Matilda 9
- Então, o que te traz por cá? – Jacques
sentou-se ao lado de Matilda e falava como se estivessem sentadas numa
esplanada a beber um café.
Matilda olhou-a pensativa, confusa. Como
era possível ela falar assim? Com aquele à vontade? Como se estar ali, fosse
uma escolha, um sítio turístico que se visita numa tarde de verão. Poderia
confiar nela? Deveria sequer falar com ela?
Como se lesse o seu pensamento, Jacques
sorriu de uma forma que a tranquilizou.
- Bem.- Começou em português. – Eu sei
que todas dizem o mesmo, mas eu sou mesmo inocente! – Afirmou com convicção.
Jacques acenou com a cabeça.
- Foi no aeroporto… - E sentindo que as
palavres não lhe obedeciam, deixou-as sair livremente, contando-lhe tudo, desde
a morte dos pais, até aquele dia, libertando-se de um peso que muitas vezes a
empurrara para a beira do abismo.
- Mas desta vez, não fiz nada. Juro!
A porta da cela abriu-se, não dando tempo
a Jacques de se pronunciar sobre o que acabara de ouvir. Era hora do jantar. A
guarda, uma outra diferente da que trouxera Matilda, veio-as buscar.
Foram em fila indiana, todas as
prisioneiras daquela ala, duas a duas, lado a lado. Eram 60. Umas europeias,
outras asiáticas, outras africanas, mas a esmagadora maioria era europeia.
- Tantas europeias. – Matilda comentou
quando a meio do caminho se deu conta do sucedido.
- Chiu. – Advertiu-a Jacques. – Não se
pode falar. Espera até estarmos sentadas. Faz o que eu faço. Não inventes nada.
- Passa-se alguma coisa aí? – A guarda
perguntou-lhes, vociferando.
- Nada, nada. Desculpe senhora. – Jacques
respondeu humilde.
- Então não quero ouvir barulho. –
Determinou a guarda.
Ninguém respondeu. Continuaram em silencio,
corredor fora até irem dar a uma sala retangular com paredes brancas encimadas
por umas janelas pequenas e retangulares que deixavam entrar alguma luz, mas
não o calor. Embora as janelas fossem pequenas, Matilda olhando através delas,
consegui vislumbrar um céu azul escuro, ponteado por milhares de pontos
luminosos.
- Devo estar num deserto para se verem
tantas estrelas. – Pensou enquanto se dirigia, agora sozinha, para o lugar dos
tabuleiros.
À sua frente, Jacques ia guiando-lhes os
paços, dando-lhe orientações como se movimentar de modo a não chamar muita
atenção. Quanto mais passasse despercebida, melhor seria para ela. – Avisou-a.
Olhando para um balcão com três tipos de
comida diferentes, que ela não soube identificar, e olhando para as que se iam
servindo, Matilda, percebeu que teria direito a um sumo ou água, ou chá (assim
lhe pareceu um liquido castanho, límpido, do qual algumas se serviam), duas ou
três colheradas, postas por uma guarda de uma das três comidas à disposição, um
pedaço de pão e uma peça de fruta. Sem fome, olhou para tudo aquilo e sentiu
uma náusea a subir-lhe pela garganta. Ao
lembrar-se do conselho para se manter fora das luzes da ribalta, foi com
dificuldade que empurrou o conteúdo estomacal que já se abeirava da boca, de
volta ao seu local de origem.
Quando chegou a sua vez de ser servida,
fez sinal de que não queria a comida, apenas uma peça de fruta. Não conseguia
engolir nada sem garantias que não regurgitasse de seguida.
- Não faças isso. – Aconselhou-a Jacques.
- Não faço o quê? – Perguntou sem
perceber o que estava a fazer de errado.
- Não recuses comida. Aqui é considerado
uma ofensa.
- Mas eu não consigo comer. Já me veio
um vómito à boca. – Desculpou-se.
- Faz um esforço. É melhor para ti. Não
queiras ser vista como uma mal educada. – Pegando-lhe no prato, Jacques
estendeu-o à empregada da cantina.
- Mas…- Ainda tentou
dizer, porém um olhar de Jacques silenciou o resto da frase.
Encolheu os ombros e
aceitou o prato forcando um sorriso.
- Assim sim. Vês como não custa?
