Amália

 


      - Bom dia avó! – Rui reprimiu o esgar  de repulsa que sentia ao entrar no lar, e ao invés disso abriu um sorriso ao mesmo tempo que se curvava para com carinho, depositar um beijo na testa da sua avó. 

Fechou os olhos por uns instantes e inalou o perfume que da cabeça dela emanava. Como cheirava bem a sua avó.  Apesar de já ter 90  anos e estar num lar onde tudo lhe cheirava a deprimente há cerca de 5 anos, ela continuava a cheirar aquele aroma que o levava às tardes de de verão quando ao seu colo adormecia ao sabor das  estórias por ela inventadas.

- Feliciano! – A sua avó sorriu-lhe embaraçada. – Não esperava ver-te aqui! Como está a tua mulher?

Rui voltou a sorrir, mas desta vez com um sorriso triste.

Desde há uns meses para cá que a avó vinha a fazer confusões e a alternar o passado com o presente saltando de um para outro como quem salta à corda. A princípio, achou-lhe graça, mas com o passar dos tempos a coisa foi ficando mais complicada, e acabaram por levá-la ao médico que lhe diagnosticou uma espécie de demência rara.

- Não é Alzheimer! - Disse-lhes sorrindo, enquanto lhes mostrava a TAC e lhes explicava as várias zonas do cérebro afetadas.

Rui não se lembrava do palavrão que ele usou para designar a doença, mas percebeu, no fim da complexa explicação,  que o cérebro da avó involuía e tinha tendência a levá-la para o passado e aprisioná-la lá.  Até quando ou até que época regrediria, não se sabia.

- Cada cado é um caso! – disse com um ar sábio, como se isso explicasse tudo. Havia, nos livros, casos descritos de pacientes que recuaram à adolescência e por lá ficaram , até que Deus se lembrou deles. Outros ficaram-se pela idade adulta. Mas como eram poucos os casos, pouco se sabia da doença.

E pronto! Explicação dada, recostou-se na cadeira com o à vontade de quem cumpriu a sua missão. Rui naquele momento detestou-o.

A avó, que a tudo assistiu calada, sentada ao seu lado, no sofá encostada à parede,  enquanto os seus pais, muito sérios, ouviam o desfilar de más notícias, sentados nas cadeiras rijas e desconfortáveis em frente à secretária que servia tanto para pousar o peso do conhecimento como para esconder o médico das notícias que dava, levantou-se e agradecendo ao médico saiu porta fora usando a necessidade de apanhar ar como desculpa para sair dali.

Talvez estivesse a voltar à adolescência onde afastava os problemas com um bater da porta… Pensaram todos de uma forma involuntária.

Nesse dia, ela não disse mais do que parcas palavras, pedindo que a levassem a casa e a deixassem a sós para refletir. O seu pai, filho dela, ainda insistiu que ela fosse com eles para casa deles, mas ela era, sempre fora, soberana do seu destino, e com um “não “ determinado dirigiu-se para p carro onde ficou parada, de pé,  ereta no orgulho  à espera que lhe abrissem a porta para entrar, rumo ao seu destino, à sua vontade.

Não disse nada na viagem, e nada disse  nos dias seguintes, até que no Domingo os chamou lá a casa. Aos quatro. Tinha uma coisa importante para lhes dizer.

- Avó, sou eu, o Rui. – Puxou uma cadeira e sentou-se à frente dela. Lá fora o vento abanava as árvores  fazendo cair as folhas como pedaços de memórias que quem ali estava e já não conseguia correr para os apanhar.

Ela olhou-o. Aqueles olhos castanhos, muito vivos, mas perdidos no tempo e piscando um deles, fez uma cara travessa e disse em voz muito alta:

- Rui, claro, claro!  Peço desculpa pela confusão. – E depois,  baixinho, continuou: - Logo vemo-nos? Ele vai estar para Braga 3 dias…A tua mulher? Ainda está na  mãe?

Rui resignou-se. Definitivamente naquele dia não iria conseguir conversar com a avó nada de jeito, então, respirou fundo e resolveu entrar no jogo

O que ele não estava à espera era dos movimentos dela…

Avançando como uma “gata”, insinuou-se junto dele. Rosto colado ao dele, lábios quase a tocarem-se. Assustado, ele recuou de forma abrupta e para disfarçar, e sem saber bem como jogar aquele “jogo”, respondeu-lhe:

- Sim, Amália, a minha mulher ainda esta na minha sogra. Queres encontrar-te onde?

