A promessa 4

- Nada! – Levantou-se e dirigiu-se para o mar.

Apercebeu-se do quão ridícula e parva estava a ser e resolveu afastar-se para parar e pensar. O vai e vem das ondas fazia-lhe lembrar a sua terra e tinha sempre o dom de acalmá-la.

Alexandra deixou-se ficar.

Chegada à beira mar, descalçou-se, mergulhou os pés nas ondas. Sentiu o frio a entrar corpo acima, direto ao coração, resfriando o fogo que nele ardia. Teve vontade de os tirar, mas obrigou-se a deixá-los ficar. Até o fogo se apagar…

Mais calma, voltou para junto da amiga, que, entretanto, se levantara e se preparava para ir embora.

- Desculpa. Fui uma besta.

- Foste. – Foi a resposta dita num tom seco.

Júlia olhou-a verdadeiramente arrependida.

- Mas eu desculpo-te. – Alex sorriu. -Sabes que o faço sempre…– Estendeu-lhe os braços para um abraço, ao qual só os lusos sabem dar valor.

- Mas, não queres contar-me o que se passou? – Continuou incentivando-a a desabafar.

- É complicado. Nem eu sei bem. E iria demorar muito tempo… - Ela queria, mas não lhe apetecia falar.

Começaram a andar em direção à aldeia.

- Tempo é coisa que não me falta aqui, aos fins de semana… - Retorquiu Alexandra.

- Pois, para mim, tempo foi o que me faltou para dizer o que queria à minha amiga…

- Que amiga?

E então Júlia, pelo caminho e ao longo do jantar, e do serão, contou tudo o que sentia, tudo o que pensava e tudo o que se tinha passado.

Umas vezes expunha o raciocínio muito claramente, outras fazia-o atabalhoadamente, consoante a intensidade do sentimento, e no fim, de copo na mão, e cansada, terminou dizendo:

- Percebes porque te digo que não somos todos iguais?

Alexandra, que, entretanto, acabara de arrumar o último prato, veio ter com ela e sentando-se no sofá à sua frente, rebateu a afirmação com outra:

- Parece-me que estás a endeusar essa senhora. Não digo que não tenha sido uma boa pessoa, melhor que muitos de nós, mas não deixou decerto ser alguém como tu e eu, com qualidades, muitas certamente, mas também com defeitos. E tu, estás turva pela emoção.

Júlia não respondeu, mas ficou a pensar naquilo. Depois levantou-se, e bocejando despediu-se com o seguinte comentário:

- Sabes? Gostei muito do jantar.

E fechou a porta sem dar tempo à Alex de responder.

Era uma tarde de segunda feira, uma tarde cinzenta, em que o vento soprava com força, mas não a suficiente para conseguir empurrar as nuvens que insistiam em se manterem fixas no céu, marcando a sua presença e avisando da tempestade que aí viria.

Na livraria não havia quase ninguém. À parte de Júlia e outro colega, apenas dois jovens vasculhavam o cesto com os livros para emprestar, buscando algum que lhes amenizasse esta tarde cinzenta e fria.

Júlia estava sentada a uma mesa junto à janela a examinar algumas faturas.

Aproveitava assim o dia feio e o sossego da loja para fazer aquele trabalho sempre adiado e do qual não gostava.

O mau humor que sentia, via-se no modo como tratava os papeis e no exalo de exaspero que emanava a cada cinco minutos.

O seu colega ria-se, e aproveitava para a irritar mais e assim também ele passar melhor o tempo, que naquele dia parecia não ter fim.

A porta abriu-se e ele entrou na loja. Aproximando-se do balcão, cumprimentou o colega e perguntou por ela.

- Juliaaa! – Chamou-a Ricky do balcão.

- Ó Juliaaa! – Insistiu perante “os ouvidos moucos” que ela lhe fizera.

- Que é? – Respondeu com maus modos e sem levantar a cabeça do dossier que examinava.

- Tens uma visita…

- Não me chateies. Já chega, sim? Vais ver quando for a tua vez! Vou dar cabo do teu juízo! – Ameaçou-o meio zangada, meio a brincar…

Gostavam muito um do outro, mas tinham aquela mania de se irritarem mutuamente, o que normalmente corria bem, mas naquele dia em particular, ela não estava com muita paciência.

- Estou a falar a sério!

- Pois, pois… Como há bocado… - Júlia continuava sem levantar os olhos do que fazia.

- Boa tarde, Júlia! – Cumprimentou-a James.

Ao ouvir a voz dele, Júlia assustou-se e deixou cair o dossier e as folhas no chão. Atrapalhada, levantou-se, e começou a apanhar as folhas, juntamente com eles que, entretanto, se acercaram para a ajudar.

