Carmo 20

- Não! A sério? Mesmo? – o ar de Sandra ilustrava bem a desilusão que sentia.

Sónia só acenava com a cabeça mostrando solidariedade.

- Bem, - disse Sandra pegando no café que, entretanto, chegara, - Vamos ao que interessa.

Sónia bebeu o café de um trago e Sandra olhou para ela horrorizada. Como era possível?! Resolveu, porém, não comentar.

- Sabes, surgiu-me uma ideia que, e por muito absurda que pareça, não consigo esquecer.

- O quê? – perguntou Sónia que tinha entrado definitivamente no espírito da conspiração.

- E Se o António que se corresponde com a Carmo for o teu António? – sorriu com um ar cômico.

- Hã? Como assim? – Sónia não percebeu.

- Pensa comigo. A Carmo está numa aplicação de encontros e corresponde- se com um António. Tu dizes que o António também está numa aplicação de encontros e que se corresponde com uma?

Deixou a pergunta no ar para que Sónia respondesse.

- Olha que não me lembro do nome dela, acreditas.? Com tanta coisa não me lembrei do nome. – respondeu embaraçada-

Sandra fez uma cara de como-é-possível?!

Sónia encolheu os ombros. – Não sei. - parecia querer dizer.

- Bom e a tua, a vossa, ideia era a de pôr a Carmo em contacto com o António. Certo? Mas como? Por um lado, cada um está embrenhado no “blind date”, por outro, como é que raio os pomos a falar estando eles zangados? A Carmo é uma excelente pessoa, mas é teimosa como um raio. – exclamou, arrancando uma gargalhada a Sónia que, entretanto, se levantara.

- Pois, não sei. Tu é que és a criativa. Inventa qualquer coisa que eu tenho de ir trabalhar. Hoje o almoço é por minha conta anunciou dirigindo-se ao balcão.

- Não, que é isso? Pago eu. – Sandra pegou na mala, mas atrapalhando-se deixou-a cair.

Quando chegou ao balcão o Ivo sorriu-lhe.

- Tarde demais. – disse-lhe. – A sua amiga já pagou.

Sandra fez uma cara de amuada.

- Mas pode sempre sentar-se e comer uma sobremesa. E pagar. – brincou.

- Agora?! A esta hora? Depois do café? – respondeu Sandra de imediato.

- E, há lá hora para comer um doce? – Perguntou com segundas intenções.

Num milésimo de segundo, Sandra avaliou-o. Tinha um corpo de um deus grego, um “palminho” de cara, mas… era um puto. Ainda cheirava a fraldas.

- Vero! – acabou por responder rindo-se. – Venha de lá ela.

Os dias foram passando e nem Sandra, empenhada, sem grandes resultados, em encontrar uma forma de os pôr em contacto, nem Carmo, ocupada com um grande projeto que, entretanto, aparecera, nem Sónia que esperava por uma proposta de Sandra, nem dona Maria que tinha entrado na “ronda” dos exames anuais, se mexeram para pôr o plano em prática. Quem estranhou uma ausência de resposta de “Maria” foi o António que todos os dias ia consultar a aplicação para ver se tinha alguma resposta, recriminando-se de o fazer ao verificar que a sua caixa de correio estava vazia.

O seu humor piorava a cada dia. Sónia ia aguentando calada até que depois de ouvir um raspanete desproporcional por ter tirado um café a mais para uma mesa, se virou para o patrão e amigo.

- Ouve lá António. O que se está a passar? Qualquer dia ficas sem empregada e sem clientes. Já quase ninguém te atura.

Ele resmoneou qualquer coisa entre dentes e foi para a cozinha.

Sónia ficou a atender mais uma mesa e depois foi atrás dele. Foi encontrá-lo a cortar a carne como se a quisesse desfazer tal era a violência dos golpes. Assustada aproximou-se dele e poisando a mão no ombro dele disse-lhe que parasse um pouco.

- Ainda te magoas. – com jeitinho e devagar tirou-lhe a faca da mão.

António ao tomar consciência do que fizera e ao ver a cara genuinamente assustada dela caiu em si, como diz o povo, e pediu-lhe desculpas.

- Não sei o que se passa. Andava muito bem até que…

- Até que…?

- Nada. Esquece. – virou-se de costas para ir buscar o sal para temperar a carne desfeita. Olhou para o saleiro e pensou que teria de fazer carne picada em vez de bifes. Tinha-os estragado por completo.

- Não, não esqueço. – Sónia interpôs-se firmemente entre ele e os bifes. – Vais contar-me o que se passa. Tem a ver com o site de encontros? – perguntou num rasgo de inspiração.

Ele olhou-a com cara feia, que ela ignorou.

- Ela faltou ao encontro? Deixou-te pendurado? Ou não era o que estavas à espera? Não é vergonha nenhuma todos já passámos por isso. Olha para mim!

- Tu?

- Sim. Quantas vezes é que achas que eu recorri a isso depois de ter sido deixada pelo Flávio? – mentiu. – E quantas vezes achas que dei com “os burros na água”? Não é vergonha nenhuma teres ficado pendurado. Aposto que ninguém deu por isso. – cruzou os braços numa atitude de desafio.

- Não fiquei pendurado. – respondeu agressivo desviando-a do caminho.

- Então? – ela foi atrás dele. – Ela era um trambolho?

- Sei lá! Nunca a vi. Ela não me respondeu para marcar encontro. Se calhar arrependeu-se.

- Se calhar… - concordou Sónia pensando na hipótese que Sandra lhe tinha contado. – Aposto que é melhor assim. Tudo acontece por uma razão. E para o nosso bem.

- Ai sim? – olhou para ela lembrando-a da situação em que estava.

- Au! Isso doeu. – melindrou-se e começou a afastar-se.

- Desculpa. – pediu mais uma vez alcançando-a antes que chegasse à porta.

- Já é a segunda vez que me pedes desculpa, hoje. – respondeu fingindo-se amuada.

- Eu sei. Mas em minha defesa, tu é que vieste ter comigo. Eu estava aqui no meu mundinho. Sozinho.

- Pois é esse o teu problema. – respondeu de mãos nas ancas.

- Não percebo. – disse ele com o olhar.

- Tu tens quase 40 anos. Já está na altura de arranjares uma companheira.

- A sério? – respondeu ele irónico. – E o que achas que eu estava a tentar fazer.

- Num site? Achas que isso é sítio para arranjar mulher?!

- Não? Então? Que eu saiba elas não abundam, aí, livres e soltas.

- Não, não, abundam, mas existem algumas.

O tom de voz dos dois elevava-se sem que dessem por isso.

- Quem? Conheces alguma? – atirou ele voltando para a carne.

- Por acaso até conheço. – ela foi atrás dele.

- Quem? – ele virou-se de faca na mão.

- A Carmo.

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 


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