Simão 9


Simão sentia-se como tivesse levado uma tareia. Tinha dormido pouco e mal. Na noite os sonhos eram confusos, deixavam passar o início da paixão e o medo da morte sob disfarces para que a sua consciência não os visse.
Assim, quando acordou, tinha na sua memória cenas estranhas e não identificáveis. O corpo moído e a cabeça a latejar.
Ficou assim algum tempo, a tentar descer para a realidade e quando finalmente o conseguiu lembrou-se do Sr. José. Levantou-se de um salto, amaldiçoando a dor de cabeça e foi direto ao chuveiro. Deixou a água correr bem fria, praguejando, e pulando, mas sabia este ser o método mais eficaz para ficar bem.
- A água fria enrijece, faz-te homem! – Dizia-lhe o pai.
A lembrança do pai encheu-o de raiva, e movido por ela, esfregou-se com força e com a mesma força se vestiu e saiu de casa. Não tomou o pequeno almoço. Não tinha fome.
Chegou ao lar e espantou-se por ver que tudo se passava normalmente.
As auxiliares andavam de um lado para o outro a brincarem e a meterem-se com os enfermeiros que retribuíam as graçolas. Os outros doentes andavam, aqueles que podiam, a passear no jardim aproveitando a bela manhã de sol que se fazia sentir.
- Mas que raio! – Disse para si. – Esta gente não tem sentimentos?
Avançou resoluto para o quarto do Sr. José, mas quando lá chegou parou em frente à porta que estava fechada.
Receoso, avançou e encostou o ouvido à porta. Nada. Não ouvia nenhum som. Seria que?... Não. Não queria pensar nisso. Devagarinho abriu a porta e enfiou a cabeça.
- Estás com medo de quê? – A voz de trovão fez-se sentir.
Assustado, empurrou a porta com força, fazendo um estrondo ao batê-la contra a parede, e estatelando-se no chão.
- Então? Eu é que tive o AVC e tu é que cais?! – O Sr. José estava a divertir-se com a situação.
Simão levantou-se como que impulsionado por uma mola.
- Porra! Que susto. – Reclamou.
- Qual deles? – Perguntou mordaz.
- Hein? – Simão aproximou-se da cama.
- Qual susto te preguei, o que te fez cair, ou o que te fez querer passar cá a noite?
- Os dois. – Resmungou. – Mas já vi que não passou disso.
- Pois não. – Tossiu. – Estou aqui para as curvas.
- Porque é que não quis ir para o hospital? – Perguntou-lhe zangado.
- Porque não. É assunto meu.
- Mas não percebe? Desta vez safou-se, mas da próxima pode não ter tanta sorte. – Simão sentou-se no cadeirão.
- Se não tiver, paciência. Isso é um problema meu. – Tossiu com mais violência.
- Vou chamar a enfermeira. – Disse Simão levantando-se.
- Não vais nada! – Proibiu entre ataques de tosse. – Dá-me a minha garrafa de água se faz favor. Ontem levaram-ma e não sei onde ma puseram…
Simão começou a procurar no quarto e enquanto remexia nas coisas ouviu perguntar:
- O que se passa entre ti e a enfermeira Rosária?
Espantado com a pergunta que não esperava, deixou cair a garrafa que, entretanto, tinha encontrado.
- Como é que sabe? O que ouviu? Quem lhe disse? Isso é mentira. O que lhe contaram?
Estava visivelmente nervoso.
- Calma rapaz. Já te disse que isto é um antro de fofocas. Mas relaxa que ninguém me disse nada…Foi só uma conversa que eu ouvi…
- Que conversa? – Continuava irritado.
- Dá-me lá água, anda. – Tentou levantar-se.
Simão depressa correu para ele e ao mesmo tempo que lhe dava a água ralhava-lhe para que se deixasse estar quieto.
- Deixa-me. Não estou invalido!!! – Trovejou.
- Ainda… - Deixou escapar o que valeu um olhar irado do Sr. José.
Levantou os braços em sinal de desculpa e tornou ao assunto que o interessava.
- O que é que ouviu dizer? Não gosto nada disto…- Resmungou.
- Não foi nada de especial. Apenas ouvi dizer que tu e ela estiveram muito próximos ontem, no corredor, mas quem o disse não foi com essa intenção. Até foi para te elogiar, dizendo que tinhas chegado com ela e que querias passar aqui a noite.
Simão murmurou uns comentários desagradáveis e incompreensíveis…
- Fogo. Esta gente é mesmo coscuvilheira. – Desabafou.
- Deixa lá esta gente. Não fazem mal a uma mosca. Não é com eles que estou preocupado, é contigo.
- Comigo? Porquê? – Tentava fazer-se despercebido…
- Vá lá. Já nos conhecemos o suficiente para passar essa fase…Sabes que podes confiar em mim…
- Se não confia em mim para me dizer porque não quer ir para o hospital, porque é que hei-de confiar em si? – Respondeu com agressividade.
- Touché! – Riu-se o Sr. José.
Ficaram calados, cada um a pensar para si naquilo que só eles sabiam… E assim ficaram por algum tempo, com Simão a olhar para a ponta dos sapatos e o Sr. José a olhar para a janela, até que por fim O Sr. José quebrou o silêncio.
- Muito bem. Se queres saber, eu não quero ir para o hospital porque tenho medo. Tenho medo de sofrer, mas acima de tudo tenho medo de morrer lá, sozinho numa cama, rodeado por gente estranha. Pronto.  Estás satisfeito?
- Mas…lá tem mais hipóteses de sobreviver…
- Mas eu não quero sobreviver, quero viver, ou morrer… Entendes? Na minha idade e com aquilo que já vivi, posso dar-me ao luxo de escolher…
- Não percebo. Porque é que alguém recusa ajuda num caso destes?
- Já te expliquei. Ainda és muito novo. Não entendes. Um dia chegarás lá. – Sentenciou. – Mas agora que já te contei, quero saber de ti. Sabes que me preocupo contigo…
- Eu sei…- Desabafou. – Mas nem eu sei o que se passa ao certo.
E arrastando o cadeirão para ao pé da cama, contou-lhe tudo em voz baixa para que as paredes não ouvissem… 











Comentários

Mensagens populares