Amália 8

 

- Não, não está tudo bem. – Alice desabafou. – Eu também não estou a conseguir lidar com a situação, acho que estou demasiado envolvida para se objetiva e profissional.

- Como assim? – Rui adivinhava o que ela ia dizer, mas ainda tinha esperança do contrário.

- Olha, não gosto de falar por telefone, podemos reunirmo-nos?

- Sim, claro que sim. – Rui diria tudo para evitar o que já adivinhava. – Onde, e a que horas?

Combinaram encontrarem-se às 18.00 numa esplanada junto à estufa fria, um jardim perto do local de trabalho do Rui. Alice nesse dia tinha a tarde livre, pelo que podia ser ela a deslocar-se até ele, acabando, por isso, ser ela a chegar primeiro.

A tarde estava fresca e debaixo das árvores o sol, que já anunciava a sua partida, não conseguia penetrar. Alice arrependeu-se de não ter tirado o casaco do carro, e escolheu uma mesa junto ao lago onde parecia haver uns raios de sol mais teimosos que anunciavam a sua presença com o brilhar das sombras.

Sentou-se. De imediato, veio um empregado, um rapaz novo, simpático, a quem ela pediu um chá muito quente e meia torrada. De repente lembrara-se que não almoçara, e o seu estômago reclamava com toda a pujança. Ele sorriu, perante o sinal sonoro e saiu deixando-a embaraçada. O dia não lhe estava a correr mesmo nada bem!

Enquanto esperava que Rui aparecesse, ia mentalmente preparando um discurso. Falaria da ética, do seu envolvimento emocional, do facto de Amália parecer já não confiar nela, e do facto de a ter notado cada vez mais lúcida, embora cada vez mais embrenhada no passado.

Nada fazia nexo, nada correspondia aos ensinamentos dos livros por onde estudara, nada correspondia aos ensinamentos que os seus anos de experiência profissional lhe haviam ensinado. Sentia-se farta deste embrulho e queria sair. Sabia que não estava a ser profissional, mas neste momento da sua vida, não tinha capacidade para mais…

O empregado chegou com uma bandeja onde um chá fumegante e uma torrada faziam par com o sorriso divertido que ele trazia no rosto e nos olhos.

- Aqui tem, menina. – Disse enquanto poisava as coisas na mesa.

Ela olhou-o e retribui-lhe o sorriso.

- Obrigada. – Respondeu. – Quem me dera ainda ser menina.

- E, não é? – Galanteou-a ele. – Deve ter pouco mais de 20 anos…

- Pouco mais… - Respondeu ela, deixando-o na dúvida.

Ele sorriu mais uma vez e afastou-se. Tinha outros clientes para atender. Ela pegou na chávena de chá e aqueceu as mãos com ela. Bebericou um gole e deixou-se estar com a chávena nas mãos enquanto partia de novo para dentro de si. A fome fora-se.

Como é que a sua vida tinha chegado aquele ponto? Em qua altura do seu casamento as coisas descambaram? Fazia um esforço enorme para encontrar o ponto de rotura e não conseguia. Lembrou-se de Amália. Ter-se-ia passado o mesmo com ela? Ter-se-ia o casamento dela desmoronado pouco a pouco ou teria havido uma rutura? Fosso o que fosse que se tivesse passado, ela tinha conseguido recuperar, pelo que sabia ela sempre estivera casada com o Alfredo. Dele tivera o filho e dele tivera o neto. Seria ela capaz de fazer o mesmo?

Rui chegou atrasado. O imbecil do seu chefe, lembrara-se de o encarregar de um assunto à ultima da hora e para piorar as coisas o seu telemóvel tinha ficado sem bateria e não tinha conseguido avisar Alice do sucedido, assim, foi com alivio, que a encontrou sentada, junto ao lago com uma caneca entre as mãos, perdida nos seus pensamentos. Os últimos raios de sol, iluminavam-lhe o rosto, fazendo ressaltar os seus cabelos ruivos, num pele branca ponteada com um ou outra sarda que lhe davam um ar miúdo. Deixou-se estar por uns instantes a observá-la. Ela como que a pressentir-se observada, mexeu-se ligeiramente, e o sol, insidioso, provocador, fez brilhar na mão dela, a aliança de casamento que ele até então nunca tinha reparado, o que lhe causou um mau estar que ele não soube explicar.