- Olha só que me fizeste fazer!!– Ralhou com o colega. Depois virou-se para James e cumprimentou-o:

– James! Que surpresa.

O colega ainda tentou ripostar, mas vendo-a já perdida para o homem, fez uma cara de inocente injustiçado, e afastou-se. Este decididamente não estava a ser um dia agradável para ele.

- Peço desculpa! – James ajudou-a a endireitar as folhas.  – Não a queria incomodar…

- Ora não incomoda nada! – Júlia sorriu-lhe. Até me dá uma desculpa para largar este trabalho chato. Quer ver?

E virando-se para Ricky, que, entretanto, estava a atender os dois clientes, falou-lhe com voz suave:

- Ricky! Se não te importas, terminas isto, que eu tenho de atender este senhor!

- Mas… - Começou ele a responder.

- Vá lá, meu amor. Conheces as regras!!!

E, sem esperar pela resposta, saiu com James atrás.

 Lá fora, sentaram-se numa das mesas e Júlia aconchegando o cachecol ao pescoço comentou:

- Que frio que está! Escolheu um mau dia para vir…

- Pois…Já percebi. – James respondeu embaraçado.

- O quê? – Ela não percebeu a indireta dela.

Ele olhou para o interior da livraria e apontou com a mão.

- Lá dentro…

Júlia abriu muito os olhos e sorriu:

- Ah! Aquilo? Aquilo não foi nada. Estamos sempre assim os dois, mas não é nada.

Como dizem lá na minha terra, “não é defeito, é feitio…”. Então, o que o traz por cá?

James fez uma cara embraçada. De repente sentiu-se ridículo e teve vontade de fugir. O que é que lhe dera para ir ali? 

Como demorou algum tempo a responder, ela reparando no saco que ele trazia, perguntou-lhe:

- Então foi às compras? Aposto que não é peixe. – Brincou.

Ele riu-se.

- Não, não fui às compras. Estava em casa aborrecido, e lembrei-me da tarte de coco que fez no outro dia e resolvi fazê-la. É mesmo fácil!

- Boa, e então como ficou? Já a provou? Está deliciosa?

- Bem, para dizer a verdade, não sei…Não a provei. Lembrei-me de a trazer para a provar consigo…Desculpe-me se estou a abusar. Não sei o que me deu…Deve ser deste tempo. Bule-me com os nervos…

E começou a levantar-se para sair. Júlia pegou-lhe no braço e fê-lo sentar-se novamente.

- Não abusa nada. E ainda bem que o fez. Já estava farta de estar ali. Vamos prová-la os dois sim senhor. Vou buscar um café quentinho e uns pratos e talheres, não saia daí.

- Ou prefere vir para dentro? – Perguntou já junto da porta da livraria.

- Não ficamos aqui! – Respondeu acenado com o braço.

Júlia não demorou muito. Vinha com um tabuleiro com os pratos, o bule e os talheres por cima de alguns guardanapos a impedi-los de voarem.

Ele ao vê-la levantou-se de imediato para a ajudar, e ao pegar no tabuleiro, os talheres deslocaram-se e os guardanapos voaram.

Como um tigre, ele rapidamente poisou o tabuleiro na mesa e deu um salto apanhando alguns, e correu atrás dos outros. Parecia um jovem.

Foi então que júlia reparou no corpo atlético que ele tinha e na agilidade com que se movia e interrogou-se sobra a sua idade. Sabia que ele era mais novo do que a Hellen, mas não sabia quanto.

Quando ele se sentou, observou-lhe o rosto. Tinha uns olhos azuis, grandes e expressivos emoldurados por um cabelo castanho claro, ponteado aqui e ali por alguns brancos, um pouco crescido e desalinhado, o que lhe suscitava a vontade de passar a mão por ele e penteá-lo.

A boca, bem feita, exibia um sorriso tímido que deixava ver uns dentes brancos bem tratados. Assim, como a pele, que tirando uma ou outra ruga de expressão, mostrava estar bem cuidada e indicava uma idade indefinida que fazia par com uma barba mal semeada.

Resumindo, ele era, aos olhos de Júlia, um homem bastante sexy.

- Com certeza que andarão muitas mulheres atrás dele. -  Deu consigo a pensar.

- Então? Não quer provar a tarte? – Estava com o prato na mão, estendida para ela, à espera de que ela a aceitasse.

- Hein? O quê? Ó desculpa-me. Estava perdida nos meus pensamentos.

Ele reparou que ela o tratou por tu e mostrou-o com um subtil olhar. Um olhar agradado. Não sabia, porém, se tinha sido engano ou não, pelo que decidiu continuar a tratá-la formalmente.

Júlia estava tão emaranhada a provar a tarte que em nada disto reparou.

- Então? Que tal? - Estava genuinamente ansioso.

