Matilda
Aqueles
brincos na prateleira da loja estavam a chamar por si.
Já
passara duas ou três vezes por eles, e sempre que o fazia, ouvia o seu nome:
-
Matilda… Matilda…Leva-nos… Leva-nos contigo…
E
ela fazia um esforço enorme para não os ouvir. Juro que fazia!!!
Convencia-se
de que não precisava deles, que tinha muitos como eles lá em casa, e se
pensasse bem, até lá haveria uns iguais. Tinha quase a certeza.
Mas,
a tentação era enganadora.
Poderia
haver uns lá em casa. – Dizia-lhe ela. - Que até pareceriam iguais, mas não
deveriam ser…Se fossem ela teria a certeza, não quase a certeza. Não
teria dúvidas!!!
Sim,
a tentação era grande. Tão grande e poderosa, que à quarta vez que por lá
passou, mesmo quando ia a sair da loja, ela
não lhe resistiu, e num ápice, enfiou-os no bolso.
Os
brincos que lá teria, se tivesse, não seriam estes, seriam outros, porque estes
estavam ali, e além do mais, estes estavam a pedir para serem levados, a desafiá-la…
Iria
ela negar um desafio? Seria ela uma cobarde? – Desafiava-a a tentação.
E
Matilda, não teve outro remédio que não o de tirá-los do lugar, e enfiá-los no
bolso.
Ninguém
viu.
Ela
era perita nisso.
Desenvolvera
essa mania após a morte dos pais, como um ato de rebeldia para com Deus, para Lhe
mostrar a sua zanga, e desde aí, nunca mais parara.
Achava
piada ao facto de nunca ninguém a conseguir apanhar em pleno ato, e o que a
princípio, começou por uma brincadeira, um desafio, depressa se tornou num
vicio, numa mania, em que em vez de ser ela a controladora, passou a ser a
controlada.
E
por ela tudo estaria bem, não fosse o seu irmão um chato, e ralhasse com ela
cada vez que descobria as coisas lá em casa e a obrigasse a ir devolver as
coisas à loja.
-
Que vergonha!! E que injusto!! - Pensava ela, quando arrastada por ele, lá ia
ter com a Ana ou com a Manuela, ou com o Rui ou com o Sr. Manuel, ou com…os
comerciantes do bairro que a conheciam desde pequena, e que por amizade a ela e
à família, não apresentavam queixa e continuavam a deixá-la entrar nos seus
estabelecimentos.
-
Ora, ela é o melhor teste à nossa segurança! – Brincava o senhor Manuel.
-
Ah! É só uma traquinice. – Desculpava-a a sra. Maria.
E
Matilda, com os olhos em fúria, punha um ar vitorioso e virando-se para Miguel,
o seu irmão, espetava o queixo e dizia:
-
Vês? Para quê tanta confusão? Está tudo bem como podes ver!
E
mais uma vez se zangavam, e mais uma vez faziam as pazes, e a vida voltava ao
normal até que um novo objeto aparecia inesperadamente nalgum canto, deixado ao
acaso, esquecido, e tudo recomeçava.
Felizmente
tudo se passava “em casa”, que é mesmo que dizer que “no bairro” e os danos
eram controlados, mas Miguel vivia apavorado com a possibilidade de ela ir a
uma loja na baixa e ser apanhada. Que vergonha seria para ela e para a família!
Felizmente,
ou infelizmente, os pais já cá não estavam para sofrerem no dia em isso
acontecer… - Consolava-se.
Matilda
tinha 30 anos e era o que se pode chamar uma mulher de sucesso. Inteligente e
decidida montara uma empresa de publicidade que lhe mantinha o dia ocupado, a
imaginação ativa e os bolsos cheios, logo não era por necessidade que ela
roubava.
E
por isso o irmão não a conseguia compreender. E zangava-se. E muito.
Mais
velho do que ela 7 anos, tomou a cargo a sua educação quando os pais faleceram
num acidente de avião, tinha ele 21 anos.
Felizmente
os pais tinham-nos deixado em boa situação financeira, mas ele sentiu a
necessidade de trabalhar, de ser o “homem” da família, e ganhar o sustento para
o dia a dia, deixando as reservas para “um dia chuvoso”, como os pais sempre
lhes ensinaram.
Sempre
a estudar e a trabalhar, conseguiu tirar o curso de advocacia e impedir que a
irmã fosse entregue aos cuidados de uma instituição pelo facto de ser menor.
“Apanhou-a”,
no entanto, na sua fase mais difícil, na fase da adolescência tardia, e teve de
ter muito pulso e determinação, embrulhados em amor e num enorme sentido de
responsabilidade para a não deixar perder-se aquando do acidente dos pais, e a
forçar a acabar os estudos e a tirar um curso superior de gestão.
Viviam
os dois na casa paterna desde então, e entre os trabalhos e os sarilhos em que
ela se metia de vez em quando, não lhes sobrava tempo para namorados, embora
amigos tivessem muitos.
Os
do bairro e os que vieram por acréscimo com as escolas e os trabalhos.
Um
dia, à hora do jantar, Matilda entusiasmada, contou-lhe que teria de ir para
fora do país. Tinham fechado um contrato com uma empresa sediada na Tunísia, e
o trabalho publicitário por eles contratado, exigia a sua presença nas
gravações.
Os
sinais de alerta de Miguel soaram todos ao mesmo tempo. Viajar? Avião? Sem ele?
-
Vais viajar? De avião? – perguntou-lhe verdadeiramente assustado.
