Francisca 1


1 de Fevereiro
Chamo-me Francisca. Tenho 42 anos e sou uma mulher saudável e com muita vida. Nunca escrevi um diário, apenas deixei textos soltos em folhas espalhadas, consoante a direção e a intensidade dos meus sentimentos.
Então porquê um diário? E porquê agora? Pois não sei. Sinto que preciso de um amigo, “alguém” a quem eu possa contar tudo e que não me julgue…É razão plausível? Não sei.
Vais ver que não sei muitas coisas…
Mas vou falar-te acerca de mim.
Sou casada e tenho filhos, 3 rapazes, que são a minha razão de viver, mas que estão em fase de pré-partida, prestes a sair do ninho, e eu começo-me a sentir sozinha.
Tão sozinha, que hoje resolvi pedir ajuda.
A verdade é que estou farta disto e não sei como lidar co a situação. Vale-me este caderno que anda sempre comigo e com o qual desabafo muitas vezes…
Não quero separar-me do meu marido, mas não o aguento mais. Ao mesmo tempo sinto-me injusta.
Ele não é mau homem, cuida de nós, não tem vícios, e desdobra-se para nos fazer as vontades, mas tem um feitio…Porque é que ele tem de ser tão prepotente e distante?!
Tornou-se num homem tão diferente do homem que eu conheci e por quem me apaixonei…
Hoje decidi-me. Vou telefonar ao Pde Gabriel.
Ele é jovem. Com certeza que me há-de entender e ajudar. Se fosse o Pde anterior ainda levava um sermão por estar a ser muito exigente e má mulher…Será que estou?
Procurei no telemóvel pelo telefone da capela. Marquei o número ansiosa e nervosa.
 - Se calhar não é boa ideia. – Digo para mim - Vou desligar.
Mas antes que o tivesse tempo de o fazer, uma voz feminina e arrogante soou do outro lado.
- Estou?
- Estou? – Respondo eu.
- Estou? Quem fala? – A voz denotava a impaciência de quem se acha dona da verdade e que tem sempre muito que fazer.
Estou a ser injusta. Eu sei. Mas, tu devias conhecer aquele espécime de beata da igreja. É uma boa senhora no fundo, ajuda muito os outros, tenho de o admitir, mas anda sempre toda emproada e quando as coisas não são feitas à maneira dela, vira “fera”. E, não desiste enquanto não leva “a água ao seu moinho”. Bom, mas estou a divagar…
- Sou eu a Francisca. – Respondo baixinho.
- Dona Francisca? – Aquela voz inquisidora - Está boazinha? Não a tenho visto na missa…
Pronto. Tacada nº 1. Respiro fundo, engulo o que me apraz dizer, e ao invés disso pergunto.
- O Pde Gabriel está? Precisava de falar com ele…
- Ele está ocupado. Posso tomar recado? Ou posso resolver eu?
- Não, não. Obrigado. Volto a ligar mais tarde.
- Está bem. Vou dizer-lhe que ligou. As suas melhoras e espero vê-la já recomposta na missa de Domingo!
Desligou sem esperar que eu respondesse. Era assim. Não valia a pena.
Atirei com o telefone para o sofá e fui arrumar o arrumar do quarto dos arrumos.
Há muito tempo que o queria fazer, mas nunca era a ocasião certa.  Hoje, seria o dia.
E, além do mais, estar ocupada, impede-me de pensar. Uma técnica que eu uso cada vez com mais frequência.
Às vezes sinto-me como se fosse uma avestruz, sempre com a cabeça enterrada na areia…
3 de Fevereiro
O Pde Gabriel não respondeu ao meu telefonema. Se calhar a “sargenta” não lhe deu o recado.
- Melhor. – Penso - O “universo” resolveu por mim…
Também o que é que eu lhe iria dizer? Não podia expor o meu marido. Ele conhece-o.
E o que é que ele pode fazer para me ajudar? Nada! Vai dizer-me para ter paciência, para ver o lado bom dele, para ser positiva e todas essas “tangas” que só funcionam para quem não vive as situações.
Não!
É melhor assim.
5 de Fevereiro
De manhã, junto à casa da Ti Anica, vi Pde.
Vinha a sair de lá e tinha um ar preocupado.
Aproximei-me dele para o cumprimentar e não me contive.
- A Sra. Manuela deu-lhe o meu recado? – Mordi a língua logo após ter feito a pergunta.
- Olá Francisca! – Cumprimentou-me alegremente e eu pensei que aqueles olhos irradiam bondade e uma alegria que eu invejo ao mesmo tempo que admiro. Ao pé dele nunca ninguém se sente triste. É impressionante.
- Olá Sr. Pde. Desculpe-me o atrevimento. Mas saiu-me…
- Não tem mal. A Sra. Manuela disse-me qualquer coisa sim, mas eu confesso que tenho andado tão ocupado e preocupado com o marido da Ti Anica que nem prestei atenção. Desculpe-me.
Senti-me horrível. É claro que havia outras pessoas mais importantes do que eu, e a precisarem mais do que eu!
Corei e ele notou-o. Disse-me então:
- Olhe. Estou mesmo a precisar de um café forte. Quer fazer-me companhia? Assim podemos falar um pouquinho.
- Não deixe estar. Não o quero maçar…
