do nosso sol, mas colmatava
as saudades com o trabalho e os amigos, e se o dia tivesse mais horas, como às
vezes pedia, passá-las-ia no trabalho, na livraria.
Estranham?
Vou
explicar:
É que
esta livraria não era uma livraria como as outras.
Sendo uma
loja de bairro, e situada no rés-do chão de uma típica cottage inglesa, tinha à
frente das suas janelas com vidros isabelinos, um pátio com mesas e bancos de
madeira, que debaixo de uns carvalhos centenários e frondosos, tornavam-se, nas
tardes amenas, no poiso habitual dos clientes e empregados, que reunidos, ali
faziam tertúlias acerca de tudo e de nada tendo como base um livro escolhido
por eles.
Formavam
uma espécie de clube a que nunca ninguém se lembrou de nomear, talvez porque
fossem poucas as regras, e os “membros” irregulares.
Cada
semana um escolhia o livro para ser debatido na semana seguinte.
Era
muito engraçado porque juntava homens e mulheres de todas as idades, que sem
temas pré-definidos e sem regras que não a do respeito mútuo, debatiam ideias,
conceitos, ou apenas cavaqueavam sobre um tema que o livro escolhido fazia vir
ao de cima
Não havia
horários, nem lugares fixos.
Bastava
que um ou dois se sentassem, para que pouco a pouco, outros se lhes juntassem e
a tertúlia começasse.
Era
tão bom…
Também
ali, na livraria, as regras do comércio dos livros eram diferentes das dos
outros sítios.
Naquela
loja, os clientes podiam, além de comprar livros, levar para casa aqueles que
não conseguiam ou queriam adquirir, desde que depois os devolvessem em
condições de serem usados por outros, (como numa biblioteca comunitária), ou
podiam simplesmente sentarem-se ali a ler, pagando as leituras com um serviço prestado
à livraria.
Podia
ser qualquer serviço de que ela necessitasse. Qualquer um servia como forma de
pagamento, como tratar do pátio, ou do telhado, ou uma janela, ou qualquer
outro arranjo na casa, e sendo o edifício, um edifício centenário, arranjos e
clientes era coisa que não faltava.
Assim,
era frequente ver naquela loja, além dos empregados e clientes ditos normais,
um ou outro cliente, habilidoso em trabalhos e pequenos serviços, de ferramenta
na mão a prestar um trabalho como pagamento de um livro lido e devolvido em
boas condições.
Uma das
clientes habituais, uma das clientes ditas normais, era uma senhora, de 53
anos, professora universitária de filosofia, com quem Júlia tinha uma relação
especial.
Chamava-se
Hellen.
Sem
filhos, ela via em Júlia, a filha que nunca tivera e em quem depôs as suas
esperanças para que fazendo a sua parte, ela tornasse este mundo um pouco
melhor.
Hellen,
era casada com um engenheiro, mais novo que ela 5 anos, que, e embora, não
sendo dado a sentimentos, adorava a sua “cabecinha na Lua”.
Chamava-se
James.
James,
não a compreendia na sua maneira “complicada” de ver as coisas, nem era capaz de
ler “nas entrelinhas”, como ela lhe estava sempre a dizer para fazer, a ele, que
era tão simples e direto, mas amava-a e isso era tudo o que realmente importava
para ele.
E para
ela também… Eram felizes os dois.
De vez
em quando, ele também ia à livraria, escolher um ou outro livro sobre a sua
formação ou sobre historia tema acerca do qual tinha um interesse especial, e
ficava um bocadinho a assistir de longe às tertúlias, e embora se recusasse a
participar nelas, gostava de os observar e ao seu entusiamo ao discutirem um ou
outro assunto.
Já Hellen,
ia à livraria todas as terças e quintas feiras sem falta.
Ia
para comprar ou devolver um ou outro livro, mas ia sobretudo para estar com
Júlia, com quem tinha grandes debates, pois Júlia com os seus 30 anos não
conseguia ver as coisas da mesma forma que ela, e sendo ambas teimosas e ambas
amantes de uma boa discussão, eram grandes e acesos os debates que tinham, e às
vezes chegavam até a ficar amuadas, mas depressa ultrapassavam isso, e a
amizade que as unia voltava com toda a força, e iniciavam novas discussões.
Como
elas adoravam isso…
Uma
terça feira a Hellen não apareceu.
A
Júlia estranhou, mas no meio de tanto trabalho e distração acabou por esquecer
o facto, e não pensou mais no assunto. Passou-se a quinta e a terça-feira da
semana seguinte e Hellen continuava sem dar notícias. Júlia começou a
preocupar-se.