Amália revirou os olhos em forma de desapaciento.

- Onde, onde. No mesmo lugar, ou já arranjaste outro? Temos mesmo de tomar uma decisão não achas? A tua mulher merece isto, mas o meu Alfredo não!

Ao ouvir isto, Rui arregalou os olhos. Alfredo? Seria o avô? Não estava a acreditar.

- Alfredo? O teu marido? – perguntou incrédulo.

Amália revirou os olhos mais uma vez.

- Mas tu hoje estás tonto ou quê? O que é que te deu? Quem haveria de ser se não o meu marido? Olha que eu não ando metida com mais ninguém.  Tu sabes bem  disso. – rematou ofendida.

Rui ficou novamente atrapalhado. E agora? O que haveria de dizer?

- Desculpa.- Foi o melhor que lhe ocorreu.

- De desculpas está o inferno cheio!- respondeu ela de um modo torto.- Tenho de ir.- Afastou-se e foi até à porta do corredor que levava aos quartos.

- E diz à tua mulher que nos próximos dias não poderei ir ter com ela!- rematou da porta em voz bem alta para que todos ouvissem.

Rui deixou-se estar, especado, na cadeira que, entretanto, usara para se apoiar e não cair de tão trémulas que as pernas estavam. Ela já tinha “viajado” até ao início do seu casamento, e até o tinha confundido com um ou outro seu conhecido, mas nunca lhe tinha visto este lado.

- AAhg! – abanou a cabeça para exorcizar as memórias do que acabara de acontecer. A avó tivera um caso? Seria possível? Ou era alguma baralhação da sua memória? Tinha de perguntar ao médico se isso costumava acontecer, os doentes tomarem vidas de outros como sendo as suas, e não querendo estar nem mais um minuto ali, e tal como a avó, sentindo uma necessidade súbita de apanhar ar, saiu com quanta pressa pode.

À noite, enquanto jantava, Rui perguntou ao pai.

- Olha, conheces algum antigo namorado da avó?

- Hum, não porquê?- respondeu entre duas garfadas.

- Porque hoje fui lá vê la e ela confundiu-me com um tal de…- Franziu o nariz para se tentar lembrar do nome.

- Que eu saiba ela não teve nenhum antes do teu  avô . Sempre vais ao dentista amanhã?- perguntou à mulher não fazendo mais caso do assunto. Afinal de contas a mãe estava maluca, logo não era para se ligar ao que ela dizia, isso era mais do que sabido.

Rui resolveu esquecer o assunto, e acompanhou os pais no resto da refeição. Quando lá voltasse para a semana de certeza que ela também já se teria esquecido.

A semana passou, e em vez do Rui, quem a foi visitar a Sra. Amália foram os seus pais.

Quando lá chegaram e perguntaram por ela, Rute, a enfermeira responsável do lar, disse-lhes que desde que o Rui lá fora, ela tinha ficado alterada, mais agitada e impaciente. Tentava sair da quinta a todo o custo, inventando histórias sem nexo. Aconselhou-os a falarem com o médico para uma nova avaliação e ajuste da terapêutica.

Intrigados, eles dirigiram-se ao jardim onde a encontraram junto ao lago, sentada num banco de olhar perdido.

- Mãe? – Alfredo Jr. Beijou-a no rosto ao mesmo tempo que se sentava ao lado dela.

- Alfredo? O que fazes aqui? Não devias estar em Braga? – perguntou aflita.

- Braga? Não mãe, já não trabalho lá há uns anos…

Amália sorriu contrafeita e começou a olhar para os lados como se procurasse alguém.

- Dona Amália!!!-  Sara, a mulher de Alfredo que tinha ficado para trás a falar com uma amiga lá empregada, acenou-lhe com um sorriso.

- Leonor?! – O susto na cara de Amália era gritante, e virando -se para o Alfredo preguntou-lhe num sussurro;

- O que faz ela aqui? Não estava para casa da mãe?

 









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