Lua 2
Eulália Não queria acreditar no que os olhos viam. Era ele, sem
dúvida. A voz era a mesma, o rosto era o mesmo, os gestos eram os mesmos, mas
os olhos? Os olhos, esses eram outros.
Eram uns olhos tristes, assustados, tão diferentes daqueles
atrevidos, despreocupados, cheios de alegria e confiantes que lhe arrebataram o
coração do peito e lhe esconderam o juízo.
- Quem é? – perguntava Maria a Lua.
- Não sei. Só sei que sabe o meu nome… - respondeu-lhe esta sem
tirar os olhos do homem.
- Tem uma voz estranha…. É estrangeiro? – Maria continuava,
curiosa.
- Shiu. Não faças barulho. Deixa ouvir.
E Maria obedeceu. Maria obedecia sempre a Lua. Lua era a sua irmã
mais velha, o seu ídolo, e Maria a sombra dela.
Não quero dizer com isto que Maria não tivesse a sua personalidade,
que a tinha, mas ao pé de Lua, esquecia-se de si, e vivia para ela.
- Lália…- O homem aproximou-se. – Podemos entrar? E falar com
calma? – Falava num tom nervoso e baixo, mas que ressoava no silêncio que a
curiosidade geral impusera.
Alguns vizinhos, atraídos por uma presença estranha, aproximaram-se,
oferecendo implicitamente a sua ajuda a Eulália, ao mesmo tempo que buscavam
assunto para as conversas de serão.
Mas, Ela não estava pelos ajustes. Ter uma conversa calma com ele
era coisa que não lhe apetecia. Nem por sombras, se sombras houvesse.
Ao invés disso, apetecia-lhe gritar, bater-lhe, ralhar, fazê-lo
sentir tudo aquilo que ela sentiu ao longo destes 10 anos. Como era possível
ele ter aparecido assim? Como se nada fosse? Como se tivesse ido à ilha grande buscar
alguma coisa e se demorasse mais um pouco? Era preciso ter lata!!! – Falava para
si própria.
Havia, no entanto, um outro motivo pelo qual não queria entrar com
ele. Um motivo que ela se recusava a ouvir, a aperceber-se, a sentir…
É que ainda estava bem presente no seu corpo, nos seus seios, no
seu ventre, a última vez que com ele estivera a sós, naquela casa. Os anos
passaram, mas as marcas ficaram, cada vez mais fundas, como se tivessem sido
feitas na noite anterior…
- Mamã! – chamou-a Lua. – Mamã? – insistiu ao vê-la atrapalhada.
Eulália acordou do torpor em que tinha entrado e apercebendo-se das
filhas e dos vizinhos, decidiu que, afinal, era melhor entrar. Já bastava o que
iriam falar sem ver, quanto mais dar-lhes espetáculo para assistirem.
Assim, poisou as coisas no tanque, secou as mãos ao avental e
virando-se, começou a caminhar em direção à casa.
O homem, esse, deixou-se ficar parado. Não sabia o que fazer.
Quando chegou à porta da cozinha, afastou a rede mosquiteira, e
virando-se para trás, perguntou-lhe rispidamente:
- Vens?
Suspirando de alívio, o homem de imediato saiu do sítio e com dois
ou três passos alcançou-a. Entraram o dois.
Cá fora ficou um silêncio, mais silencioso do que aquele imposto
pela curiosidade momentos atrás. Até os animais se calaram, se imobilizaram, e ficaram
à espera, atentos.
Maria olhou para a Lua. E agora? Parecia querer dizer. Lua fez-lhe
sinal para que ficasse ali e esperasse. Ela iria tentar ver o que se passava.
- Mas… - começou Maria.
- Não há, mas, nem meio, mas! Fica aqui que eu já volto! – ordenou usando
o tom que a sua mãe usava quando não admitia réplicas ao que mandava.
E, decidida, no seu passo ligeiro, aproximou-se da cozinha da casa.
Com cuidado, subiu para uma mesa que estava do lado de fora da janela, e com
mais cuidado ainda, moveu-se sobre ela de modo a conseguir espreitar pelos vidros,
por entre os vasos.
A medo, esticou a cabecita e esfregou os olhos. A claridade do
exterior não a deixava ver com clareza o que se passava lá dentro. Ouvia, no
entanto, e muito bem, as vozes.
- O que é que estás aqui a fazer? – A mãe falava num tom que Lua
nunca tinha ouvido, e que a assustou.
- Vim para ti, para nós. Já te disse…
- Ah! Vieste para nós? – replicou sarcástica. - Assim? Sem mais nem menos? Uma manhã acordaste
e lembraste te que tens família. Foi isso? – falava também com os braços que
agitava para dar enfase à sua raiva.
- Sim, não, sim. Mais ou menos. – O homem também esbracejava e
apoiava-se na mesa da cozinha. - Eu nunca me esqueci de vós, só que as coisas
não são tão simples como parecem, e tive de resolver alguns assuntos antes de
poder vir.