-
Ora. O que é que tem? Tu já o fizeste muitas vezes…
-
Sim, mas…
-
Mas o quê? Eu também tenho o direito. – Espetou o queixo.
Desde
a última vez que tinham discutido, ele tinha-lhe prometido confiar nela e
dar-lhe “espaço”, e estava a esforçar-se por cumprir a promessa, mas não estava
a ser fácil.
-
Já tomaste as vacinas? – Tentou dar uma entoação normal à pergunta, enquanto
metia uma garfada na boca.
-
Sim… - respondeu enfadada.
-
E foste à farmácia buscar os medicamentos?
-
Hum, hum. – assentiu ela com a boca cheia de comida.
-
E o passaporte, está em dia?
-
Mas tu queres parar? Não sou nenhuma parva e inconsciente! – retorquiu
irritada.
-
Sim, sim, mas está ou não? – Ele ignorou a resposta dela.
-
Está ou não o quê? – retornou já a ficar sem paciência.
-
O passaporte. Está dentro da validade ou não? Já não viajas há muitos anos…
Ela
bufou e levantou-se para despejar o resto de comida que tinha no prato, no
caixote do lixo, antes de o pôr na máquina de lavar a loiça.
-
Está ou não? – Insistiu ele imitando-lhe os gestos.
-
Estááá ! – Ela atirou-lhe com uma bola de guardanapo. – Mas que chato! Com
tantos irmãos que há no mundo, tinhas logo de me calhar tu!
-
E querias melhor? Quem já te safou de muitas? Fui eu, não?
Ela
respondeu-lhe com a língua de fora, e colocou os copos também na máquina,
juntamente com os talheres.
-
Passa-os por água! – Advertiu-a ele.
-
Mas tu estás naqueles dias do mês? – Picou-o.
Desta
vez foi ele quem lhe fez cara feia.
Mais
tarde, já na sala e sentados no sofá a verem um pouco de televisão, ele
perguntou-lhe:
-
Quando é que partes mesmo?
-
Daqui a dois dias.
-
Já? Tão cedo? E a que horas?
-
Às 8.00H da manhã. Tenho de estar no aeroporto às 7.00H.
-
Tens quem te leve?
-
Tenho sim. - Ela sorriu para si. Por muito chato que fosse ele estava sempre a
cuidar dela. Era o seu anjo da guarda. Não podia ter irmão melhor…
Espreguiçando-se,
bocejou e levantou-se.
-
Vou deitar-me. Até amanhã. Scroodge.
-
Até amanhã desmiolada.
O
dia seguinte passou-se a correr para os dois. Ela embrenhada nos preparativos
da viagem, e ele num caso que teria de levar a tribunal, pelo que passaram-no sem
se verem.
No
dia da partida, estava ela a tomar um parco pequeno almoço, quando ele,
ensonado, entrou cozinha adentro.
-
Já vais? – perguntou com a voz cheia de sono.
-
Daqui a pouco. A que horas chegaste ontem? – Estendeu-lhe um pedaço do
croissant que ele recusou.
-
Tarde. – Dirigiu-se ao frigorifico e tirou de lá uma garrafa de água.
-
Não vais beber água gelada a esta hora da manhã! – Ralhou-lhe tirando-lhe a
garrafa das mãos.
-
Dá cá isso. Estou cheio de sede e preciso de acordar.
-
Para quê? – Ela afastou-se com a garrafa.
-
Para ver se tens tudo em ordem. – Foi atrás dela e tirou-lha.
Sem
lhe dar tempo de ripostar, abriu a garrafa e bebeu pelo gargalo uns valentes
goles de água.
-
Tu não tens juízo! – Refilou referindo-se tanto à água como à necessidade dele
de controlar tudo.
-
Já te disse que tenho tudo a postos. Vou só lavar os dentes e desço. A minha
boleia já deve ter chegado.
E
deixou-o na cozinha, indo para a casa de banho para realizar o que dissera.
Quando voltou, deu com ele na sala, a espreitar à janela.
-
É o Fábio. Vem no carro da empresa. – Atirou-lhe chateada. – Mas que mania a
tua. Podes dar-me espaço?
Ele olhou-a arrependido. Ela tinha razão. Tinha de parar um pouco,
dar-lhe “o espaço” que ela há anos lhe pedia, mas… Não conseguiu controlar-se.
- Desmiolada, por favor, não te metas em sarilhos lá. Olha que
eles não são as pessoas cá do bairro, nem são como nós, os portugueses. De
brandos costumes. Não queiras conhecer uma prisão deles.
A intenção dele era boa, foi a preocupação e o sentido de proteção
que o levaram a dizer aquilo, mas ela não o entendeu dessa forma, e de lágrimas
e raiva nos olhos, na voz e no gesto, colocou a carteira a tiracolo, pegou na
mala de viagem e abrindo a porta despediu-se:
- Obrigada pela confiança que tens em mim. Dei-te a minha palavra
que a última vez tinha sido a última. E mantive-a. É bom saber o que o meu
irmão pensa de mim. Não te preocupes, que se eu me meter em “sarilhos”
não te vou chamar para me vires socorrer. Fica bem na tua vidinha organizada e
tranquila.!
Bateu com a porta.
Miguel ainda foi atrás dela, mas o elevador já tinha partido com
ela lá dentro. Retornou à sala e à janela e viu-a cumprimentar o Fábio. Quis
abrir a janela e gritar-lhe que o desculpasse, mas o medo do escândalo
impediu-o de o fazer, pelo que ficou parado a vê-los entrarem para o carro e a
partirem.
O seu coração
ficou pequenino….
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