Amália 5

 

Sem esperar por ele, avançou em direção ao salão de chá que o lar oferecia às visitas e aos doentes que se encontraram num estado de razoável saúde.

Ele, sem pensar bem, sem pensar sequer, para sermos sinceros, correu atrás dela como se outra hipótese não existisse.

Quando lá chegou, espantou-se com o à vontade que ela demonstrava. Obediente, sentou-se na cadeira que ela lhe indicou, enquanto que ela, muito agilmente, se dirigia ao balcão e pedia dois cafés, deixando-o a pensar se o retrocesso que ela fazia, além da mente, não seria também do físico.

É que não se lembrava de a ver assim tão expedita há muito tempo.

Ela chegou com os cafés e sentou-se. Olhou em volta como que a certificar-se de que ninguém os conhecia, e, de repente, enquanto o neto bebericava o café, disse-lhe muito pragmática

- Eu sei que não nos conhecemos muito bem, mas tenho reparado em ti e nesse teu ar triste, e tenho visto que também tens reparado em mim.

Calou-se, e olhou-o à espera de uma reação por parte dele, e como ele continuava calado esperando que ela desse seguimento à frase, ela tomou isso como um sinal de timidez e encolhendo os ombros e suspirando em sinal de resignação continuou:

- Olha, já percebi que és tímido, mas comigo podes estar à vontade. Posso ser tua amiga e podes desabafar comigo.  Tenho ouvido algumas coisas acerca de ti.

- Ai sim? O quê? – Rui sem se aperceber entrara na personagem.

- Ó, coisas. Sabes como são as pessoas. Falam de tudo e de todos, especialmente quando alguém não está bem.

- E quem não está bem? Eu?

Ela não respondeu, e ao invés disso começou a mexer o café que já estava frio.

- Sabes,- Agora era ele quem falava – Não deves acreditar em tudo o que ouves.  Eu sou feliz.

- À minha maneira.- Acrescentou passado alguns segundos e arrependendo-se de imediato de o ter feito. Mas o que é que lhe estava a dar?

Ela olhou-o com uns olhos meigos que o fez estremecer.

- És de verdade?

Tendo consciência de que tudo aquilo era muito estranho, ele levantou-se abruptamente.

- Olha,  gostei muito deste café,  e obrigado pela tua amizade, mas tenho de ir. Vemo-nos por aí está bem?

E apressado, saiu da sala, rumo ao portão da quinta. Ia quase a chegar lá,  ao mundo real, quando foi chamado pela Alice.

- Rui, Rui.

Ele voltou-se mais do que aborrecido, assustado.

- Sim? – Parou à espera dela.

- Então já se ia? O que se passou ali dentro? Ela ficou tão triste…

Rui sentiu uma pontada no peito. Magoar a avó era algo que ele não consentia, mas aquilo estava a ser demasiado complexo para ele saber o que fazer.

- Olhe. Eu agora não consigo, não quero falar disto. Preciso de apanhar ar e pensar um pouco. Podemos marcar um encontro fora daqui? No mundo real?

Alice olhou-o com pena.

- Sim, claro que sim. Quando quiser diga-me e eu tento encaixá-lo na minha agenda. Tem o meu telefone não tem?

- Tenho sim. Obrigado. Boa tarde.

- Boa tarde.

 Quem me manda a mim,” pôr o carro à frente dos bois”???? – Amália desabafava no papel. – Que figura triste fiz. Eu cheia de boa vontade de o consolar, e ele “põe-me no lugar”?!? Ele que espere. Não torno a olhar sequer para a cara dele!!! – Atirou com a caneta para o chão e com o caderno para a cama. Depois, saiu do quarto muito mal disposta, e foi até ao pomar onde começou a escavar um buraco com quanta força tinha, e assim continuaria, provavelmente até chegar à Austrália,  não fosse o Rosário, o jardineiro, a ir ter com ela e a pará-la.

- Amália! Pare! O que tem? – Perguntou-lhe retirando-lha a pá da mão com alguma dificuldade.

- Eu? Eu, não tenho nada. – Mentiu. – Eu só quero, só quero…

E de repente começou a chorar, a chorar compulsivamente e de tal forma, que Rosário decidiu levá-la até à enfermeira para que ela tomasse conta do assunto.

- Não quero comprimidos. – Disse Amália entre soluços. – Deixem-me ir para o meu quarto, deixem-me chorar.

- Mas o que se passou? – A enfermeira tentava perceber a causa de tanta angústia.

- Nada, nada. Sou só eu, aqui, presa. Ao que cheguei!! Nem sei onde estou nem onde pertenço. Deixem-me estar sozinha por favor, mas sem comprimidos. Deixem-me sossegada.

O olhar dela foi tão lucido e suplicante que a enfermeira acedeu e levou-a até ao quarto, não a vendo mais, até ao outro dia de manhã, quando a chamaram para o pequeno almoço e Amália pediu para falar com ela.

- Bom dia! Sente-se mais bem disposta? – Cumprimentou-a com um sorriso no rosto.

