A escolha
Catarina
era uma mulher comum. Nem bonita nem feia, nem gorda nem magra, nem alta nem
baixa.
Igual a tantas outras, tinha, no entanto,
uma coisa que a diferenciava das demais mulheres da sua idade. Era sonhadora
por opção. Acreditava verdadeiramente no sonho e fugia para ele sempre que
podia.
Francisco era um homem vivido. Um bom homem, honesto,
trabalhador, amigo do seu amigo e generoso, muito generoso, mas com alguma experiência
de vida que lhe deu algumas ferramentas para lutar pelo que queria. Fisicamente
era um homem atraente, um corpo bem trabalhado e uns olhos grandes e meigos,
que inspiravam confiança e segurança a quem se submetia a eles.
Catarina e Francisco
tiveram percursos de vida diferentes, níveis de instrução diferentes, empregos
diferentes, amigos diferentes.
Em comum apenas tinham o
gosto pela leitura, e o comboio que apanhavam diariamente para irem para o
emprego.
Nada havia, à partida,
que os unisse de alguma forma.
Catarina e Francisco viam-se quase todos os dias da semana,
viam-se, mas não se olhavam. Eram só mais uns entre um grupo de pessoas que
apanha o mesmo comboio, à mesma hora, na mesma estação, ao longo dos meses, ao
longo dos anos.
Quis o destino que um dia Catarina e Francisco
se sentassem frente a frente na mesma carruagem de sempre. Não era a primeira
vez, e nenhum dos dois achou estranho o facto. E não o era de facto. O que
foi estranho foi Catarina ter pegado num livro cuja capa chamou a atenção de
Francisco. Ele tinha acabado de o ler. Isto fez Francisco olhar realmente para
a Catarina.
- Que engraçado, pensou.
Catarina continuava
entretida na leitura e não reparou em Francisco.
Os dias foram- se
passando, e a rotina reinstalou-se ou melhor quase se reinstalou, porque para
Francisco, as viagens agora eram diferentes, ele agora procurava Catarina com o
olhar. Procurava sentar-se perto dela, ver o que ela lia, observar as
expressões que ela fazia ao ler uma ou outra parte mais intensa do livro,
adivinhar o que ela pensava.
Era uma espécie de jogo.
Sim, não se pense outra coisa. Tanto Francisco como Catarina eram respetivamente
casados e felizes. Não tinham nada a reclamar da vida. Os seus parceiros não
eram sonhadores, não gostavam de ler, mas eram quem eles tinham escolhido e que
de alguma forma os completavam.
Não, isto para Francisco
era só e apenas um jogo. Para Catarina não era nada. Não era, pura e
simplesmente, não era...
Numa segunda-feira de
uma semana de férias escolares, o comboio ia vazio. Catarina sentou-se à janela
como gostava e Francisco sentou-se à frente dela. Desta vez ela estava a ler um
policial, assim lhe parecia pelo título. Ela ia fazendo trejeitos engraçados e
Francisco divertia-se a observá-la. Chegou o revisor e ambos retiraram as
carteiras para mostrar o passe. Francisco estendeu-lho de imediato, mas
Catarina virava e revirava a carteira.
-
Desculpe-me.- disse aflita. - Esqueci-me do passe. Não sei onde o pus.
- Para onde é que a Sra. vai? - perguntou o revisor de um
modo antipático
-
Vou para Santos. - respondeu ela. - Mas eu tenho o passe, só que me esqueci
dele hoje.
- Lamento, mas não posso fazer nada. - disse com um ar
impassível. - Vou ter que a autuar.
- A sério? Mas eu tenho passe, todos os dias apanho este
comboio. O Sr. é novo aqui, mas os seus colegas conhecem-me de vista. -
Insistia Catarina aflita.
- Lamento. - Respondeu enquanto preenchia algo naquela
maquineta portátil. Os olhos postos na maquineta. Nem se dignou a olhá-la.
Frio, impassível.
- Desculpe intrometer-me- Disse Francisco
levantando-se. - Mas quem lamenta sou eu. É de facto lamentável que esta
companhia trate assim os seus utentes. Nós que compramos a assinatura
mensalmente e suportamos as vossas greves e atrasos sem reclamarmos e sem ser ressarcidos
de qualquer inconveniente que esses atrasos nos possam causar, temos de ser autuados
por nos esquecermos de apresentar, um dia essa mesmo assinatura.