- Resolver uns assuntos?! – A voz dela demonstrava agora
incredulidade. – Resolver uns assuntos? Que assuntos tão importantes foram
esses que tiveste de resolver durante 10 anos?! 10 anos! – repetiu-se.
- E nós? Não tiveste tempo para uma carta, um telefonema, uma
mensagem?
- Eu sei. Eu não me portei bem. Desculpa. – O homem parecia um
menino a ser repreendido por uma traquinice.
Ela não queria acreditar no que estava a ouvir.
- Não estiveste bem? Desculpa?! – repetia incapaz de processar o
ridículo e o insólito da situação.
-Tu nem sabes que tens duas
filhas. Nem sabes o nome delas. Nem sabes se me casei ou não, nem sabes!! –
Enquanto falava, andava de um lado para o outro dando asas à sua indignação.
Ao ouvir estas últimas palavras o homem ficou branco. A medo, e com
o coração a querer fugir-lhe do peito, acercou-se dela. Nunca em todos estes
anos lhe passara essa possibilidade pela cabeça.
- Casaste-te? – perguntou-lhe baixinho.
Ela não respondeu de imediato.
Parou de andar e de esbracejar e deixou-se estar a olhar para ele.
A avaliá-lo. O que lhe deveria dizer? O que deveria fazer? O que iria fazer?
Respirou fundo.
Dizia-lhe a verdade ou fazia-o sofrer? Ele mereceria sofrer, há se merecia!!!
Mas ela não era esse tipo de pessoa. Ou era? As dúvidas entravam-lhe alma
adentro fazendo-a contorcer-se. Por fim decidiu-se.
- Lália. – Repetiu ele. – Casaste-te?
Ela respirou fundo mais uma vez para ganhar balanço e não se
arrepender da decisão que tomara.
- Não, não casei. E tu? - perguntou-lhe num tom acusatório.
- Eu? Não. Não consegui. Não fui capaz. Mas também não fui capaz de voltar. A minha mãe morreu pouco tempo
depois e eu senti-me culpado.
- Culpado?
- Sim. Senti
que de alguma forma eu ter-me recusado a obedecer-lhe fez com que ela morresse.
Parece estúpido, eu sei, mas… - O embaraço que sentia era notório. – Mas ela
sofria do coração, e fizeram-me sentir que o choque… - olhou para o chão. Não
tinha coragem de a encarar.
Eulália sentiu
pena dele, e o seu coração de mãe e de mulher, há muito sedento pelo dele,
empurrou-a na sua direção. Abraçou-o e o
resto das palavras foram comidas pelos gestos.
De repente a cor do homem, tinha voltado ao seu rosto. E,
abraçando-a num repente segredou-lhe ao ouvido:
- Tu sempre foste a única que o faz mexer…
Corando e sentindo um arrepio pelo corpo acima, ela deu-lhe um
empurrão. Com a mão, deu-lhe uma palmada no ombro. Uma palmada de amor, uma
palmada de dor, uma palmada de desejo que vendo ali uma frecha saiu em todo o
seu esplendor e uniu os corpos que separados fisicamente nunca o estiveram
espiritualmente.
Lua, assim que ouviu a mãe dizer-lhe que ele tinha duas filhas,
afastou-se da janela e saltou da mesa. Sem perceber bem o que se passava, mas adivinhando-o no peito,
voltou para a irmã que a esperava já distraída, a brincar com um cão que por
ali andava.
- Então? -
perguntou-lhe assim que a viu.
- Então o quê?
– respondeu-lhe com maus modos.
- Então? Quem é
o homem? E o que quer com a nossa mãe?
- Não sei. – Respondeu secamente tirando-lhe o pau das
mãos e começando ela a brincar com o cão.
- Não sabes?
Mas estiveste à espreita.
- Pois estive,
mas não ouvi bem. Olha vou até à praia, deixa-te estar por aqui. – Entregou-lhe
novamente o pau, e começou a andar em direção ao mar.
- Espera! –
gritou-lhe Maria. Eu vou contigo.
- Não, não vais. Ficas aqui, para o caso de a
mãe precisar de ti. – respondeu sem se virar e sem para de andar.
O tempo que a
mãe e o homem estiveram fechados dentro de casa não foi muito, porém para Maria
que morria de curiosidade, foi uma eternidade. Sem se atrever a entrar em casa,
aproximou-se da janela da cozinha, onde Lua tinha estado, e subindo à mesa, tal
como ela, espreitou, mas não viu nada.
Já lá não
estavam.
Resolvida a não
se preocupar, encolheu os ombros e saltou para o chão. Assobiou para o cão e
foi até casa da Bá, a sua avó materna. Ela saberia explicar-lhe o que estava a
acontecer. Ela sabia sempre tudo.
A correr, Lua
atirou-se em direção à praia. Na sua cabeça, ecoavam as palavras da mãe:
- Tu nem sabes que tens duas filhas. Nem sabes o nome delas!
Na sua cabeça, todas as perguntas que sempre fizera à mãe, aos vizinhos, aos amigos acerca do seu pai, tiveram agora uma epifania. Era aquele homem! Um estrangeiro!
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