Matilda 11

- Tu acreditas nisto? – Matilda perguntava indignada a Jacques.

- Ouve, estás a queixar-te do quê? Arranjaram-te uma forma de sair daqui e ainda te queixas? – Jacques esbracejava incrédula com a reação da amiga. Havia de eu estar no teu lugar. Confessava tudo e mais alguma coisa se isso significasse que sairia daqui. Tu estás aqui há dois dias, eu estou há dois meses. Acredita, amiga. Isto não é um mar de rosas!

Matilda tomou consciência das palavras e da situação da amiga e sentiu-se envergonhada.

- Tens razão. Estou a ser mimada. Têm todos razão, mas de facto eu não roubei.

- Nem eu! E olha onde estou!

- Mal posso esperar para amanhã, para saber como correu a reunião com o juiz.

- Vai correr bem. O teu irmão não disse que o outro tipo o conhecia? Então…

- E tu? Como vais ficar?

- Eu? Eu vou ficar à espera de que os senhores embaixadores se lembrem que eu existo.

- Mas tu não tens ninguém? Não tens família lá em França? Amigos? Namorado? Nada?

- Não. Rompi com tudo e com todos e vim fazer a minha viagem de sonho antes de me lançar ao mundo do trabalho. Sabes? Vendi tudo o que tinha para ir em busca do sonho. Sonhei e agora que estava pronta para acordar para a realidade, enfiei-me, sem saber como, num pesadelo!

Matilda não disse nada, mas sorriu. Tinha pena dela, mas não lho queria dizer. Achava que isso só a iria fazer-se sentir pior.

Miguel nem queria acreditar! Chegou ao hotel a cantar de tão feliz que estava.

- Onde está a Matilda? – perguntaram-lhe Paula e Fábio assim que o viram tão bem-disposto.

- Está na prisão! – afirmou displicente.

Fábio e Paula entre olharam-se. Estaria maluco? Ou a gozar com eles?

- Vá lá! – Paula aproximou-se dele. – Onde está? No carro? Tenho a mala pronta, é só ir buscar o telemóvel que está ali a carregar.

- Estou a falar a sério. – Miguel atirou-se para a cama. De repente sentia-se exausto. – Está na prisão. – reafirmou.

- Oh! – Paula foi buscar o telemóvel e a mala. – A que horas é o voo?

- Não estou a brincar. Já falei com o juiz, e sim ela vai ser solta, mas só daqui a três dias, até lá tem de ter três consultas de psicologia com o Josh, para este poder emitir o parecer médico e ela a poder libertar.

- Três dias? Ela vai ficar presa ainda mais três dias? Podemos visitá-la? – Fábio mostrava-se ansioso.

- Não, só o Josh e eu, caso aconteça alguma coisa. Mas olhem, têm aqui os vossos bilhetes. Reservei-vos um voo para amanhã de manhã, caso queiram ir.

- Ela vai sair de certeza daqui a três dias? – Paula estava ansiosa para se ir embora. Gostava muito de Matilda, e sentia-se responsável por o que lhe aconteceu, mas os seus nervos começavam a ceder à pressão a aquele ambiente hostil.

- Em princípio sim. – respondeu Miguel. – Podes ir tranquila. Eu tomo conta dela. Ela vai ficar bem. - acrescentou ao perceber a sua indecisão.

- Não sei. Sinto-me mal. Parece que a estou a abandonar…

- Não, não estás. E vocês estarem aqui é só mais um foco de preocupação para mim. – Miguel queria que eles se sentissem livres para partir, mas escolheu mal as palavras.

- Não seja por isso. – atalhou Fábio agressivo. – Eu fico noutro hotel, e espero que ela saia, sem te causar mais preocupações.

- Não. Não me interpretes mal. Eu agradeço tudo o que vocês fizeram por ela, mas não sei se isto ainda vai dar alguma reviravolta e receio que sobre alguma coisa para vocês.

- Por isso mesmo. – continuou Fábio. – Se der alguma reviravolta, vais precisar de nós!

A discussão continuou por mais um tempo, e no fim ficou decidido que Paula seguiria para Portugal, enquanto que Fábio ficaria com Miguel e Josh, para o que desse e viesse.

- Bom dia! Como passou a noite? – perguntou Josh.

- Bem. Obrigada. E o senhor? – respondeu Matilda desconfiada.

Matilda olhou-o. Sentado na cadeira, muito direito, tinha um ar profissional, não fosse a roupa desportiva que envergava. Tentou avaliá-lo.

Os seus olhos castanhos, redondos e grandes, ocupavam-lhe quase todo o rosto dando-lhe um ar meigo. O cabelo, também castanho, muito escuro, estava cortado curto num corte moderno, quase que diria ocidental, daqueles que os metrossexuais tanto gostam de usar. A boca era pequena e fina, bem desenhada, e nas faces, um pouco angulares, adivinhavam-se uns bocados de barba, aqui e ali, mal semeados.

De corpo, não parecia ser muito alto, pelo menos assim sentado. Tinha por baixo do polo branco, uns braços que mostravam uns músculos que acompanhavam os do peito bem definidos.

Como seriam as pernas?- deu consigo a pensar.

- Pode tratar-me por Josh. – Sorriu. - Como o seu irmão lhe explicou, sou um psicólogo e vou ter consigo três sessões para poder avaliá-la e emitir o relatório comprovativo do seu distúrbio e assim apelarmos à sua libertação.

- Mas que distúrbio? Eu não sou cleptomaníaca, e não roubei porra nenhuma. – Tratarem-na como doente tirava-a do sério.

