Amália 4


- Pode, claro que pode. Pode falar com qualquer um dos três, é igual.

Alice assentou novamente com a cabeça.

- Não me julgue mal, mas eu pensei…

- Sim?

- Bom. Eu pensei. – Entrelaçou as mãos para esconder o embraço pelo que ia contar. – Eu pensei em sugerir-lhe que fizesse um diário. Se ela aceitasse, talvez fosse mais fácil seguir um fio condutor das memórias delas.

- Isso parece-me uma excelente ideia. Não sei até se ela não terá algum. – A irritação de Rui tinha desaparecido por completo.

- Penso que não. Tomei a liberdade de a sondar e ela não o mencionou, até achou a ideia meio estranha, mas acho que o importante agora era ela escrever o que pensa e o que sente “hoje”. – Mais uma vez fez aquele gesto com os dedos a indicar que a palavra “hoje” tinha um duplo sentido.

- Mais importante do que saber ao certo o passado. Para mim o passado deve ficar onde está. No passado. O problema aqui, é que ela está genuinamente assustada, e talvez se escrevesse sobre isso, nós a pudéssemos ajudar. Estou a fazer sentido?! – Perguntou com um olhar meigo.

Rui, inconscientemente, ajeitou-se na cadeira e chegou-se mais à frente numa atitude conspiratória.

- Sim, sim, todo o sentido. Qual é o problema então? Não estou a ver nenhum…

- O problema está no facto de que, para a ajudar, temos de lê-lo, e não sei se ela nos o mostrará de livre vontade. E se não o fizer…

- Se não o fizer…

- Se não o fizer, teremos de o ler às escondidas e isso não é nada ético.

Rui, mais uma vez inconscientemente, endireitou-se na cadeira. O seu corpo a expressar o repugnância pelo ato.

- Pois não.

- Mas é para o bem dela, não é verdade?- Perguntou logo de imediato tentando buscar consolo para o ato que ele desprezava.

- Sim, mas isso tem implicações legais. Por isso peço-lhe que fale com os seus pais, e que pensem bem antes de decidirem, até porque pode dar-se o caso de se descobrir coisas desagradáveis.

- Coisas desagradáveis? Como assim? Não! A minha avó era, é, “um poço de virtudes”. Com isso não me preocupo. Mas irei falar sim.

- Certo. Fico então à espera de uma resposta vossa. Boa tarde. – Levantou-se e estendeu-lhe a mão dando a conversa por terminada.

- Boa tarde. – Imitou-lhe os gestos e retribuiu o cumprimento.

 

Hoje apanhei-o outra vez a olhar para mim e toda eu estremeci. Não sei porquê, afinal não é como se fosse a primeira vez que nos víssemos, mas…não sei explicar, o meu coração bateu muito depressa, e tão alto que por uns instantes receei que eles o ouvissem.

Cá em baixo senti um desejo tão forte, que tive de me agarrar ao balcão para não ir ter com ele. Mas o que raio é isto? Se eu contasse à Ana, dir-me-ia me que era falta de sexo. Já estou mesmo a vê-la, a levantar a sobrancelha e a gozar comigo à força toda. Será? Hoje à noite vou procurar o Alfredo. Realmente há uns tempos que não nos amamos, mas também…

Ainda bem que não me podes ver, estou a sentir a cara a arder. Alguma vez eu pensei em falar assim? Mas a Ana tem razão, isto é, Li-ber-ta-dor!!! Só tenho de ter cuidado para que ninguém te leia…

Alice foi encontrar Amália sentada na mesa do seu quarto a escrever. Estava tão embrenhada naquilo que fazia que não deu pela sua presença até que ela suavemente lhe tocou no ombro.

- Boa tarde! Está boa?! O que está a fazer tão entretida que nem me ouviu chegar??

Alice começava sempre uma abordagem formal quando se dirigia a Amália, pois nunca sabia em que tempo ela se encontrava. Ela, porém, como uma miúda apanhada em falso, escondeu apressadamente o caderno, por baixo de uns livros que estavam na secretária, e levantou-se:

- Ó, estava só a ler. Mas está uma tarde tão boa, que é pecado ficar aqui. Vamos dar uma volta?