- Rui! – Exclamou ela levantando-se e acenando-lhe.

Ele engoliu em seco a emoção que acabara de sentir e forçou um sorriso, aproximando-se.

- Desculpa-me o atraso. Tive uma chatice de última hora e ainda por cima fiquei sem bateria no telemóvel. – Desculpava-se ao mesmo tempo que a cumprimentava com dois beijinhos no rosto.

- Não faz mal. Fiquei aqui a pensar na vida. – Respondeu ela sentando-se.

Ele imitou-lhe o gesto.

- Então? – Perguntou.

Alice não teve tempo de lhe responder. O empregado simpático aproximou-se da mesa.

- Então? A torrada ainda aí está? Intacta? Tem de se alimentar…- Metia-se com ela enquanto aceitava o pedido dele. – Olhe que saco vazio não se aguenta de pé.

- É verdade. – Ela sorriu e deu uma dentada na torrada. – Já está fria. – Queixou-se.

- Eu trago-lhe outra. – Respondeu ele simpaticamente.

- Não é preciso. – Retorquiu ela.

- É sim. Uma menina tão bonita, não pode ficar a passar fome. – Afirmou com um ar de galanteio divertido e afastou-se em direção ao café.

Alice sorriu embaraçada para Rui que a tudo assistia calado.

- Então, o que se passa? Já vi que não estás bem. – Apontou com o olhar para a torrada fria.

Ela assentiu com a cabeça.

- De facto não estou. E por isso vou afastar-me.

- Mas o que se passou? – Quis ele saber.

E ela contou-lhe. Contou-lhe as suas dúvidas, os seus receios, as suas apreciações, e o facto de não estar a lidar bem com aquilo na fase da vida em que se encontrava.

- E que fase é essa? Posso saber?- Perguntou e deu-se conta que estava de facto interessado em saber, não por ele, não pela avó, mas por ela. Interessava-se de verdade pelo  que ela sentia.

- São coisas minhas. Aborrecidas. – Recusava-se a responder.

- Não vou insistir, mas se puder ajudar…

Amália, entretanto, recorria novamente ao diário.

Ai, nem posso acreditar. Aconteceu!!!! E foi…mágico. Tão mágico que temo que se falar disso, isso desapareça. Puff!!! Que se evapore no ar. Mas não. Foi demasiado real. Tão real que ainda o sinto, dentro de mim. A vibrar. A fazer-me vibrar.

Nunca eu pensei que se pudesse sentir algo assim. Sinto nas minhas mãos as costas dele, largas, fortes, protetoras, nos meus lábios, os lábios dele, famintos, meigos, exigentes, nas minhas pernas sinto as dele, fortes, vigorosas, mexendo-se ao meu ritmo, ao nosso ritmo, levando-me para lá do meu ser.

Um amor destes não pode ser proibido. Não pode. Nós não temos culpa de só nos encontrar-mos depois de estarmos casados. Não é nossa culpa. Até no conhecermos nenhum dos dois sabia ser possível sentir-se assim.

O que fazer agora? Tenho pena do Alfredo. Ele não merece isto. Da mulher dele não. Ela é uma víbora. É má! Mesmo má! E perigosa…

Sinto na minha pele o cheiro dele. Não o quero tirar. Será que o Alfredo o notará? Parece-me tão intenso. Acho que nem com um banho, nem com 20 banhos, ele sairá…

Rui decidiu-se. Depois da conversa que teve com Alice, decidiu que iria tentar uma última cartada. Tinha de ser. Tinha de resolver isto de uma vez por todas. Esperou uns dias para se organizar mentalmente e resoluto foi ter com a avó. Encontrou-a no quarto junto ao diário.

- Olá Amália! – Cumprimentou-a com um beijo no rosto, fugindo aos lábios que ela lhe oferecia. – Temos de falar.

Ela de imediato se afastou. Altiva.

- Sim? E o que me queres dizer?

Ele não estava à espera desta reação e ficou um pouco atrapalhado.