Ela fez uma cara de suspense e quando ia a responder, o telefone tocou. Pedindo desculpa, ela atendeu:

- Estou? Alex? Como estás?

- Sim. Estou bem. – Respondeu ao telefone.

- Jantar? Hoje à noite? Claro que sim. Em tua casa? Confirmadíssimo.

- Sim, levo. Também tenho muitas saudades. Beijos.

- Desculpe-me, era… - Não acabou a conversa. Ele interrompeu-a dizendo que não tinha importância, que o que era importante era o veredicto da tarte.

A verdade é que ele não queria ouvir dizê-la que falava com o namorado. Não sabia porquê, mas isso incomodava-o. Se cá estivesse a Hellen, diria que era coisa de macho alfa. Como ele se irritava com aquilo…

Ela sorriu, e criou mais um pouco de suspense.

- Hum…- Fez uma cara feia.

Ele abriu muito os olhos e fez uma cara triste.

- Está ótima. 5 estrelas! – Revelou depois de uns segundos de suspense.

- Ufa! – Ele passou a mão na testa a exemplificar o alívio que fingiu sentir. – Agora já posso prová-la sem medo de apanhar alguma dor de barriga…

- Ai sim? Então eu sou a cobaia? – Fingiu zangar-se.

- Não, não. Longe de mim tal ideia! – Alinhou na brincadeira. – Digamos que te elegi democraticamente e por unanimidade dos votos, como a “provadora oficial” dos meus doces.

- Unanimemente? – Secundou-o ela. – Quanto foram os votos?

- Um. – Respondeu descarado.

Ela riu-se a atirou-lhe com uma bolota que estava na mesa. Ele desviou-se e respondeu atirando-lhe com outra.

Depois um silêncio incomodo instalou-se entre eles. Ambos queriam dizer algo, mas não sabiam o quê. Puseram-se a olhar para o nada, cada um fazendo um esforço para retomar a conversa e o clima de cumplicidade que tinham há pouco.

Foi Júlia quem quebrou o “feitiço”.

- Então? Como tens passado? – Mal acabou de fazer a pergunta, reparou na sombra que se abeirou dos olhos dele, e amaldiçoou-se.

- Desculpa-me. Não queria perguntar isso…

- Tenho passado melhor. – Ignorou o comentário e respondeu com honestidade. – Não tem sido fácil, mas já lá vão 10 meses, e.

- Dez meses?! – Interrompeu-o espantada. – Parece que foi há tão pouco tempo que estive com ela…

As lágrimas abeiraram-se dos olhos dele.

- M*da! – Pensou para si. – Mas tu hoje não acertas uma?!

- Faz hoje precisamente 10 meses. – Falou para as mãos que davam voltas à bolota já meio desfeita.

- Desculpa-me. Hoje não acerto uma… Deve ser do tempo…Bule-me com os nervos! – Tentou aligeirar a situação.

- O tempo comanda tudo… - Retorquiu ele. – E por falar em tempo, é tempo de eu ir andando, antes que caia a tempestade que elas prometem. – Apontou para as nuvens.  

Júlia não o queria deixar ir. Não naquele estado. Não naquele dia.

- Olha porque não vens jantar comigo hoje? – Convidou-o enquanto arrumava as coisas no tabuleiro.

- Hoje? Mas não vais jantar com o teu namorado? – Ele ajudava-a a arrumar.

- Namorado? Não! Onde foste buscar essa ideia?

Ele sentiu-se feliz e ridículo ao mesmo tempo.

- Que raio de afirmação fizeste, Jammie.! – Disse para si.

Embaraçado, respondeu:

- O telefonema…desculpa. Não pude deixar de ouvir…

- E? – Ela não estava mesmo a perceber.

- E…pensei que o Alex fosse teu namorado… - Aquilo era humilhante. Nem quando era novo se vira numa situação daquelas.

Júlia olhou-o e desatou-se a rir. A rir com vontade.

- Alex? O Alex é a minha amiga. Chama-se Alexandra, mas tratamo-la por Alex…É uma longa história, depois conto-te. – Comentou por entre gargalhadas.

Ele riu-se também. Não sabia se por contágio do riso dela, se de alívio por saber que Alex não era o seu namorado. E na onda da boa disposição, aceitou o convite:

- Sendo assim, está bem. Levo a minha tarte de coco para a sobremesa. – Apontou para a tarte que ainda estava na mesa.

- Mas já lhe falta uma fatia. – Observou ela.

- Achas que ela se importa? Eu faço outra.

- Não tolo. Eu digo-lhe que fui eleita a “provadora oficial” das tuas tartes e que adiantei o meu serviço. Vou buscar-te às 8.00 H. Pode ser?

- Combinado.


 

 

 

 

 


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