António 6
- Raios! praguejou. Não
me digam que a perdi. - Pensou enquanto voltou para trás, olhando
sempre para o chão numa busca vã.
- Pode ser que esteja no
restaurante, em cima da mesa ou caída no chão. - Esperançou-se.
Quando chegou ao
restaurante, a porta estava aberta e ele entrou sem hesitar, porém, o que viu e
ouviu fê-lo parar estarrecido.
- Não te admito que
gozes com o António. - Os olhos de Manuela faiscavam enquanto a voz lhe saia um
tom acima do normal.
- Ora, não estou a
gozar. - Maria das dores ria-se. - Mas tens que admitir que tem piada. Ele não
tem olhos na cara? Ou espera, tem, mas aqueles óculos fundo de garrafa não o
deixam ver. - Jocou enquanto se virava para deitar o papel amachucado na
lareira.
Manuela perdeu as
estribeiras e gritou-lhe:
- Tu não prestas. Não
és digna de uma só letra dele quanto mais de um poema. – E arrancou-lhe o papel
das mãos com brusquidão.
- Eh! acalma lá os
cavalos. Estás a passar-te ou quê? - Maria das Dores nunca tinha visto Manuela
assim.
- Não é a primeira vez que
gozamos com estes pinga-amores. O que é que te deu desta vez? Só porque ele é
teu amiguinho? - O escárnio na voz era notório.
- Ele não é meu
"amiguinho"- Manuela estava prestes a perder o controlo total e a
partir para a violência.
- Ele é um ser humano do
melhor que há e tu...- Abanando a cabeça mostrou-lhe o desprezo que naquela
altura sentia por ela. Ela não era digna sequer de uma bofetada dela, quanto
mais do coração de dele.
Enquanto isso, António
assistia a tudo. Mudo, paralisado, incrédulo. Incapaz de se mexer ou de
proferir um só som. O seu pior pesadelo tinha acontecido, estava ali à sua
frente…
Manuela de repente
virou-se com intenção de se ir embora e deu de caras com ele.
- Estás aí? - A
atrapalhação de ambos era muito evidente.
- Hum, cheguei agora
mesmo. - Mentiu ele. - Vim à procura das minhas chaves - Disse enquanto se
dirigia para a mesa. - Ali estão elas.
Pegou nas chaves e saiu
sem demora, não antes sem olhar Maria das Dores, no olhos.
Ao sair, bateu com a
porta e ambas se aperceberam que ele não tinha "acabado de chegar"...
Conduzindo como um
autómato, ele nem sabia como chegara a casa.
Não se lembrava de ter
entrado no carro, não se lembrava do caminho, não se lembrava de ter aberto a
porta e entrado, apenas tomou consciência de si após ter pegado no ultimo dos
cadernos de poemas e o ter rasgado furiosamente, acabando sentado no chão de costas
apoiadas na parede, e com cabeça baixa banhada pelas lágrimas sem som.
- Parvo, estúpido,
burro. Como foste capaz de pensar isso? Porque é que fizeste aquilo? Ainda não aprendeste?
- Recriminava-se.
Entretanto, Manuela,
ficou branca como a cal.
Do estado excitado de
fúria passou a um estado de apático de desorientação. Tinha a certeza de que
ele tinha ouvido tudo. O que fazer? Foi então que a atitude de Maria das Dores
a fez sair do impasse em que caíra.
- Ei, o homem ficou
bravo. Tanto melhor, assim não tem ilusões. - A indiferença dela era
impressionante.
Manuela virou-se e disse-lhe:
- Como é que eu
andei enganada estes anos todos? Que monstro és tu? - A pergunta saiu envolta
em desprezo que acompanhou o andar em direção à porta. Saiu, e não esperou pela
resposta.
A campainha não parava de tocar, o barulho era forte, mas
António não a ouvia.
Manuela insistia. Sabia
que ele estava em casa, o carro estava estacionado em frente ao portão e àquela
hora não lhe parecia que ele tivesse ido para mais nenhum lado, e ainda por
cima a pé. Porque não lhe abria a porta? Teria acontecido alguma coisa?
Começou de a ficar
preocupada.
- António, António! - Gritou - Abre a porta! - Fazia ouvir a
sua voz por cima dos murros contra a madeira da mesma.
Foi talvez a aflição
sentida na voz ou na urgência do bater que tirou António da surdez em que se
encontrava. Lentamente, muito lentamente foi até à porta.
(continua)
Comentários
Enviar um comentário