Na
quinta-feira da segunda semana sem
notícias, Júlia respirou de alívio quando viu entrar livraria adentro, o James,
o marido da Hellen.
- Olá!
Boa tarde! – Cumprimentou-o, com um sorriso aberto e bem-disposto.
- Olá.
– Devolveu-lhe ele, tristonho, o cumprimento.
- Está
tudo bem? A Hellen? Já não a vejo há uma semana…
-
Pois…- Respondeu a meia voz.
Júlia
saiu de trás do balcão e aproximou-se dele. Colocando-lhe a mão no braço,
perguntou adivinhando uma má noticia… (pressentimento…coisa de mulheres…)
- A
Hellen?
- Está
no hospital. – Respondeu com voz sofrida.
-
Então? O que lhe aconteceu? – Abraçou com força um livro que trazia na mão.
- Não
sabemos ao certo. Começou a vomitar muito. Está internada, a fazer exames…
- Pode
ser só uma gastroenterite. – Júlia tentou animá-lo.
- Pode
ser… - Respondeu desanimado… - Vim aqui entregar lhe este livro que ela tinha
lá em casa.
Júlia
pegou nele.
- Já o
leu?
-
Quem? Eu?
-
Não…- Sorriu. – Ela…
- Ah!
– Ficou envergonhado. – Não sei ao certo.
-
Então leve-lho. Quando é que ela volta para casa? – Devolveu-lho.
Foi
até à estante e pôs-se a olhar para os livros, de costas para ele.
- Não
sei ao certo. Em princípio amanhã.
Júlia
voltou para ele com outro livro na mão.
-
Tome. Leve-lhe este também. Para o caso de ela já ter lido esse… – Disse-lhe
perante o ar inquisitório dele.
-
Obrigado. – Sorriu timidamente. – Depois daremos notícias…
A
semana passou-se, e depois dela veio outra, e Hellen não tornou a aparecer, nem
a dar notícias. Nem ela nem, James.
Júlia
estava preocupada, e queria saber notícias, mas o medo de se tornar incómoda, noção
que tinha aprendido com a cultura inglesa, impedia-a de ligar.
Os
dias foram correndo, com a amiga aparecendo na memória de Júlia, que estava
cada vez mais apreensiva com a falta de novidades, até que, passadas algumas
semanas, a própria Hellen entrou porta da livraria adentro.
O
coração de Júlia explodiu de alegria para logo se encolher de tristeza e
preocupação.
Ela
vinha tão magra…E curvada…
Apressando-se
a descer da escada onde estava empoleirada a arrumar uns livros, foi ter com
ela levando-lhe uma cadeira para que ela se sentasse.
- Boa
Tarde. Bons olhos a vejam. – Cumprimentou-a com um sorriso forçado.
- Olá!
– Respondeu-lhe quase sem forças…- Já pensavas que não aparecia, não pensavas?
-
Claro que não! Nunca! – Riu-se. – Mas o que é que lhe aconteceu?
-
Nada. Uma maleitazita, para eu me lembrar que ter razão nem sempre é o mais
importante…
- A
sério?! Mas que maleita esperta. – Brincou. - Então? Está melhor? – Foi buscar um
banco para si e sentou-se em frente dela.
-
Estou quase boa. – Mentiu. – Vim devolver-te os livros e despedir-me por uns
tempos. Os médicos dizem que não vou poder sair de casa dentro em breve.
-
Então? – Júlia recusava-se a ver o óbvio.
-
Então, é assim a vida. Tenho de a aceitar com alegria, pois dá-me a
oportunidade de me despedir de quem mais gosto.
- Não
fale assim! – Júlia lacrimejava e a voz tremia-lhe.
- Não
chores. – Disse numa voz firme. – Nunca chores por mim. Eu estou bem. Não tenho
dores. – Segurou-lhe o rosto firme, mas suavemente, obrigando-a a olhá-la.
Sorriu
com um sorriso meigo.
- Mas…
- Júlia não conseguia falar.
- Mas
nada! Ergue-me essa cabeça! Eu ainda cá estou e não quero tristeza à minha
volta. Nunca gostei dela enquanto tive saúde e continuo a não gostar agora que
estou doente. Lembra-te. A vida ensina-nos sempre algo com as situações em que
nos coloca. E eu estou a aprender…
- O
quê? – Fungou. – A aprender o quê?
-
Ainda não consigo dizê-lo. Apenas senti-lo…
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