Matilda 2

No aeroporto, a vida borbulhava.

Entre as pessoas que iam e vinham das suas viagens, familiares e amigos que as esperavam ou delas se despediam, e funcionários que cirandavam nos seus afazeres, a azáfama era muita.

Matilda estava entusiasmada com tudo aquilo.

- Tanta vida, e tão cedo. – Comentou para o Fábio. – Imagino como será por volta do meio do dia.

Ele olhou-a surpreso.

- Mas tu nunca aqui tinhas vindo?

- Há já muito tempo que não. Acho que a última vez foi com os meus pais, era eu pequena. Sabes, depois de eles morrerem a vida não foi fácil para mim e para o meu irmão. Não tínhamos tempo, nem dinheiro para viagens… E além do mais, não te esqueças que eles morreram num desastre de avião…

- A sério? Não sabia.

- Sim. E desde ai, eu e o meu irmão preferimos as viagens de carro. Sempre estão dentro do nosso controlo… – Falou com tristeza e apreensão.

Ele condoeu-se e deu-lhe um abraço.

- Sim, mas isso já foi há muitos anos, e com certeza que agora as coisas estão mais evoluídas e seguras. Não te preocupes, vai correr tudo bem.

- Claro que sim! – Respondeu animada. – Vamos?

Dirigiram-se para o check in e despacharam a bagagem de porão. Depois, e enquanto esperavam pela chamada para entrarem no avião, Matilda, não resistiu a dar umas voltas pelas lojas, enquanto Fábio ficou-se por uma cafetaria a beber um café e a ler um jornal diário.

Animada, entrou nas lojas de perfumes, nas das malas e acessórios, nas tabacarias, nas de chocolates, nas de comida, e voltou à de perfumes.

Aqueles frasco eram tão bonitos, e cheiravam tão bem!

Passeou por entre os expositores, pegou em vários frascos, cheirou-os, e voltou a pousá-los. Queria levar um, mas não se conseguia decidir sobre qual o que levaria. Havia dois que lhe despertavam especialmente a atenção.

Pegou mais uma vez em ambos, e olhando para os preços, decidiu-se pelo mais barato. Colocou o outro na prateleira e dirigiu-se à caixa para pagar.

A moça era simpática, e como tinham tempo, e havia poucas pessoas na loja, trocaram algumas palavras, ficando mesmo um pouco à conversa até que um outro cliente se aproximou.

Matilda apercebendo-se de que ele estava à espera, pegou no saco, despediu-se, e dirigiu-se para a saída, contente.

Tinha-se portado bem.

Mas, mais uma vez, quando passou pelo frasco de perfume que repusera no lugar, sentiu-o a chamar por si.

- Matilda…Olha para mim…Cheiro tão bem…

- Não! – Disse-lhe. – Não te vou levar. Eu prometi!!!

Mas a tentação, já aqui o disse, é tramada. E poderosa.

Atacando mais uma vez, usou argumentos falsos mascarados de verdadeiros, que faziam sentido apenas para a mente perturbada de Matilda, pelo que a pobre coitada, sentiu-se atraída para o frasco, como que puxada por um íman gigante, e deitando um olho à funcionária que conversava com o outro cliente, pegou nele, e muito rapidamente e com destreza, enfiou-o no saco.

Recorrendo à experiência de muitos anos, enfiou o saco na mala, entre algumas bugigangas, e saiu da loja, passando pelo detetor de roubos, sentindo a adrenalina no seu máximo.

Esperava que o detetor não apitasse, mas estava preparada para o caso de ele o fazer. Tinha já uma desculpa preparada que sabia ser convincente.

Felizmente não foi preciso usá-la, (até porque a desculpa só seria convincente para si), pois o aparelho, ou estava desligado, ou não funcionou, e ela saiu triunfante mais uma vez.

Uma vez cá fora, e com a adrenalina já em níveis normais, aproximou-se da sua equipa que já estava reunida nas cadeiras em frente à porta de embarque.

- Então, o que compras-te? – Perguntou-lhe Paula a sua sócia e amiga.

- Óh! Nada de especial, apenas uns perfumes. – Mentiu.

- Hum. Deixa cheirar. – Pediu-lhe, apontando para o saco que, entretanto, tirara para fora da mala.

Matilda mostrou-lhos e deu-lhe a cheirar os frasquinhos com amostras dos perfumes, que a rapariga da loja lhe dera.

- Hum. Este cheira mesmo bem. – Referiu-se ao roubado.

- Gostas?

- Sim. Mas deve ter custado os olhos da cara…

- Nem por isso. – Sorriu Matilda. – Toma fica com ele. – Tirou-o do saco e estendeu-lho.

- Estás louca? Não. Nem pensar!

Abanou a cabeça e devolveu-lhe o frasco.

- Insisto. – A ela, o frasco já não interessava.

- Não quero. Já te disse. – Paula devolvia-lho.

E estavam neste vai e vem do frasco, quando Fábio se aproximou.

- Então meninas? Há luta no galinheiro? – Riu-se da própria piada.

- Ah, ah! Muito engraçadinho. – Paula ripostou com ironia. – Esta parva comprou o perfume e agora quer-mo dar.

Matilda fez uma cara de inocente.

- E? Qual é o problema? – Fábio decididamente não entendia as mulheres.

- O problema é que ela comprou-o para si, não para mim. E além do mais deve ter sido caríssimo.

- Já te disse que não. – Respondeu Matilda que tinha estado calada.

- Bem. Se não o querem eu fico com ele e dou-o à minha namorada. – Brincou.

- Não, para a tua namorada, tens este. – Tirou o outro do saco.

- Mas estás maluca? – Ele rejeitou o frasco.

Paula fez uma cara de “eu-não-te-disse”?