- Hum, isto que nós temos não pode continuar. Tu és casada!

- Sim, e tu também. – Respondeu-lhe ela de pronto.

Ui! – Pensou ele. – Isto é pior do que eu pensava.

- Então. Mais  razão me dás! – Sentou-se na cadeira e estendeu-lhe a outra para ela se sentar. Ela recusou.

- Como é que podes falar assim depois do que aconteceu? – Os olhos dela chispavam de raiva e de dor. – Depois de tudo o que me disseste?

Ele tornou a engolir em seco. Aquilo estava a ser mais difícil do que previra, e estava sem saber por que caminho ir.

- Ouve.- Tentava improvisar. – O que aconteceu, não foi correto. Pensa no teu marido. Ele não merece isto. – Atirou “o barro à parede”.

Ao ouvir isto, ela sentou-se. Ele tocara-lhe no ponto central, mas mesmo assim respondeu-lhe com ironia:

- E foi preciso tanto tempo para chegares a essa conclusão?

E agora? – Perguntava-se ele. – O que dizer?

- Já te esqueceste das promessas que me fizeste? – Ela sibilava com fúria. – Mas vai-te. Se é isso que queres vai. Vai para os braços daquela que matou o teu filho, vai.

Rui levantou-se. Não sabia mais o que dizer.

- Desculpa-me. – Foi só o que souber pedir com sinceridade. E saiu sentindo-se o mais miserável do seres.

“Todo o mal tem um castigo” – Isso já mo dizia a minha mãe, e eu hoje pude comprová-lo. Ele veio aqui, teve a coragem de vir aqui, à minha casa, dizer-me que temos de parar de nos ver! Depois de tudo o que passamos juntos, depois das juras que fizemos.

Estive quase, quase, a contar ao Alfredo. Quase a sair de casa. Olha se o tivesse feito. Como é que iria ser? Sozinha e com um filho no ventre? Não lho disse. E não lho vou dizer. Nunca mais quero olhar para a cara dele. Nunca!!!

Alice não conseguia esquecer Amália. A semelhança entre a sua vida e o passado que ela julgava ser o de Amália, faziam-na sentir-se ligada a ela. Assim, uns dias depois da conversa que teve com Rui, e depois de uma feia discussão que teve com o marido a propósito de nada, resolveu ir visitá-la.

Encontrou-a sentada no banco que era o seu favorito, a olhar para o lago. O choque que sentiu ao vê-la causou-lhe uma forte sensação de desconforto. Amália estava visivelmente mais magra, e os seus olhos tinham o brilho apagado. Teve uma vontade enorme de a acolher nos seus braços, mas retraiu-se. Ainda se lembrava como se tinham despedido…

- Olá! - Disse-lhe sentando-se ao seu lado. – Como tens passado? Ainda estás zangada comigo? - Sorriu-lhe.

Amália olhou-a durantes uns segundos como que a processar de onde conhecia, e o que conhecia daquela pessoa. Depois, abriu um sorriso triste e respondeu olhando de frente para o lago.

- Olá Ana. Não, não estou zangada contigo. Aliás nem me lembro de ter estado. Sabes, de há uns tempos para cá a minha memória parece falhar. Não me recordo de algumas coisas e faço confusão com outras.

- Se calhar é falta de descanso. – Trivializou Alice.

- Achas? – perguntou meio irónica,  meio dececionada. – Porque é que eu, que nós nos zangámos?

- Ora por nada. Uma tolice. Já passou.

- Diz-me. - Virou-se para ela. – Quero saber.

Alice respirou fundo antes de responder.

- Por causa do teu diário.  Peguei nele e tu acusações-me de o querer ler sem a tua permissão.

- E não querias? – A pergunta foi feita num tom simples, sem segundas intenções, e Alice corando não lhe conseguiu mentir.

- Queria sim. Mas era para te ajudar. Por causa dessas falhas de memória de que te queixas…Queria tentar perceber o que te deixa tão angustiada de há uns tempos para cá.

Amália sorriu-lhe e deixou-se ficar calada por alguns momentos. Depois, levantando-se, despediu se dizendo-lhe:

- Um dia conto-te tudo.

 

 




 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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