Lua 18

 

- Mas o que dizes? – Francisco recusava-se a acreditar nas palavras que ouvia.

- Tenta perceber… - ela falava com calma enquanto se vestia.

- Não! Não tento perceber. – Levantou-se abruptamente e esbracejava ao mesmo tempo que falava e que se vestia também. - O que estás a dizer não faz nenhum sentido. Maldição? Isso é coisa do século passado. Dos doidos do século passado! – Colocava o dedo indicador na fronte para ilustrar o que dizia.

- Por favor. Tenta compreender! – falou num tom impaciente, áspero, ralhando consigo, atingindo-o a ele.

Ele não lhe respondeu. Sentido, olhou-a com uns olhos grandes, magoados. Depois virou-se e começou a caminhar em direção ao carro. Ela percebeu, e ainda abriu a boca para lhe pedir desculpa, ainda estendeu o braço para o parar, mas deixou as intenções pelo que são. Não tinha força para mais.

Os meses passaram-se e Lua e Francisco apenas se cruzavam entre turnos nos corredores da clínica onde ambos foram contratados para o lugar de enfermeiro. A Lua incomodava-a o facto de ele estar frio e distante, e ainda tentou falar de uma forma mais próxima, mas ele, educadamente, afastou-a.

- O que estás à espera? – Falava para si quando pensava no assunto. – E se veres bem as coisas, é melhor assim. Lembra-te que és uma mulher casada.

E acenava com a cabeça, concordando com o seu “eu" responsável, e dedicava-se aos filhos e ao trabalho com uma energia total.

Mais meses se passaram, e uma manhã, depois de deixar os miúdos na creche, recebeu um telefonema.

Era a irmã, o pai estava mal, ela que se apressasse se ainda o quisesse ver com vida. Aflita, esqueceu toda a sua vida. Ligou à sra. Vicência para que lhe ficasse com os miúdos, e agradecendo-lhe com o coração, arrependeu-se de todas as vezes que foi injusta com ela e a considerou um estorvo na sua vida.

Como se tornara injusta para com as pessoas!! Especialmente com o Francisco.

Pobre Francisco, ela merecia bem o tratamento que ele lhe estava a dar…

Chegada à ilha, correu para casa onde foi encontrar o pai deitado numa cama de campanha na varanda. Cara “chupada”, barriga predominante, olhos e pele amarelos.

O que viu chocou-a.

Ao longo dos últimos anos já tinha visto muitos assim, no seu trabalho, e estava convencida de que se tinha tornado imune ao sofrimento de ver alguém naquele estado, mas caramba, aquele era o seu pai.

Pobre pai!

De repente sentiu um carinho por aquele homem. Sentiu no seu coração a dor que ele estava a sentir, o medo que lhe vinha aos olhos, e só quis abraçá-la, embalá-lo e sussurrar-lhe ao ouvido que tudo iria ficar bem, que não tivesse medo, que ela estava ali para tomar conta dele.

Incapaz, porém, de lhe dizer que ele não estava sozinho, que ela lhe perdoava tudo do passado, que estava ali com ele e para ele, vestiu o seu profissionalismo e começou a tratar dele, iniciando por tirá-lo daquela cama e mudá-lo para o seu quarto que era o mais iluminado e arejado. Tinha uma grande janela defronte da cama onde ela costumava conversar à noite com a sua homónima.

Depois, tratou-lhe dos pensos e dos drenos, e cortou-lhe o cabelo e fez-lhe a barba que já tinha uns dias, e que ele não deixava ninguém fazer.

No início, foi difícil. Apesar de tudo o que sentiu no primeiro impacto, a raiva misturada com a dor da impotência de o ajudar, sobrepunha-se à paciência para lidar com quem está desacreditado e assustado, de modo que, não era raro encontrá-los a discutir, quer pelo creme que ela usava para lhe hidratar o corpo, quer pela comida que ele se recusava a comer, quer pelas caminhadas forçadas a que ela o obrigava a fazer diariamente, quando parecia recuperar, para que apanhasse ar e o quarto arejar.

Foi numa dessas caminhadas, a penúltima, se não a última que eles se abriram, e revelaram os seus medos, falaram dos sonhos perdidos, justificaram os erros, perdoaram as mágoas. Terminaram com um abraço, um abraço sentido, um abraço de paz à memória do qual Lua recorreu quando se despediu dele na tarde soalheira do seu funeral.

Francisco por cá, sentiu a falta dela. Primeiro estranhou o não se cruzar com ela pelos corredores da clínica, e intrigado perguntou à sua chefe o que se estava a passar com ela.

Como resposta teve a de que, Lua tinha posto uns dias de licença sem vencimento, e embora os questionasse, à chefe e aos colegas, sobre qual o motivo que a tinha levado a fazer isso, nada teve mais do que respostas vagas.

Cansado de lhe ligar e sem obter resposta, decidiu ir ter com dona Vicência, que assim que o viu, e depois de lhe servir um chá com uma generosa fatia de bolo de laranja acabadinho de sair do forno, lhe contou, sem que ele tivesse perguntado, os tormentos que Lua estava a passar.

Pedia-lhe ainda que tivesse paciência e não a pressionasse, pois ela própria só sabia notícias, ou pelo seu irmão,  ou quando à noite ela ligava para falar com os filhos. Pobrezinha. Metia dó. Tinha umas olheiras gigantes e a cara chupada. Com certeza que não se andava a alimentar nem a dormir em condições.

Francisco agradeceu, as informações e o lanche e despediu-se assegurando que embora não desistisse dela, não a iria pressionar. Deixá-la-ia resolver os assuntos sem interferir.

Mas isso foi o que Francisco disse. E na realidade foi o que pensou fazer também, mas há medida que o tempo passava, a imagem de uma Lua magra e com olheiras criou-se- lhe na cabeça, gravou-se-lhe no peito, e entrou-lhe no dia a dia de tal forma que sem pensar muito, e assim que conseguiu voo, embarcou rumo á ilha. Mesmo sem saber se o marido dela lá estaria ou não para a apoiar.

Esse era um facto que se esquecera de confirmar, mas logo lidaria com isso quando lá chegasse. O importante era vê-la. Depois logo se veria.




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