Lua 5
-
Vais-te embora? – Maria não queria acreditar.
-
Tenta entender, por favor… - Lua estava com o coração partido. – Não é para
sempre. Eu volto para te buscar. – Aproximou-se dela, mas ela virou-lhe as
costas amuada.
- Vá
lá… - Lua abraçou-a. – Não fiques assim…
- Mas
porque é que vais? – Afastou-se e virou-se para ela. - Porque é que não ficas?
Tens aqui emprego. Toda a gente sabe que o Dr. Mendes está quase a reformar-se
e que tu vais ocupar o lugar dele.
Maria
andava de um lado para outro no alpendre da varanda. Incapaz de ficar quieta
quando estava nervosa, fazia quilómetros sem sair do local o que muito irritava
Lua.
-
Podes para e escutar-me? Se fazes favor? – Soou mais irritada do que queria.
Maria
obedeceu e sentou-se nos degraus. De costas para ela.
-
Ouve. – Falou num tom conciliador. – Para ocupar o lugar do Dr., eu tenho de
ter estudos, mais estudos do que estes, e aqui não os posso ter, além disso,
desde que a mãe partiu eu não consigo olhar para ele. Continuo a dizer
que a culpa é dele.
Maria
voltou-se:
- Não
digas isso. Estás a ser injusta. A mãe estava doente há já uns tempos.
- Sim,
e os maus tratos que ele lhe dava não ajudaram em nada. – Com raiva tornou a elevar
o tom de voz.
Maria
não respondeu. Reconhecia-lhe a razão, mas não lha queria dar. Sé queria que
eles se entendessem.
- Não
podes partir assim.- Desviou o rumo da conversa.
-
Assim como? – retorquiu com maus modos, dos quais se arrependeu de imediato.
Lua levantou-se
e virou-se para o mar, lá ao fundo. Bem ao fundo do horizonte.
-
Assim, zangada com ele. Se não por mim, nem por ti, pelo menos pela mãe.
- Não
jogues baixo! A mãe já cá não está para ver.
- Mas
era a vontade dela! – Virou-se enfrentando-a.
- Como
é que sabes? – Desafiou-a.
-
Porque li no seu diário.
-
Diário? Que diário?
-
Espera.
Maria
saiu do alpendre e foi até casa, até ao seu quarto. Abriu a gaveta da mesa de
cabeceira e tirou de lá um caderno, A5, de capa preta, com um sol e uma lua
desenhados na primeira folha. Por baixo estava escrito, com a letra da mãe:
“As minhas duas filhas, uma vida,
a minha!”
Pegou
nele e com as duas mãos levou-o ao peito, e com ele junto ao coração, numa
oração muda, regressou até junto de Lua.
-
Este! - Estendeu-lho.
- Onde
é que estava? Porque é que não mo mostraste antes? O que diz? – Uma catadupa de
perguntas saiam da boca de Lua, que com o caderno nas mãos se recusava a
abri-lo.
- Onde
estava? Estava nas coisas dela. Encontrei-o há dias, quando ia dar o último
lote de roupa, à Tia Ana.
-
Porque é que não me disseste?
- Porque…
sei lá porquê. Porque estava à espera de te ver com calma. Ultimamente quase
não vens cá a casa. – justificou-se voltando-se a sentar nos degraus de frente
para o mar.
Desta
vez Lua, sentou-se a seu lado, e virando-se para o mar, abraçou a irmã.
- Por
favor. Preciso que me compreendas. Não te estou a abandonar. Assim que tiver as
coisas arranjadas venho buscar-te.
-
Prometes? – perguntou-lhe com a cabeça encostada ao seu ombro.
- Prometo!
– respondeu-lhe olhando para a lua. – Tu és testemunha! – disse-lhe em
pensamento.
Os
dias dos preparativos passaram a correr. Estava-se em agosto, e o ano letivo
começaria em pouco mais de um mês. Entre viagens à ilha principal, para tratar
de papeladas, e deixar as coisas ali arranjadas de modo a que não faltasse nada
nem à irmã, nem ao pai, o tempo escoou-se como a areia entre os dedos.
Na
véspera da partida, sentada no seu lugar favorito, junto ao mar, Lua decidiu
finalmente ler o diário da mãe. Não podia partir sem ter a certeza de que não
havia nada pendente para ela tratar, e embora não tivesse mais tempo, só agora
tinha arranjado o tempo e a coragem para o ler.