- Não maça nada. Vamos. É bom ter uma cara jovem de vez em quando para conversar. – Riu-se.
Começou a andar para o café que estava do outro lado da rua, e eu segui-o aturdida.
- Ora, o Pde contacta com muita gente jovem. – Disse-lhe eu quando nos sentámos. – Os jovens da catequese e dos escuteiros.
- Por jovem, refirmo-me a gente da nossa idade. – Continuou bem-disposto. – Esses são uns bebés ainda.
Ri-me.
- Mas o Pde é bem mais novo do que eu. – Replico.
- Não!!! Que idade tem? 30?
- Ó Sr. Pde! Pare lá com isso. Tenho 42!!!
- Sério? Não parece. Eu tenho 35. Somos da mesma geração.
Olhei-o com ar reprovador. Ele retribui-me com um ar inocente e um encolher de ombros ao mesmo tempo que levantava os braços:
- O que foi?! – Parecia querer dizer.
A conversa continuou por banalidades, até que ele apanhando-me de surpresa, perguntou:
- Então o que me queria? E não me diga que não era nada, porque segundo a D. Manuela, a Francisca não vem à missa há uns domingos, e isso só pode significar que está doente, ou com um grave problema. – Imitou-a.
Ri-me. Como não? Era impossível não rir. Aquele homem era de todo. Nem parecia padre.
- Vá, diga lá. Agora fiquei curioso…
- Não é nada de importante… A sério. Vai passar… - Ainda não conseguia dizer em voz alta o que gritava todos os dias para mim, em silêncio. Na minha cabeça.
Ele não disse nada. Só olhou, e aqueles olhos falaram muito mais que quaisquer palavras.  As lágrimas subiram-me aos olhos, mas empurrei-as para baixo e engoli-as.
Levantei-me abruptamente e balbuciando uma desculpa qualquer. Despedi-me.
Pelo caminho vim a recriminar-me.
- Parva, estúpida, burra! Pareces uma gaiata. Queres ajuda e depois foges dessa maneira? Com que imagem é que ele ficou de ti?
Mais uma vez enterrei a cabeça na areia.
- Daqui a uns dias ele já não se vai lembrar, e tudo voltará ao normal – Consolo-me.
20 de Fevereiro
Em casa mais uma cena do costume. O meu marido chegou bem-disposto aparentemente… Porém, ao entrar na sala, ao ver os ténis do mais novo espalhado, desatou a criticar tudo e todos, a dizer que a casa era uma pocilga, que nós não merecíamos o esforço dele, etc., e saiu porta fora minutos depois, deixando-me à beira de lágrimas de frustração e raiva, e aos miúdos raivosos e revoltados.
- Isto não pode ser. – Disse o mais velho. – Ele não pode falar assim contigo, connosco. Quem é que ele pensa que é?
- É o teu pai. – Respondo-lhe “fazendo das tripas, coração” para não mostrar que concordo com ele. Tenho de lutar pela família unida…
Virou-me as costas. Sei que é para não ser mal-educado, para não dizer o que lhe vai na alma, para não me fazer sofrer. Pobre Ricardo. Que mãe sou eu que te escolhi para pai um homem assim? 
Entretanto vem o mais novo que se cruza com ele no caminho.
- Vais arrumar a porcaria dos ténis e é agora! – Gritou-lhe.
- Calma meu! Até pareces o pai. Deves pensar que mandas…
- Mando, em ti mando. E vais fazer o que eu digo.
- Maaaãeee!
Pronto estava o caldo entornado. A frustração do mais velho recaia no mais novo e tendia a imitar o pai que adorava tanto como se irritava com as suas atitudes.
Admirava-o tanto como o criticava. E no fundo fazia o que não gostava que ele fizesse.
É mesmo verdade que tendemos a imitar os gestos dos nossos pais…
Fui ter com os dois e tentei impor-me sem grande sucesso. O meu marido ralhava tanto comigo e à frente deles que acabou por me tirar grande parte da autoridade. Ainda que de uma forma inconsciente, eu sei, mas mesmo assim…
- Sabem que mais? – Digo passado um bocado cansada de tentar aplacar as coisas sem resultado. – Vou-me deitar. Amanhem-se os dois.
E virei as costas. Não quero saber. Estou mesmo a ficar farta. Vou dormir.
25 de Fevereiro
Hoje na missa o sermão foi sobre os casais. Sobre como deveriam ser cúmplices, sobre como o casal é um só corpo e só alma etc…Como eu gostaria que ele tivesse ouvido isto.  Mas não. O “Sr.” está fora em trabalho…Mais uma vez…
28 de Fevereiro
Que tristeza. Não tenho ninguém em casa. O meu marido continua no estrangeiro, os miúdos foram para uma viagem de finalistas, os três ao mesmo tempo…E eu, estou aborrecida.
Vou dar uma volta. Vou até à vila, vejo as montras e bebo um café. Pode ser que encontre alguém conhecido…
Bebi um café sozinha.
Também ele estava vazio…
Raios partam as férias!!! Vou até à praia ver o mar, vou apanhar ar fresco que me sinto a rebentar.
- Boa tarde. Ora viva! Como está a Sra. Francisca?











Comentários

Mensagens populares