Amália 6

 

Segunda feira chegou, e Rui sentia-se eufórico, como se o encontro que fosse ter com a Alice, fosse a chave para todos os seus problemas. Na sua cabeça, ela dir-lhe-ia como proceder, e a partir daí, tudo ficaria resolvido. Estava ansioso para que as seis da tarde chegassem.

Já Amália, que tinha estado tão bem desde que começara a nova terapêutica, teve um retrocesso semi inesperado.

Alice foi encontrá-la mais uma vez a escrever no seu diário, mas desta vez ela não o escondeu. Fechou-o apenas, com um olhar desafiador,  indicando-lhe assim que aquilo era privado. Não era para outro alguém, que não ela, ler.

- Olá Amália,  como se sente hoje? – Alice cumprimentou-a com um sorriso aberto, enquanto entrava no quarto.

- Olá Ana. Estou mais ou menos. Mas porque raio me estás a tratar por você?

- Tratei? Foi sem querer, hábitos…

- Hum… - Fez um ar de quem não acreditava, mas continuou a conversa. - Resolvi seguir o teu conselho e escrever um diário– Indicou com a ponta da caneta o caderno pousado em cima da mesa, não se lembrando que já lhe tinha contado.

- Sim? E então? – Alice não mencionou o facto, e aproximou-se dela, que se afastou, e se sentou na cama, convidando-a a fazer o mesmo.

Ela aceitou o convite, e sentou-se aos pés da cama, de pernas cruzadas e costas encostadas aos pés da mesma. Quem as visse, tomava-as por duas amigas de longa data, sentadas a conversar sobre tudo e sobre nada.

- Então, - Ajeitou-se na cama para se pôr mais confortável. - É bom por um lado, liberta-nos tal como disseste, mas por outro é uma fonte de preocupação. Se alguém o ler, a coisa pode tornar-se complicada. E também não é fácil pôr em papel o que pensamos, torna a coisa real.

Alice sorriu e não pode deixar de concordar e de pensar ao mesmo tempo como é que é possível que a nossa mente esteja tão “estragada" por um lado e tão “lúcida “ por outro…

- E o que é que lá dizes que não possa ser lido por outros? - Sondou-a.

- Se te dissesse deixava de ser privado, não achas?

Alice assentou mais uma vez com a cabeça e disse para si:

- Ora toma, e embrulha! Quem tudo quer saber nada se lhe diz!- Lia-lhe nos olhos vivos e com um ar divertido que a encaravam à espera de uma reação.

- Mas, podes falar comigo, somos amigas e as amigas não têm segredos.- Falou como se tivesse uma criança à sua frente.

- Achas tu! Eu, por exemplo, sei muito pouco acerca de ti. Só te conheço desde que me apresentaste o Feliciano. Achas que isso é sermos amigas?

Alice já não teve tempo de lhe responder. O seu telemóvel tocou. Era a enfermeira chefe, o doente do quarto 5 precisava dela com urgência. Tinha de ir.

- Somos sim, mas agora tenho de ir.

- Onde vais?

- Tratar de um assunto. Não demoro.

Alice saiu e Amália voltou ao seu diário: 

Sabes, ela quer que eu lhe conte sobre o Feliciano. Está desconfiada, mas eu não lhe conto. Às vezes apetecia-me, ter alguém com quem desabafar, mas se o fizer estou a trair o Alfredo e ele não merece. Mas também porque é que ele tem de ser tão distante? Só se preocupa com o trabalho,  nunca diz que não ao chefe dele. Parece que lhe tem medo. Às vezes até me mete raiva a maneira como ele se subjuga. E o outro abusa. Claro!!! E eu fico para trás… Estou tão farta de estar sozinha. Às vezes sinto-me como uma viúva com um marido vivo!

O Feliciano mete-me pena. Anda sempre com uns olhos tristes,  embora esteja sempre a sorrir e bem disposto. Eu sei que ele não é feliz. Também com aquela bruxa como mulher…

É que ela é mesmo má!!!

Como é que ele se foi casar com ela?

Tenho vontade de lhe dar um abracinho e de fazer com que aquela tristeza lhe saia dos olhos… Mas não posso. Ou posso?

Isso é trair o Alfredo, ou consolar um amigo?

Era este tipo de coisas que queria perguntar à Ana, mas não posso. Não devo….

Rui chegou ao café antes da hora. Sem cabeça para trabalhar, meteu a tarde livre e foi caminhar um pouco junto ao rio, ver os barcos a passarem, os turistas a rirem-se, as vendedoras com os seus pregões brejeiro, os jovens a namorar, enfim, ver um pouco da vida normal. Da vida feliz, daquela vida da qual ele fazia parte até à pouco tempo…

- Boa tarde! – Alice cumprimentou-o com dois beijinhos no rosto, enquanto Rui lhe estendia a mão.

Rui atrapalhado, correspondeu ao cumprimento, enquanto que Alice se afastava e estendia ela a mão para o “passou bem” da praxe.

Riram-se os dois do equívoco que serviu como “quebra gelo”, e sentaram-se de frente para o rio.

