António
Aquele dia apresentava-se com muito
calor. Era um daqueles dias de outono, em que o sol parece querer afirmar o seu
poder e a sua relutância em partir, usando de, para isso, toda a sua energia
envolta em raios de sol, quentes e angustiantes.
Todos se sentiam lerdos e desanimados.
Já chegava de tanto calor! Queriam o fresco do Outono…
- Um calor destes fora de época, até faz
mal ao diabo! - Refilou Manuel enquanto tentava resolver um problema no
aparelho do ar condicionado.
- E estes fulanos querem o dinheiro não
sei para quê. Não são capazes de pôr uma coisa destas em condições.
- Ainda é novo. Não deve estar pronto a
funcionar…
António, o mais calmo dos dois tentava
sempre por água na fervura das explosões de Manuel.
Como habitualmente, teve como resposta
um palavrão, mas não ligou.
Era assim há anos, desde que se mudara
para o bairro quando tinha apenas 6 anos e a sua mãe o entregara aos cuidados
do filho da vizinha, mais velho do que ele 2 anos.
Manuel era o líder, era ele quem tomava
as decisões, era ele quem avançava, mas era António, com a sua calma e saber,
quem resolvia as alhadas em que invariavelmente os dois se metiam.
Manuel era o sol, António era a sombra.
Chegados à puberdade o contraste entre
os dois era notório e gigante.
Enquanto Manuel ia às discotecas e ao
cinema e à praia sempre rodeado de miúdas, António ficava no seu cantinho
sozinho.
A natureza não o tinha favorecido
fisicamente.
Do alto do seu metro e oitenta sentia-se
embaraçado por ter umas orelhas demasiado salientes num rosto demasiado
pequeno. Os olhos eram vivos de um castanho lindo e profundo, mas estavam
escondidos atrás de uns óculos demasiado feios para que alguém olhasse para
eles. Muitas foram as noites em que chorou na sua cama, mas com o tempo foi-se
habituando á realidade.
Ajudou-o a escrita.
António era um poeta.
Escrevia no papel o que sentia na alma, vivia
nos poemas o amor que imaginava, procurava nas palavras a companheira que não
tinha. E tudo corria bem, até que Manuel, insensível, bruto e parvo como só um
adolescente sabe ser, encontrou um dia o caderno onde ele escrevia e fez dele o
motivo de troça de todo o grupo.
António sentiu-se mal. Muito mal mesmo,
e a partir desse dia decidiu fechar o seu coração a toda e qualquer pessoa,
esconder os seus escritos a “sete chaves”, e sair do “casulo” para o mundo com
uma postura de homem “rijo e duro”.
Não se pense que António se tornou numa
pessoa rancorosa e amarga. Não. António era, e seria sempre um “doce”.
Era uma pessoa como há poucas no mundo,
uma pessoa boa, amiga e acima de tudo com uma capacidade de compreensão acima
da norma. Porém, ele não era santo.
Na altura sofreu e zangou-se com tudo e
com todos, mas com o tempo a sua natureza veio ao de cima e ele resolveu
esquecer o que aconteceu, perdoar a estupidez de adolescentes e seguir em
frente, mas sempre, sempre cauteloso e com os sentimentos escondidos. Afinal de
contas ele não era parvo, não se ia sujeitar aquilo outra vez…
E é assim que passados tantos anos,
Manuel e António continuam juntos, no trabalho e na vida.
Ambos solteiros, embora por motivos
diferentes. Um, porque, tem tanto sucesso com o sexo oposto que não se consegue
decidir só por uma, outro porque remetido para o seu cantinho, não se permite a
encontrar ninguém nem a ser encontrado.
- Raios. Já chega! Vou almoçar. Vens? – Atirando
com a chave de fendas para o chão, num gesto que revelava a sua frustração,
Manuel saía da sala sem sequer esperar por António.
Decididamente aquele não era um dia bom
para ele.
- Vai andando que eu já te apanho. – Respondeu
o amigo enquanto arrumava o lugar.
Era melhor deixá-lo ir. Espairecer.
Depois do almoço voltaria com outro humor. Era sempre assim, e ele até preferia
almoçar na sua carrinha que tinha ar condicionado e estava estacionada de
frente para o lago. Sozinho, com uma bela sandes de presunto e uma cerveja, uma
boa música no rádio e uma boa vista…
” What else?”
Era o cenário ideal para escrever mais
um dos seus poemas. Há já umas semanas que não escrevia nada, e já tinha a alma
cheia, quase a rebentar e isso incomodava-o. Precisava de contar ao seu “amigo”
caderno o que ia nela.
A
carrinha era o seu escritório e a hora de almoço o seu tempo favorito para
criar, já que à noite estava demasiado cansado, e durante o resto do dia não
tinha tempo para si.
A hora do almoço era sua. Só sua. Quando
era…
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