Lua fim
Lua,
entretanto, enterrara o pai e com ele enterrara as mágoas. Tinham conseguido
entenderem-se, tinham conseguido perdoar-se e tinham conseguido até demonstrar
o amor que sentiam um pelo outro. Ele fora finalmente pai. Assegurou- lhes o
amor que sentia pelas duas e tirou-lhes um peso de cima ao afirmar, com
convicção, que estava bem e feliz porque sabia que se ia juntar à mãe delas, a
única mulher que o amara e a quem ele amara. E que agora ia bem. Não iria
bêbado, não a maltrataria mais. A vida aqui já não lhe fazia sentido pelo que
queria ir ter com ela. Elas que ficassem bem pois ele assegurava lhes que eles
os dois iriam finalmente ser felizes juntos.
E Lua
acreditou. Precisava de acreditar. Ela sentia que a vida era mais do que isto.
Tinha de ser…
Estava em paz, tranquila, calma. Bem, quase em
paz, porque agora que este problema estava resolvido, outro mais grave estava ainda
por resolver.
O seu marido,
não aparecera, e apesar de lhe ter enviado uma mensagem muito calorosa, e de
lhe telefonar algumas vezes, e de compreender que ele estava longe, em missão, ela
sentia que ele não correspondia ao que ela dele esperava. Se fosse o contrário
ela teria largado tudo para ir ter com ele.
-
Largarias? Se fosse hoje, largarias? – Uma voz interior e irritante insistia em
confrontá-la…
Se pensasse
bem, muito bem, se calhar a culpa do que ela estava a sentir, não era dele, ou
pelo menos não era totalmente dele. Algo se tinha quebrado, e não tinha
reparação.
A cada
dia que passava, ela tinha cada vez mais a certeza disso, e a promessa que
fizera a si, e à mãe, de não deixar que o lar se destruísse, parecia agora desprovida
de sentido. A vida não podia, não devia, não precisava de ser assim.
- Lua!
– O Dr. batia à porta de casa dela ao mesmo tempo que entrava. – Lua, estás aí?
- Dr.?
Entre. Estou na sala.- Gritou Lua do aposento.
- Olá
Lua. Como estás? – Os olhos vivos num rosto cansado observavam-na como o faziam
tantas vezes com os seus pacientes. À procura de sinais escondidos.
-
Estou bem.- respondeu sincera. – Cansada, mas bem. Estou a arrumar as coisas
para ir.
- Já?
- Sim.
Tenho os miúdos à espera. E o trabalho também.
- E por
falar em trabalho, que tal? Estás contente? Nem temos tido tempo de
falar…Sentes - te lá bem?
- Sim.
– Lua suspirou. - É física e emocionalmente exaustivo, mas estou bem. E o Dr.?
Como tem passado? Está a aguentar-se? – referia se à morte da mulher ocorrida há
uns tempos ainda recentes.
Ele
sentou- se com um ar cansado e ela imitou-o.
- Que
modos os meus! - tornou a levantar-se. - Nem lhe ofereci café. Vou já buscar. - Saiu da sala antes que ele pudesse dizer
alguma coisa e retornou passado poucos minutos com um tabuleiro onde repousava
um bule com chá e um prato com um bolo
de iogurte já encetado. Ao centro, encaixadas entre o bule e o bolo estavam
duas chávenas desirmanadas que pertenciam a um conjunto de chávenas que elas
iam comprando cada vez que iam à feira.
- Aqui
tem. - Estendeu-lhe a sua e um pires com um pedaço de bolo. - É de ontem, mas
ainda está muito bom.
O Dr.
não se fez de rogado e tragou um generoso pedaço do doce.
- Hum!
Está mesmo bom!- respondeu com a boca cheia, parecendo um miúdo travesso.
Lua sorriu. Como tinha
saudades deles, e da vida que levava ali. Era tudo tão mais simples…
Ele tornou a olhá-la por uns
instantes e reconheceu-lhe o olhar. Também ele o tivera anos atrás quando
decidiu regressar à ilha de uma vez por todas.
- Ouve lá! – Poisou o pires com o resto do bolo ainda por
comer e pegou-lhe na mão.
- Há já uns tempos que quero falar contigo, mas o tempo
escorre-nos por entre os dedos, como o areal da praia. Eu vou deixar o consultório
muito em breve.
- Não! – Lua retirou a mão e reclamou. – Não pode deixar a
ilha sem o único médico-veterinário. O que vai ser das pessoas? Ou já tem
substituto?
- Pois, é sobre isso que te quero falar. – Bebeu mais um
pouco de chá.
- Sim?
- Quero que tu assumas o meu lugar. Já tens o curso de
enfermagem, podes tirar o resto das cadeiras de veterinária. Já provaste ser
inteligente, sei que o farás sem problemas.
- Mas…O quê? – Lua não estava a acreditar.
- Eu sei que serás mais feliz aqui do que lá. Eu
conheço-te desde que nasceste. Tu és nossa. Mas a decisão final é tua, claro. –
sorriu.
- Não sei. Não sei que lhe diga. – respondeu passados uns
momentos. – Tenho a minha vida toda lá.
- Que vida? – atalhou ele.
Lua não respondeu. Ele tinha tocado no ponto central.
- Olha, não respondas já. – Ele percebeu que ela tinha
sentido o “dedo na ferida”. Pensa um pouco, conversa com o teu marido e depois
diz-me. – Levantou-se.
- Agora tenho de ir. O cavalo do Ti Jorge está mal, e eu
prometi que ia lá ainda hoje.
E saiu deixando-a sentada a mexer um chá que não tinha
açúcar nem mel …
Francisco chegou e Lua partiu. Não chegaram a encontrar-se.
A vida é tramada e os desencontros parecem agradar-lhe. Gosta de brincar ao
gato e ao rato, e pouco parece importar-se com os sentimentos com quem brinca…
De volta a Lisboa, Lua foi ter com a dona Vicência para ir
buscar os miúdos. Como estavam crescidos. Em 3 semanas pareciam ter dado um
pulo. Sozinhos em casa, e depois de um belo jantar feito pela dona Vicência,
ela abraçou-os, beijou-os e brincou com eles, e quando à noite os deitou na
cama, deu-se conta que nenhum deles tinha perguntado pelo pai. E isso fez-lhe
confusão. Muita confusão, tanta, que disfarçadamente, perguntou-lhes se sentiam
a falta do pai.
O mais novo nem a ouviu, entretido que estava a ver um
livro que ela lhe trouxera, o mais velho, assumiu um ar de “crescido” e deu-lhe
uma resposta que a deixou desconcertada.
- O papá disse que agora que ele não estava, eu era o homem
da casa, e que tinha de tomar conta de ti e do mano.
- Ai sim? – Lua abraçou-o. – Mas não tens saudades dele?
- Não! Assim posso mandar em vocês! – riu-se. – Oxalá ele
demore muito! – Começou a pular na cama e a rir-se às gargalhadas. O irmão
riu-se também e tentou imitá-lo, mas desengonçado e com sono acabou por
tropeçar na almofada e estatelar-se em cima da cama.
Riram-se os três, muito, e Lua percebeu que a sua
felicidade estava ali, com eles. Não importava o sítio ou com que estivessem.
Os três bastavam-se para serem felizes.
Pelo
menos por agora…
Até que a lua apareça...
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