- É engraçado como nós vimos e vamos e os rios e as montanhas e os campos ficam. Vêm-nos nascer, crescer, rir, chorar, viver, cometer erros, repara os erros, tornar a viver e depois morrer, oferecendo-nos o seu leito, os seus braços para nos acolherem, quer na vida quer na morte. Mesmo com todo o mal que lhes fazemos.

- É verdade. – Concordou Rui sem prestar muita atenção. Queria falar da avó e do seu problema. Não estava com paciência para observações filosóficas.

Alice percebeu e calou-se.

- Desculpe. – Disse ele passado um bocado. – Não quero ser indelicado, mas esta situação da minha avó tem-me tirado o sono. Não consigo lá ir, não consigo dormir, ando irritado e sinto-me mal e culpado.

- Culpado? De quê? A culpa de nada disto é sua.

- Culpado de a abandonar. Mas é que ela está cada vez mais atrevida, e isso é muito esquisito.

Fez um esgar de horror no gosto e o seu corpo sofreu um arrepio involuntário.

- Pois a sua mãe também já lá não vai. A última vez que lá foi, ela fugiu e foi um cabo dos trabalhos para a encontrar. Estava escondida e cheia de medo. E o pior é que não a conseguimos pôr a falar do assunto.

- Eu sei… - Rui sentia-se cada vez pior.

- Temos mesmo de perceber o que se passou, para tentar deslaçar o medo. E o mais engraçado, sem graça nenhuma, é que com este novo ajuste terapêutico, ela só tem surtos quando está com um de nós os três. Comigo, consigo ou com a sua mãe. Com o seu pai está “normal”.

- A sério? E então? O que isso significa? O que devemos fazer?

Rui esperava ansioso por uma resposta milagreira.

- Não sei bem. Acho que deve continuar a fazer o papel de Feliciano e tentar perceber o que se passou, e quem sabe mudar o fim da história.

Rui olhou-a chocado. Não era esta a resposta de que estava à espera.

- Continuar?! Mas assim estou a enganá-la. E se ela se tornar…atrevida?! Como é que eu faço? – Fez um esgar de nojo com o rosto e o seu corpo estremeceu de repulsa.

Alice riu-se.

- Desculpe, não me leve a mal, mas a imagem da Amália atrevida deu-me graça.

Rui olhou-a zangado.

- A sério desculpe. – Repetiu agora mais séria. – Se ela se tornar atrevida tem de a contornar, afastar, inventar desculpas como as que tem inventado até agora.

- Não, não, não. – Abanava a cabeça para reforçar o horror que a ideia lhe causava.

Alice encolheu os ombros.

- Podemos sempre desistir, e não insistir mais no assunto. – Deu um gole no sumo que, entretanto, tinha chegado.

Rui mexia o café frio e por beber.

- Mas assim ela continua a sofrer, não é? A reviver o tal passado…

Alice acenou com a cabeça. Ele respirou fundo, como se com o ar entrasse também a ideia da aceitação.

- Não sei o que fazer…

- Seja o que for que decidir eu não julgo. – Agarrou-lhe a mão num gesto automático, mas que o fez sentir-se reconfortado.

- Mas julgo-me eu… - Olhou-a nos olhos a pedir-lhe apoio.

Ela sorriu-lhe, e ele viu como os olhos dela eram meigos e expressivos. Castanhos e grandes, quase escondidos por umas pestanas longas e belas.

- Não tem de decidir já. E pode sempre voltar atrás na decisão que tomar, caso não se sinta confortável com ela.

- Como é que ela tem andado?

Alice percebeu a intenção da pergunta e resolveu ser o mais sincera possível.

- Olhe, no início, com a mudança de esquema terapêutico, parecia que estava bem, equilibrada, mas depois, há uns dois ou três dias para cá retrocedeu, e até espatifou com uma cadeira porque uma auxiliar não a deixou sair da quinta. Queria a todo o custo ir a algum sítio que ninguém chegou a saber onde. O meu receio é que qualquer dia...

- Qualquer dia?

- Qualquer dia consiga sair. Sabe, apesar de tudo ela é muito inteligente, e esperta, e não há nenhuma instituição 100% segura. Digam o que disserem.

- A sério? – Rui estava assustado. – Mas e os muros, e os seguranças?

- Estão lá e fazem o seu trabalho muito bem, mas pessoas como a sua avó… pessoas como a sua avó um fenómeno da natureza, passo a expressão, são muito astutas e estão habituadas a terem o que querem.

- Mas já fugiu alguém?

- Não. Que eu tenha conhecimento não. Mas as pessoas que lá estão, ou estão demasiado debilitadas, ou estão ainda bem e estão lá por vontade própria. Provavelmente estou a exagerar, mas a verdade é que a sua avó impressionou-me muito…

- Pronto já percebi, já sei o que vou ter de fazer. – Disse Rui com um ar tão miserável, que Alice espontaneamente, levantou-se e deu-lhe um abraço.

Nenhum dos dois falou. Não havia mais nada a dizer acerca do assunto.

Pelo menos por enquanto…

 


 

 

 

 





 

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