A promessa 2
Hellen
despediu-se com a promessa que se tivesse forças voltaria para mais uma
discussão ou duas, se não, daria notícias pelo telefone ou pelo James.
Júlia
acenou com a cabeça, forçando um sorriso que não sentia e acompanhou-a ao carro
onde o marido a esperava.
-
Cuide bem dela! – Disse quase como que a ordenar.
-
Fique descansada. – Respondeu ele.
-
Importam-se? Eu estou aqui. – Hellen reclamou, entrando para o carro com alguma
dificuldade, mas com genica.
Ambos
sorriram e desculparam-se pelo sucedido, assegurando-lhe que só o faziam porque
gostavam muito dela, ao que ela respondeu com um resmungo incompreensível.
O
carro afastou-se e Júlia ficou parada a vê-los desaparecerem no caminho,
pensado em como faziam um casal bonito, e desejando ter um dia a sorte de ter
um casamento assim…
Os
dias avançaram na semana, as semanas avançaram no mês e as notícias quer de uma
forma quer de outra não apareceram, e Júlia começou a ficar cada vez mais
preocupada.
Decidiu
agir. Não conseguia esperar mais.
- Posso entrar? – Resolveu ir visitá-la mesmo
sem ser convidada.
Quem
lhe abriu a porta foi o marido, que mais magro e com um ar carregado a levou
para as traseiras da casa, onde sentada num cadeirão, com uma manta por cima
das pernas, Hellen, dormitava.
Ao
vê-la assim, Júlia começou a andar na direção
da casa exclamando num sussurro.
- Óh!
Não quero incomodar, vinha só trazer este livro e saber como ela está. –
Estendeu o livro para James que tinha ficado na soleira da janela.
- Não
incomodas nada! Anda daí! – Respondeu Hellen
do cadeirão.
Riram-se
os dois.
Júlia
avançou até ela e abraçando-a por trás deu-lhe um grande beijinho.
-
Então? Como se sente? – Puxou uma cadeira e sentou-se de fronte para ela.
- Bem.
Muito bem. – Respondeu sincera. – Agora tenho tempo para ler todos os livros
que ali tenho, sem me preocupar com o almoço ou a lida da casa. – Brincou.
- Até tenho tempo para sestas…Parece que
voltei a ser miúda. – Gracejou. - Estava com saudades tuas, e das nossas
discussões. – Olhou-a nos olhos.
- Eu
também…Muitas… - Respondeu Júlia, sem lhe suster o olhar. Ela estava tão magra
e amarela…
-
Porque não me olhas? Faço-te impressão?
- Não,
não! – Respondeu muito depressa, embaraçada.
-
Júlia…
- Bem,
na verdade, sim…
Olhou
para a janela da casa, atrás dela. Estava muito envergonhada consigo própria,
mas nunca gostara de mentir.
- Não
precisas de ficar assim. Continuo a ser eu… Apesar deste aspeto terrível, cá
dentro sou a mesma Hellen de sempre.
- Eu
sei, mas custa-me tanto…
- Já
te disse outro dia. Não sofras por mim…Eu não estou a sofrer… A sofrer vou
ficar se tiver de passar os meus últimos tempos rodeada de caras tristes…Já me
basta o Jammie… Mas que raio? Vocês querem que a minha última imagem daqui seja
essa?! Não! Dêem-me aquilo que eu gosto. Alegria e Discussões… - Tossiu forte.
Júlia
apressou-se a levantar-se e a ajudá-la.
- Vês?
É no que dá tanta tristeza. A doença vê logo uma janela por onde espreitar.
Vamos, mas é discutir o último livro que me trouxeste.
E
assim fizeram, falaram de várias coisas, e combinaram reiniciar as tertúlias, e
que as tardes de terças e quintas passariam da livraria para a casa da Hellen,
depois da hora de saída dela.
Conforme
combinado, as semanas e as discussões foram-se sucedendo umas às outras, e as duas debateram assuntos cada vez mais
introspetivos e tornaram-se cada vez mais próximas.
James,
mantinha-se sempre à parte, embora gostasse muito de ter lá a Júlia, o tempo em
que as duas estavam juntas, era para ele um momento também de relaxamento, um
momento em que ele podia fazer algo por si e para si.
-
Sabes? – Disse um dia Hellen a Júlia no meio de uma conversa. – Só me preocupa
uma coisa.
- O
quê? – Perguntou distraída com um pássaro que cantava numa árvore ali próxima.
- Preocupa-me
o James. Ele sem mim vai ficar muito perdido. Prometes-me que quando eu cá não
estiver, de vez em quando dás um olhinho nele?
- Hã?
– Distraída que estava, receava não ter compreendido bem o que ela lhe dissera.
- O James.
Prometes-me que tomas conta dele? Ou é um fardo muito pesado para ti?
- Óh!
Não fale nisso. – Júlia não queria sequer pensar nessa hipótese.
-
Porquê? Não é por não falar que as coisas não vão acontecer. Isso é um
pensamento infantil. Vamos voltar ao mesmo? – Refilou meio zangada, meio impaciente.