- Não. Mas tomei uma decisão.

- Ai sim? Qual? – A enfermeira que a admirava pela força e caracter que ela sempre demostrara, sentou-se e dedicou-lhe toda a sua atenção.

- Eu quero ir novamente ao psiquiatra e quero que ele me altere a medicação. Ontem confundi o meu neto com… Com alguém do meu passado, e isso causou-me um grande transtorno.

- Ah! Então foi por isso que chorou daquela maneira? Pelo homem do seu passado?

As faces de Amália tornaram-se vermelhas traindo aquilo que os seus lábios responderam.

- Não. Fiquei assim porque, porque, porque me apercebi que estou cada vez mais longe do presente, e se forem precisos comprimidos para me ancorarem a ele, que seja. Venham eles.

E dito isto, fixou o seu olhar no olhar da enfermeira, que não o conseguiu suster por muito tempo. Era um olhar implacável, um olhar de que está habitado a ser obedecido, mas ao mesmo tempo um olhar suplicante, um pedido de ajuda.

Comovida, ela acabou por concordar acenando com a cabeça.

- Muito bem. Irei falar com a sua família para que marquem uma consulta. Ou, quer falar a senhora?

- Não. É melhor ser a sra. enfermeira a falar. Quem sabe como eu estarei quando os voltar a ver.

E, dando a conversa por terminada, afastou-se deixando na sala uma sensação de que uma rainha partia em direção ao cepo, mas de cabeça erguida.

- O que é que o médico disse? – Rui perguntava aos pais ao  jantar.

Desta vez ele não pudera ir à consulta, com grande pena pois tudo aquilo que estava a acontecer estava a ser demasiado para conseguir lidar com o caso de uma forma leve. Mas o trabalho nos dias de hoje é implacável, ditador, egoísta, tem de se sobrepor a tudo e a todos sob a pena de se ir embora. Sabendo-se necessário, faz pressão e chantagem obrigando os pobres humanos a obedecerem-lhe como escravos presos pelas correntes.

- Aumentou-lhe a dose de uns comprimidos e alterou-lhe outros. Diz que é uma doença ainda não muito estudada, pelo que lhe está a dar remédios para demências parecidas, mas não iguais.

- Como assim?

- Ainda não existem medicamentos específicos para este sintoma, não me lembro do palavrão que ele usou para o nomear, e por isso está a experimentar esquemas terapêuticos usados em outras demências mais conhecidas, e que se assemelham a esta.

- Experimentar? – Rui sentiu uma fúria  a crescer no seu peito.

- Calma. Já sabias disto. Não percebo esta confusão toda. – A mãe tentava acalmá-lo. – O homem faz o que pode e o melhor que sabe. Eu quando lá vou acho-a muito bem, tendo em conta todo o cenário.

- Passa-se alguma coisa? – O pai mais atento, e mais parecido com o filho, ignorou o comentário da mãe quis saber a causa da reação tão inusual do filho.

- Não, não. Nada. Estou só cansado. Desculpem, vou-me deitar. Até amanhã.

- Até amanhã. - Respondeu-lhe a mãe. – E vê se trabalhas menos e vives mais. – Falou-lhe em jeito de advertência carinhosa. – A vida não é só trabalho.

Rui deu um beijo em cada um dos pais e foi para o quarto.

- Boa noite, desculpe a hora tardia. Seria possível reunir amanhã? Obrigado. – Perguntou por mensagem à Alice, e, não esperando resposta imediata, atirou com o telemóvel para o sofá e deitou-se por cima da cama, exausto.

Adormeceu quase de imediato, mas não teve o sono reparador que a sua exaustão merceia e lhe pedia. Ao invés disso, teve sonhos atribulados, sem nexo, em que a avó tinha a cara da Alice e ele beijava a Alice que se transformava de novo na avó o que o levou a acordar a meio da noite, com o coração a bater descompassadamente, transpirado e a respiração ofegante. Desorientado, sentou-se na cama e olhou em volta. A luz azul do telemóvel a piscar, captou-lhe a atenção. Tinha uma nova mensagem.

Ansioso por regressar “ao mundo real”, levantou-se e foi ver de quem era.

Era da Alice:

- Olá Rui. Espero que esteja bem. Esta semana é-me impossível, mas segunda feira tenho a tarde livre. Dá para si? Cumprimentos.

Desanimado, voltou a atirar com o telemóvel para o sofá e foi até à cozinha beber um copo de água. Queria falar com ela, perguntar-lhe coisas.

No outro dia estava com a cabeça quente e não conseguia falar, mas agora era ao contrário. Agora queria falar, agora precisava mesmo de falar. É que tinha ganho medo de lá ir, de estar com a avó.

Se por um lado, não a queria ver por causa da situação constrangedora em que ela os colocava sempre, por outro sentia-se um crápula, pois se fosse a situação inversa, ela não o deixaria…

De volta ao quarto resolveu responder-lhe:

 

- Olá Alice, segunda feira está bem. Diga me a hora e o lugar que eu farei para lá estar. Obrigado. 



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