-
Eu não tenho qualquer comprovativo de que esta senhora tenha o passe. -
Respondeu o revisor elevando o tom de voz.
-Tem. Tem o meu testemunho, e o testemunho dos outros
passageiros que aqui vão. - E nisto voltou-se para os outros utentes que o
secundaram.
-Sim.
- Disseram alguns- É de facto vergonhoso. Valem-se de serem os únicos a fazerem
este caminho.
Os ânimos foram-se exaltando e o revisor foi-se
"encolhendo", até que por fim balbuciou.
-Bem, perante estes testemunhos vou deixar passar, mas eu
tenho regras que tenho de cumprir. - E saiu na paragem a que, entretanto, o
comboio chegara.
Catarina sentiu-se embaraçada e agradecida ao mesmo tempo. Odiava
ser o centro das atenções, quer por uma boa razão quer por uma má razão. E
neste caso era por uma má razão, o que tornava as coisas ainda piores.
E disse-o a Francisco.
Agradeceu timidamente, com as faces rosadas e a voz sumida.
-Não tem de me agradecer. - Disse. - Só fiz o que foi correto…
Desde esse dia em diante, o conhecimento entre os dois e a
amizade foi crescendo.
Começaram por darem a
opinião que tinham sobre o serviço da companhia e daí passou para os livros,
para o gosto da leitura. Sem combinarem, começaram a chegar à estação algum
tempo antes da hora de chegada do comboio e encontravam-se no café da estação.
Daí à troca de endereços
de mail, para partilharem e-books, e noticias, foi um pulinho.
Iam-se conhecendo e
descobrindo que tinham muito em comum, muito mais do que à primeira vista
poderia parecer.
Ambos gostavam da companhia um do
outro, ambos falavam a mesma linguagem, ambos sonhavam com o mesmo, ambos não
queriam pensar, não queriam acreditar que algo estivesse a acontecer.
Mas na verdade estava.
E era algo forte.
Algo que nenhum deles
tinha sentido antes, algo que nenhum deles podia sequer pensar que iria sentir.
Só em sonhos…
Foi Francisco, habituado
a lutar pelo que queria, quem deu o primeiro passo. Um dia, esperou por ela em
Santos, na estação, no regresso do trabalho.
-Olá! - disse ela. - O que fazes
aqui?
-Queria falar contigo. -
Disse-lhe olhando-a nos olhos.
Catarina sentiu o corpo
a tremer. Ela adivinhava o que ele queria e ela também o queria, mas sabia que
estava errado. O seu marido não merecia aquilo. E ela gostava do marido. Mas o
que sentia quando estava com o Francisco era tão bom. Era diferente, era … Inebriante!
Sentiu-o a aproximar-se, a pegar-lhe na
mão, sentiu o beijo a chegar e quis fugir, mas não fugiu. Não foi capaz. E
beijou-o também.
Catarina sentia-se mal.
Francisco sentia-se mal.
Ambos se sentiam tão
bem.
Era estranho, e durante
uns tempos não falavam, só sentiam. Mas o remorso e a consciência corroem.
Nenhum dos dois conseguia olhar os
respetivos parceiros, sentiam-se mal, hipócritas, e por mais estranho que
pareça isso ainda os aproximava mais. Sentiam-se personagens de uma tragédia
romântica. Estavam encurralados. Nenhum deles tinha coragem de partir, mas
também lhes faltavam as forças para ficar.
Quando se encontravam
tudo parecia certo. No início ainda falavam sobre o assunto, mas depois
deixaram de o fazer. Estavam a viver um sonho, o seu sonho. Ali não havia
limites, todas as entregas eram totais.
A realidade não tinha
lugar.
No entanto todos os
sonhos têm um despertar. E o despertar dele também chegou.
- Isto não pode
continuar- Disse um dia Catarina. - Não consigo mais!
- Tens razão- Respondeu-lhe
Francisco. - Eu também não consigo. Não sei viver na mentira. - Temos de tomar uma decisão.
- Sabes
que o sonho só é sonho enquanto for sonho. Quando passar à realidade deixa de
ser sonho. Não sabes? – Catarina, olhou-o tristemente.
-Sei
sim. Respondeu-lhe. Mas ainda assim temos de fazer uma escolha.
- Eu
sei…
Deram a mão, olharam-se nos olhos, e… fizeram a sua escolha…
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