- Se
não queres é uma coisa, agora não falares do que vai acontecer é outra.
Sabia
que estava a ser um pouco injusta com a miúda, mas naquele momento não
conseguia agir de outra forma.
-
Seja. Mas para quê falar nisso? Só nos faz sofrer…
- Mau.
Pensava que esse era um assunto arrumado. Eu já não sofro. Já aceitei e já não
tenho medo.
- Não?
Não tem medo nenhum?
- Não.
Júlia
não acreditava nas palavras dela.
- Não
acreditas?
Ela
abanou a cabeça em sinal de negação.
-
Então, pensa comigo. Só pode acontecer uma de três coisas:
1- Não existe nada após a
morte e nós não sentimos nada, portanto, tranquilo.
2- Existe a reencarnação e eu
tenho uma nova vida para viver, e terei outra oportunidade de crescer. Yammi… -
Levantou os braços com dificuldade imitando uma gaiata contente.
Aqui
Júlia sorriu. Como não sorrir com a força e alegria daquela mulher?
3- Existe o céu e o inferno dos
que neles acreditam, e aí de certeza que vou para o céu!!! A aturar-vos assim,
não há outra hipótese…
Riu-se muito, um riso sincero e Júlia sem querer acabou
por rir com ela.
- Mas o que se passa aqui? – James ao ouvir o riso veio
ter com elas. – Também me quero rir…
- Nada, nada. É uma piada nossa. – Hellen não quis tocar
no assunto à frente dele.
Júlia levantou-se.
- Tenho de ir. – Despediu-se. – Volto na quinta.
Mas a quinta chegou e Júlia teve um imprevisto que não a
deixou cumprir a promessa, e esqueceu-se de avisar que não ia. No sábado de
manhã, como se um castigo se tratasse, foi surpreendida com a triste notícia.
Ficou em estado de choque.
Só
pensava que não se tinha despedido dela, que não tinha acedido ao último pedido,
que não tinha tido sequer a consideração de se desculpar por não aparecer nem
avisar. Que se tivesse telefonado naquele dia ou no dia seguinte poderia ainda
ter falado com ela, e por pouco não entrou em depressão.
Valeu-lhe
mais uma vez o trabalho e os colegas e clientes que, ao aperceberem-se do seu
estado, rodearam-na de carinho e atenções levando-a aos poucos e poucos a
recuperar o animo, ainda que forçado.
O tempo
foi passando, e os dias de Júlia voltaram quase à normalidade, era uma rapariga
nova, ativa, na flor da idade, na idade em que o tempo é um excelente
curandeiro, e aos poucos e poucos Hellen foi ficando uma doce recordação, até
que, numa tarde de terça feira, enquanto o grupo se organizava nas mesas do
pátio para mais uma tertúlia, ele apareceu.
Trazia
em cada mão um saco cheio de livros e no rosto um sorriso tímido. Triste.
Ao
olhá-lo, Júlia sentiu uma dor no peito. Como era possível ter-se esquecido dele
e de Hellen, e do que ela lhe tinha pedido?
Ela
tinha razão. Ele parecia um menino pequeno, tão desamparado, tão triste…
Comunicou
aos colegas que não ia participar na reunião, e pedindo desculpa afastou-se
para ir ter com ele que estava parado junto a uma mesa.
- Olá!
– Cumprimentou-o com dois beijinhos. – Não sabia porque o fazia. Era a sua alma
lusa que o queria consolar de alguma forma.
- Olá!
– Devolveu-lhe o cumprimento visivelmente embaraçado e estendendo-lhe os sacos.
- Não
a quero incomodar. Vim apenas agradecer-lhe tudo o que fez pela Hellen e
entregar-lhe estes livros que ela separou para si.
As
lágrimas vieram aos olhos de Júlia.
- Não
incomoda nada. Sente-se aí que eu venho já com um café e um bolinho para
tomarmos e conversarmos um bocadinho.
Saiu,
levando os sacos com ela e retornou pouco depois com um tabuleiro nas mãos onde
fumegavam duas chávenas de café e duas fatias de bolo acabado de fazer. (esqueci-me
de mencionar que as tardes de tertúlia tinham mais uma regra obrigatória. Um
bolo caseiro e chá e café para alimentarem a discussão.)
-
Tanto trabalho, não a queria incomodar…
- Não
incomoda nada. Eu é que peço desculpa de o ter abandonado, mas a…partida
dela deixou-me “desasada “e durante uns tempos “andei à deriva”. Peço desculpa
por não ter dito nada… - Estava verdadeiramente arrependida.
- Ora
essa, já fez muito por ela enquanto ela cá estava… Ela gostava muito de si.
- Eu
sei…e eu dela. Acredite! Agora já não tenho ninguém com quem discutir…
Ele
levantou-se visivelmente emocionado.
-
Tenho de ir. Mais uma vez, obrigado por tudo.
Ela
levantou-se também e deu-lhe um abraço. De repente sentiu um carinho grande por
aquele homem, e decidiu cumprir a promessa que não chegara a fazer.
De vez
em quando iria deitar um olhinho nele…
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