Jacques estava a ser
mordaz, e Matilda sabia-o, mas foi incapaz de reagir. Uma tristeza veio
juntar-se ao medo e os dois tolhiam-lhe
as reações.
Segui-a como um cordeiro
até uma mesa, mais afastada da confusão, onde além delas estavam apenas mais duas
mulheres, árabes a julgar pela aparência. Sentadas frente a frente, comiam em
silêncio, de olhos postos nos pratos como se olhar para a comida fosse a coisa
mais importante do momento.
Estranhamente reinava um
silêncio na sala, sendo apenas interrompido pelo som dos talheres e um ou outro
comentário ocasional que alguém fazia.
Jacques sentou-se e ela
sem saber se se deveria sentar a seu lado ou em frente hesitou por uns
segundos, em pé, com o tabuleiro nas mãos.
- Senta-te! – Jacques
indicou-lhe o lugar à sua frente.
Mais uma vez ela obedeceu.
- Queres então saber
porque estou aqui? – Perguntou-lhe em português, ao fim da terceira ou quarta
garfada.
Assustada, e sem estar à
espera, Matilda olhou em redor para ver se alguém tinha ouvido a pergunta. Como
todas continuavam a comer, sem mostrar sinais de perturbação, resolveu-se
responder acenando afirmativamente. Nunca sentira tanto medo na sua vida.
- Não te preocupes. – continuou
Jacques. – Aqui já podemos falar à vontade, e podemos falar em português que
tirando uma ou outra ninguém nos percebe.
- Há aqui mais
portuguesas? – Espantou-se Matilda, deixando que a curiosidade suplantasse o
medo.
- Acho que há mais uma ou
duas, mas estão noutra ala. Já as ouvi falar no pátio, mas não me aproximei.
Não gostei da pinta delas.
Matilda meteu uma garfada
à boca e não respondeu.
- Bem, como te dizia. –
continuou Jacques por entre garfadas. – Estou aqui por uma situação muito
injusta e algo parecida com a tua. – Fez uma pausa para pensar no que deveria
contar e como o deveria contar.
- Eu vim para aqui atrás
de um homem. Conheci-o numa excursão ao deserto. Eram os meus anos, e ele que
era operador turístico, sabia-o. Então preparou-me uma surpresa, afastou-me do
grupo, levou-me a um oásis escondido e abandonado e aí, debaixo das estrelas e
longe de tudo e de todos, jurou-me amor eterno, enquanto me oferecia o amor
carnal. – calou-se, perdida nas recordações e bebeu um pouco de água.
- E então? O que aconteceu
depois? – Matilda já se tinha esquecido do medo e de onde estava, e escutava-a
com toda a atenção.
- Depois, a excursão
acabou, e eu tive de regressar ao meu país.
- Oooh! – exclamou Matilda.
– Mas não entendo. Como é que vieste aqui parar?
- Olha, porque trocámos
telefones e mails, e durante um ano, ele foi o amante mais apaixonado e
fervoroso que possas imaginar. Prometeu-me o céu, se eu deixasse o meu país,
vendesse a minha casa e comprasse uma quinta com ele aqui. Ele deixaria o
emprego e os dois iniciarmos um negócio de turismo rural, um conceito inovador
nestas bandas. Mostrou-me até estudos de projectão e fotos da quintas.
- Não me digas que foste
na conversa dele! – Matilda não queria crer.
- Não, sim. Quer dizer. Eu
não sou propriamente burra. Embora estivesse muito apaixonada, sabia que era um
grande passo, que corria um grande risco. Assim fiz algumas investigações por
minha conta, consultei alguns amigos na área e vimos que até nem era um negócio
assim tão mau. Com uma boa visibilidade até era capaz de ser um sucesso.
- E? – Matilda esquecera a
comida.
- E vim, e comprei a
quinta, e montámos o negócio, apenas com o meu dinheiro, porque quando cá
cheguei fiquei a saber que ele era casado e todo o dinheiro que tinha era para
sustentar a mulher e os quatro filhos.
- Não acredito! Filho da
mãe! – deixou escapar, Matilda num tom de voz mais alto do que devia.
As mulheres que estavam na
mesa, pararam de comer e olharam para ela. Jacques também, avisando-a
silenciosamente para que não falasse alto.
- Desculpa. – disse
baixinho. – Mas e depois? O negócio correu mal?
- Não, nos primeiros
tempos até correu muito bem, o pior foi quando…
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