Começava
assim:
14 de agosto
Soube a semana passada que estou doente. O meu coração
tem um defeito, uma coisa qualquer que o pode fazer apagar-se a qualquer
momento. Não posso contar a ninguém. Não posso confiar em ninguém. Se eu
contasse a alguém, não demoraria muito a que a minha mãe soubesse, e pelos
vistos o coração dela também pode ter esse defeito. Não quero arriscar. Pode
parar com um choque, disse-me o médico. Não percebi se era só o meu ou o dela,
mas esqueci-me de lhe perguntar isso. Para o mês que vem, não me posso esquecer
de lhe perguntar. Entretanto pode ser que as dores não voltem. Agora já sei que
tenho de ter cuidado…
20 de agosto
Isto de escrever é estranho. Por um lado,
alivia-me, por outro é estúpido. Falar com um papel. Onde já se viu isto? Se ao
menos me respondesses… Mas não. Ficas aí, calado, guardião do meu segredo.
Tenho de ter cuidado para que não te encontrem. As
miúdas estão a aprender a ler…
Onde te vou esconder?
O Ramiro olha-me desconfiado. Não sei como é que
ele soube que eu tinha ido ao médico, e tive de inventar uma desculpa,
dizer-lhe que era por causa de um dente, mas sinto que ele não acreditou. Agora
anda em cima de mim tipo um cão. As pessoas começam a comentar…
28 de agosto
Hoje deu-me outra dor. Daquelas fortes, que me
fazem quase perder os sentidos. Mas não percebo. Cortei no sal, e não me tenho
irritado com ninguém… A não ser com o Ramiro, mas coitado, eu percebo que ele
não faz por mal. Desde que o Mike se foi ele assumiu o papel de homem cá de
casa. Quero dizer, homem é como quem diz. Arranja as coisas a troco de uma
refeição, e leva-nos à ilha no seu barco sem nos cobrar dinheiro, mas o seu
papel termina aí, que eu sou bem capaz de tomar conta de mim e das miúdas sem
precisar de homem nenhum.
Nem sei porque é que me justifico a ti. Não passas
de um estúpido papel! Deve ser da hora. Estou a ficar com sono. Estes
comprimidos que o Dr. me receitou fazem-me dormir…
10 de setembro
Hoje vim mais animada da consulta. O Dr. diz que se
eu tiver cuidado posso durar ainda muitos anos. Deu-me outro comprimido para
pôr debaixo da língua sempre que eu tiver uma dor daquelas, e aconselhou-me a
contar a minha situação a alguém em que eu confie. Pode ser preciso uma ajuda
rápida e se ninguém souber…
Mas em quem vou confiar?
15 de setembro
Pobre Ramiro. O seu rosto ficou branco quando lhe
contei. Sim. Escolhi-o a ele. É homem, e os homens guardam melhor os segredos
do que as mulheres. Avisei-o de que se me chegasse aos ouvidos que ele tinha
aberto a boca, nunca mais entraria cá em casa…
Tive tanta pena dele. Parecia um cachorrinho
abandonando perante a ideia de não voltar a estar com as miúdas. Acho que gosta
delas como se fossem filhas dele.
Mas não são!!! Atenção!!!
Pronto, e lá estou eu a justificar-me perante um
papel estúpido. Devo estar a ficar maluca.!!
A culpa é dos comprimidos. Na próxima consulta vou
falar nisso ao Dr.
- Lua! Estás aí?! – Maria chamava-a do cimo da areia. – Vem-te
deitar, já é tarde. – Disse-lhe aproximando-se dela.
- Estás a ler o diário? – perguntou já sabendo a resposta.
- Comecei agora.
- Só agora? Pensei que o tivesses lido logo naquela noite.
- Já o leste?
- Comecei. Mas depois achei melhor parar.
-Porquê?
- Porque são coisas íntimas, coisas que ela não queria que se
soubesse, e eu resolvi respeitá-la.
Lua olhou-a espantada. Nunca tinha visto as coisas por aquele ponto
de vista. Maria realmente era uma criatura sensível e bondosa. E muito
determinada também.
- Achas? Achas que não devo ler?
- Não sei. Isso é contigo. Tu és diferente de mim. Tens muitas
dúvidas e coisas por resolver. Talvez aí encontres respostas.
Lua estava cada vez mais desconcertada. A irmã não parava de a
surpreender…
Comentários
Enviar um comentário