Notava-se a pressa em sair dali, e Alice sorriu. Tinha percebido que ela estava a escrever e calculou que tivesse seguido a sua sugestão de fazer um diário, mas não disse nada acerca disso. Ao invés, enfiou o braço no braço dela e caminhando para fora do quarto disse:

- Tem toda a razão. Vamos lá dar um passeio. – Concordou animada.

- Olha - Disse-lhe Amália quando passavam em frente ao lago para irem ao pomar. – Hoje fiz o que me disseste.

- Aí sim? O quê? – Alice não se desmascarou.

- O diário. Comecei a escrever um.

- E que tal? – Perguntou com um ar conspirador.

- Tinhas razão. – Sorriu envergonhada. - É libertador, se bem que ainda me custa escrever algumas coisas, mas depois sinto-me mais leve.  Como se as minha dúvidas e receios tivessem saindo de dentro de mim.

- Já te sentes melhor?

Amália, continuou a caminhar com os braços atrás das costas e respondeu com um acenar da cabeça afirmativo.

- É claro que já regressaram outra vez. – Disse uns passos mais à frente de Alice que tinha ficado para trás para ver umas plantas.

- Hã?

- Os medos e as dúvidas.  Voltaram para dentro do meu peito, mas vêm mais fracas, acho eu.

- Ah! E que medos são esses? – Devagar tentava tirar “nabos da púcara”

- Não te consigo dizer. É algo que sinto, mas ainda não compreendo.

Alice anuiu com a cabeça e apressou-se a ir ter com ela.

- Isso é coisa séria?

- Não sei. – Deu a volta a uma macieira e voltou para trás.

- Boa tarde Amália! - Cumprimentou-a o sr. Luís que ali vivia como ela há um par de anos.

- Boa tarde Luís! – Amália retribuiu o cumprimento.

- Como está o Alfredo? - perguntou-lhe Alice num rasgo de inspiração.

- Está bem.  Acho…

- Achas? Como assim?

- Ó, tu já sabes como ele é.  É um homem de poucas palavras. Sempre foi, mas agora anda mais taciturno do que o costume.

- Serão problemas no trabalho?

- Não. Já lhe perguntei.

- Então, com algum amigo?

- Também não. Boa tarde, Rosa. – Cumprimentou uma senhora mais nova do que ela em idade e em permanência no lar.

Alice estranhou este reconhecimento das pessoas de hoje. Ela parecia estar no passado, mas reconhecia as pessoas do presente como sendo do presente. No entanto falava com ela como se fosse do passado. Porquê? Que mecanismo era aquele que a levava a fazer essa distinção? Como é que era possível oscilar entre o passado e o presente daquela forma? Estava a ficar cada vez mais intrigada. Porém, resolveu não insistir mais. Teria de ser ela a sentir-se à vontade para falar.

Caminharam mais um pouco, e de repente, Amália parou e olhou fixamente para o fundo do jardim. O seu rosto encheu-se de vermelho, e os seus olhos aumentaram de tamanho para iluminarem melhor a mente. Alice seguiu-lhe o olhar. Era Rui quem lá vinha.

- Feliciano? – Murmurou Amália.

- Hã? – Alice não percebeu.

- É o Feliciano que lá vem. Meu Deus. Diz me como estou. Estou bem? – Alisava o cabelo e compunha o vestido.

- Hum. Sim, sim. Estás muito bem. – Alice estava intrigada e divertida ao mesmo tempo. - Quem é o Feliciano.?

Mas Amália já não a ouvia. A correr ligeira, mais ligeira do que a sua idade lhe permitia, foi ter com ele. Ao aproximar-se, porém, parou e começou a apanhar flores de um arbusto, como se estivesse ali por acaso. Quando Rui se aproximou mais um pouco, levantou a cabeça e exclamou coquete.

- Feliciano! Por aqui? Não esperava ver-te. Como estás?

Rui estacou e demorou um pouco a processar o que ouviu, depois, olhando para Alice que se aproximava também, sorriu forçadamente e respondeu:

- Bom dia Amália.  Estava por aqui só a passear. Como estás?

- Bem…- Respondeu olhando para o chão com falsa modéstia. – Queres ir tomar um café?

Rui olhou para Alice.  Como reagir a isto?

Alice fez-lhe sinal que aceitasse.

- Hum, sim…!?

- Que bom! Vamos.!



 

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