Francisca 2
Voltei-me.
- Olá
Sr. Padre. Por aqui?
- Sim.
Qual é o espanto? – A cara dele é mesmo engraçada.
- Não.
Nenhum…- Respondo embaraçada - Só que pensei que um padre… - Calei-me.
- Um
padre? – Insistiu ele bem-disposto.
-
Nada, esqueça. Parvoíce minha. - Respondo
e recomeço a andar em direção ao mar.
- Ó
Francisca. Que mania a sua. Começa a falar e depois não acaba. Isso é defeito
ou feitio? - Ele acompanhou-me.
Olhei
para ele e sorri. De repente apeteceu-me ser “coquete”. Descalcei-me, e molhei
os pés na beira da água. Depois olhando-o de lado respondi atrevida:
-
Hum…O mistério é privilégio das mulheres…
Ele
descalçou-se e imitou-me. Tinha uns pés bonitos, esguios e bem cuidados.
Depois, sem que eu estivesse à espera salpicou-me com um “pontapé” na água.
- E,
responder à altura é um dever dos homens.
Gritei,
espantada pela atitude e pelo frio da água, e depois ripostei, devolvendo-lhe o
“pontapé”.
- Não
arrelie uma mulher, vai- arrepender-se…
E
comecei a correr fugindo dele. Ele, porém, tinha um físico invejável, e umas
pernas longas que me alcançaram em menos de nada. Levantei os braços em sinal
de rendição ao mesmo tempo que me ria dizendo:
-
Rendo-me, rendo-me.
Ela
atirou-me com mais água e depois sentou-se à beira da água.
- Vai
ficar todo sujo! – Ralho eu sentando-me ao seu lado.
- Não
faz mal. Assim a Dona Manuela tem com que implicar com razão.
Ficámos
por momentos calados. Sentados lado a lado, olhávamos para as ondas, que iam e
vinham, iam e vinham, cantando uma canção de embalar. Deus fala connosco de
muitas maneiras e naquele momento senti que ele me dizia através das ondas:
-
Confia…confia…
-
Porque é que as pessoas mudam tanto? – Atiro eu de repente.
Ele
não respondeu de imediato. Continuou calado, a olhar para o infinito e eu
comecei a arrepender-me da pergunta, da minha impulsividade.
-
Estupida! Onde é que Deus fala contigo?! Só uma parva como tu para acreditar
nessas balelas. – Ralho mentalmente comigo.
- Porque
evoluem, ou retrocedem. Porque não são ilhas isoladas e sofrem estímulos que as
fazem virar num sentido ou noutro. É normal. – Ele falou calmamente sem se
virar.
- Não,
não é normal. Quero dizer, é normal nós crescermos e evoluirmos e tudo o resto,
mas a base, aquilo que nos define, o nosso feitio. Esse não deveria mudar.
-
Acha?
- Acho!
– Respondo resoluta e um tanto agressiva até.
-
Então não deveríamos mudar de feitio nunca? Uma pessoa teimosa e irascível,
deverá continuar a sê-lo até ao fim dos seus dias?
- Não,
claro que não. – Respondo baixinho sentindo-me apanhada na ratoeira.
- Não
é mais fácil contar-me o que a incomoda, do que andar com rodeios? – Ele
virou-se para mim, olhando-me nos olhos.
Baixei
os meus. Não fui capaz de lhe suster o olhar. Nem de lhe contar…Ainda não…
- Não
se passa nada. – Acabei por mentir. – Era só um pensamento que me veio à ideia…
- Tem
a certeza?
- Hum,
hum. – Acenei com a cabeça.
Então
ele levantou-se e pegando num punhado de areia, atirou-mo ao mesmo tempo que se
ria dizendo-me:
-
Mentir a um padre, dá direito a uma viagem para o inferno!!!
E
pegando nos sapatos, começou a correr areal fora, olhando para trás para ver se
eu ia atrás dele.
Aceitei
o repto e pegando nos sapatos e na mala, levantei-me e comecei a correr na sua
direção, mas não o apanhei. Ligeiro, ele chegou primeiro ao caminho e foi
interpelado por uma paroquiana. Deixei-me ficar. Disfarcei e voltei para a
beira mar. Feliz como há muito não me sentia.
4 de Março
Já
estão todos em casa. Que bom! Tinha tantas saudades de todos. As férias e a
viagem parece ter-nos feito bem. Estamos todos muito amigos. Bem o do meio e o
mais novo continuam a guerrear, mas isso faz parte, segundo dizem. Eu cá não
sei. Não tenho irmãos.
15 de Março
Eu já
sabia que era “sol de pouca dura”. Mais uma crise na minha casa.
Ontem,
estávamos à mesa, a conversar, quando o telemóvel do meu marido tocou. De
imediato, ele pegou nele e atendeu-o o que lhe valeu a crítica dos filhos.
- Tu
não nos deixas ter telemóveis à mesa, e agora atendes uma chamada. Belo
exemplo! - Criticou-o o mais novo.
-
Cala-te! – Respondeu-lhe irado. – “Olha para o que eu digo e não para o que eu
faço.”
- Ó
pai! Ele tem razão. És sempre tão rígido connosco e estás sempre a quebrar as
regras…- O do meio veio em auxílio do irmão.
- Mau!
Ainda não perceberam que não estão no mesmo nível que eu, pois não?
- E
qual é o teu nível? - Perguntou sarcástico o mais velho.
O meu
marido, olhou-o como se lhe quisesse bater. A veia no pescoço, que se salienta
cada vez que ele se irrita, estava superdilatada. Porém, poisou o guardanapo na
mesa com calma, numa fúria muito contida, e olhando-o nos olhos de forma
agressiva respondeu-lhe:
- O
meu nível, é o de dar o pão e a educação. Esta é a minha casa, segues as minhas
regras enquanto cá viveres. PERCEBES?!
- E a
mãe? Não é a casa dela também? Não são as regras dela também?
Eu
tentei pôr água na fervura, pedindo-lhes que parassem…
- E
isto é tudo culpa tua! – Gritou o meu marido, virando-se para mim. – Não os
educas, nem deixas educar!
E mais
uma vez, saiu da mesa, e mais uma vez ficámos a sós, com um silêncio que
gritava tão alto que me ensurdecia.
25 de Março
- Bom
dia!
De
costas reconheci a voz, e o meu coração deu um baque. Virei-me com um ar
“aparvalhado”.
- Bom
dia Sr. Padre!
-
Depois de nos termos enfrentado em duelo no areal, acho que podemos deixar o
senhor e a senhora não acha?
Fiquei
sem saber o que responder. Este homem tem a capacidade de me surpreender
sempre. É desconcertante!
Olhei-o
nos olhos, a expressão do meu rosto a espelhar o que sentia. Vi-o no riso que
bailava nos seus olhos.
- Hum.
Sim, acho que sim… O que faz aqui? – Perguntei-lhe impulsivamente.
- Ora
essa, o mesmo que a Francisca. Venho comprar pão.
- Não
sabia que fazia compras…- Retorqui mais uma vez sem pensar. – Tinha de perder
esta mania. E urgentemente!!!
Ele encolheu
os ombros e fez um ar desalentado.
- A
dona Manuela fez gazeta…Não me fez o pequeno almoço. Nem o almoço!!! Por isso
venho comprar pão, porque “só de pão vive o homem” – Brincou distorcendo o
provérbio.
- Ó
coitadinho!!! – Alinhei na brincadeira.
-
Aceita um café de tréguas? - Propôs-me ele.
-
Claro que sim. – Respondo mais depressa e mais alegre do que o que queria…
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