- Óh! Vá lá! Não é assim tão difícil. É só aceitarem uma prenda que vos dou. – E entregando os frascos aos dois, saiu para ir beber um pouco de água.

Sentia-se contente. Tinha feito uma boa ação que compensava a anterior.

Tudo estava bem. Tudo estava resolvido.

Depois, lembrando-se do que prometera ao irmão, sentiu-se embraçada e prometeu-lhe mais uma vez baixinho:

- Esta foi mesmo a última. Juro-te!

O calor que se fazia sentir no Tunísia era intoxicante, e aquele mês estava atipicamente quente. Um calor seco que bloqueava as narinas e os pulmões impedindo-os de respirar como deve de ser, e até de abrir os olhos. Mesmo com os óculos de sol colocados, a luz ofuscava-os.

Para nortenhos como eles, habituados a temperaturas baixas, a transição não era fácil, não só a nível de temperatura e luminosidade, como de todo o ambiente. Era tudo tão estranho, tudo tão grandioso, tudo tão avançado e retrógrado ao mesmo tempo, que o contacto com aquele povo lhes impunha alguns desconfortos, algumas curiosidades e alguns receios.

Composta por árabes, e Berberes, os seus habitantes autóctones, a língua oficial daquela população era o árabe, mas grande parte dela falava fluentemente o francês, devido à ocupação desta nação no seu território quase por 100 anos.

Ao saber disto, Matilda agradeceu mentalmente ao irmão pelos anos de francês que a obrigou a estudar no secundário, embora poucas seriam as oportunidades que teria para o praticar. É que no seu dia a dia, eles mal contactavam com os habitantes locais.

Embrenhados nas filmagens e sempre acompanhados por guarda-costas, os seus contactos resumiam-se na sua maioria às pessoas da empresa que os contactara e com quem falavam o inglês, e a um ou outro empregado no hotel.

Assim, a estada deles passou-se sem que Matilda tivesse oportunidade de se meter em sarilhos.

A única saída que tiveram foi uma visita ao Saara, o grande deserto africano.

Para Matilda, esta foi a viagem da vida dela.

Durante 3 dias, viajaram pela imensidão do deserto, sentiram os dois extremos de temperaturas, andaram e sentiram o cheiro dos camelos, viram um oásis, viram um mar de areia e montanhas areosas, mais altas que algumas serras da terra deles, e ali, no meio das dunas, rodeados de areia, em cima de camelos, Matilda, sentiu-se pela primeira vez, próxima de Deus.

Mas foi à noite, quando, deitados na areia, em frente às tendas, com todas as luzes apagadas, tendo apenas a chama da fogueira como iluminação e fonte de calor, ao observarem as estrelas, que ela conseguiu sentir a paz necessária para se reconciliar com Ele.

Sentiu- O ao seu lado. Soube, naquele momento, que os seus pais estavam bem e a necessidade de vingança desapareceu.

Com ela foi também o medo. Sentiu-se leve. Feliz.

Pela primeira vez em muitos anos, dormiu um sono sem sonhos. Tranquilo. Reparador.

De volta à cidade, recomeçou a correria para terminar o projeto e regressar a casa, tendo eles apenas uma tarde livre para irem às compras.

Ao percorrer aquelas lojas enormes, cheias de objetos estranhos e aromas inebriantes, num mar de gentes e de línguas, os sentidos deles ficaram embotados.

À medida que entravam e saiam dos bazares, era abordados pelos comerciantes que lhe ofereciam todo o tipo de mercadoria, numa língua que desconhecida lhes soavam bem aos ouvidos.

E as cores? E os aromas? E o toque?

A tudo Matilda ia recusando, sentindo-se assoberbada com tantos estímulos, e embora a sua velha amiga tentação lhe dissesse que ali estavam reunidas as condições ideais para atuar, e embora os objetos gritassem por si, e embora ela chegasse a estender o braço para pegar num ou noutro que soava mais alto, a promessa que fizera mentalmente ao irmão, e a presença do guarda costas sempre atrás de si, impediu-a de se aventurar, e mais uma vez, contente consigo mesma, regressou ao hotel de mãos vazias, mas coração cheio.

À noite, quando falou com o irmão, para combinar a chegada ao aeroporto, foi com uma alegria infantil que lhe confirmou que se tinha portado bem, e que tinha conseguido não meter-se em sarilhos naqueles dias que ali estivera. Despediu-se, combinando que ele a esperaria em Lisboa, e deitou-se, voando para o deserto, para dormir debaixo das estrelas, próxima dos pais e próxima Dele.

Matilda acordou bem-disposta e cheia de energia. Iria para casa, para junto do irmão de quem já tinha muitas saudades, e nem a viagem de avião a assustava.

Pouco habituada que estava a viajar para tão longe, a sensação de regressar “ao ninho” era muito reconfortante. Por muito boa e inesquecível que esta viagem tivesse sido!!!

Assim, foi a cantarolar que tomou o seu duche e a cantarolar que fez as malas. Com tudo pronto, deu uma revisão pelo quarto, para ver se nada tinha ficado para trás, e pegando na mala, fechou a porta e saiu.

Já no corredor, enquanto esperava pelo elevador, Paula apareceu, vinda do seu quarto do outro extremo da ala. Vinha com um sorriso de orelha a orelha e um ar afogueado.

- Bom diaaa! – Cumprimentou-a a cantarolar.

- Bom dia! Parece que dormiste bem. – Matilda devolveu-lhe o cumprimento com um sorriso.

- Não, nem por isso. – Bocejou. – Na verdade não preguei olho.

Matilda fez uma cara de quem não estava a perceber.

- Lembras-te do meu guarda-costas?


 

 

 


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