- Eu sei que não. Acredito que não. Mas perante as provas, falsas ou não temos de nos defender. E neste caso, a melhor defesa é essa. Além do mais, o seu irmão contou-me acerca das…como hei-de dizer? Acerca das suas partidas nas lojas do vosso bairro.

Matilda ao ouvir isto, engoliu em seco e ficou vermelha. Miguel, maldito sejas! – praguejou intimamente.

- Mas foram precisamente isso. Partidas! – argumentou.

- Claro que sim. – concordou Josh. – Mas ao que sei, começaram após a morte dos seus pais, certo?

Matilda ficou mais vermelha, se mais vermelha fosse possível ficar, e trincou a língua para não dizer em voz alta, o que lhe ia na alma e no pensamento.

- É perfeitamente natural. – continuou ele. – Não é a primeira, nem será a última pessoa a reagir assim após um acontecimento dessa natureza. – Sorriu. Os olhos castanhos amendoados refletiam uma empatia que lhe tocou direitinho no coração. Ela sorriu de volta, mas não comentou.

- Era muito nova, e estava na idade em que todas as hormonas do nosso corpo estão em ebulição. Existem neurónios a aparecer e a desaparecer numa roda viva, constante, estabelecendo e quebrando ligações, criando e destruindo sinapses, libertando essas hormonas, que nos fazem ir de um extremo de emoção a outro em menos de nada.

Ela acenou com a cabeça, incapaz de responder sentindo-se embaraçada. Aquele homem parecia que sabia tudo.

Aos poucos e poucos o à vontade entre eles foi-se instalando, e ela foi baixando a guarda.

No final da segunda sessão já se tratavam por tu, e na terceira, ela admitiu que precisava de ajuda, que tirar as coisas era algo mais forte do que ela. Mas eram coisas sem importância, coisas simples, e que na maioria dos casos devolvia sem qualquer hesitação. Nunca tiraria uma estatueta, e ainda uma estatueta com aquele significado.

- A propósito. – comentou ela. – A minha amiga, Jaqueline, está aqui presa por uma situação semelhante à minha.

- Também roubou? – perguntou ele, calando-se de seguida ao ver o olhar furioso que ela lhe deitou.

- Desculpa. – apressou-se a dizer. – Também foi acusada de roubo?

Ela olhou-o nos olhos, medindo-o, decidindo se o desculpava ou não. Por fim lá se decidiu a desculpá-lo e esclareceu:

- Não, está presa por acusação de adultério.

- Ui. Por incrível que pareça, isso aqui é mais complicado.

- Mas o mais estupido é que ela nem sequer é casada. – Abriu muito os braços e os olhos para demonstrar o ridículo da acusação.

- Como assim?- Josh não estava a perceber.

Matilda explicou-lhe o caso de Jacques e à medida que o ia fazendo, ia crescendo em ambos uma noção de injustiça e de pena assim como um sentimento de revolta.

- Gostava de falar com essa Jacques. Achas que ela quererá? – perguntou ele no fim do relato.

- Acho que sim. Mas vou falar com ela. Achas que a podes ajudar?

- Não sei. – respondeu cauteloso. – Primeiro temos de tratar de ti. A tua libertação ainda não está 100% garantida.

Matilda sentiu um baque no coração e o sangue a fugir-lhe das veias.

- Como assim, não está garantida? O meu irmão disse que sim, tudo o que eu tinha de fazer era assumir a culpa e pedir desculpas. E pagar a multa, claro está!

- Sim, em princípio sim. Amanhã vamos todos ter com o juiz. Ele era amigo do meu pai, e devia-lhe alguns favores, por isso acredito que tudo vá correr bem, mas até ter o papel assinado e tu estares dentro do avião… - Fez um trejeito com a boca a indicar a incerteza de tudo.

Matilda respirou fundo. Ia a dizer alguma coisa, quando a guarda, que estava sempre presente na sala, se aproximou dos dois.

- Acabou o tempo.-  disse.

Levantaram-se ambos, e despediram-se com um aperto de mão sentido. Aquelas três sessões de apenas algumas horas cada, onde as conversas vasculharam o presente e o passado de ambos, gerou entre eles uma amizade, que muitos anos de convívio noutras condições, se calhar não o conseguiriam.

Matilda voltou nervosa para a cela.

- Então? – Jaques estava sentada na cama a ler. – Já acertaram tudo? Sempre sais amanhã? – perguntou com uma ligeira tristeza na voz.

Estava contente pela amiga, mas ao mesmo tempo sentia-se triste. Também entre elas se tinha desenvolvido uma amizade fermentada pelas circunstâncias em que ambas se encontravam e pela injustiça que ambas sofreram.

- Em princípio sim. – respondeu alegre.

- Hum. – Jaques voltou a ler.

- Olha, mas tenho uma boa noticia para ti. – Matilda acercou-se dela e sentou-se aos pés da cama.

Jaques continuou a fingir que lia.

- Estás a ouvir-me? – Abanou-lhe as pernas.

- Sim? – Levantou a cabeça e encarou-a. Estava a sentir-se a começar a ficar mal humorada.

- O Josh, o psicólogo, quer falar contigo.

- Comigo? Para quê? Eu não estou maluca. – respondeu com alguma agressividade, mas de imediato se arrependeu, pois, a amiga não merecia esse tipo de tratamento.

Olhou-a. Como parecia tão inocente e deslocada ali. Teve vontade de a abraçar, mas refreou-se. Já se metera em demasiados sarilhos por seguir impulsos. Em vez disso, respirou fundo e colocando um sorriso no rosto, e uma voz meiga, perguntou-lhe:

- Queria falar comigo porquê?


 

 

 


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