Simão 5



- Queres falar sobre isso? – Rosária perguntava sem, no entanto, insistir. Vira como ele ficara alterado, e conhecendo-o já um bocadinho, sabia que aquele transtorno não se devia ao facto de ele ter limpado o vomitado. Era mais do que isso! Não queria, no entanto, forçá-lo. Sabia por experiência própria que isso dava mau resultado.
- Não. – Ele abanou a cabeça para confirmar a firmeza das palavras. – Quero só que fiques aqui um pouquinho, pode ser? – Acrescentou a medo.
- Claro que sim.
Ela sorriu e o seu sorriso envolveu Simão num abraço aconchegante.
- Sabes? – Disse ele passado alguns segundos. – Eu fiquei sem o meu pai, tive de tomar conta da minha mãe, perdi os meus amigos, a minha casa e nunca, NUNCA, me passou pela mona matar-me!!!
Ela não respondeu de imediato.
- Não somos todos iguais...- Respondeu por fim.
- Blahg! – Retorquiu ele com uma expressão que mostrava o desprezo por quem é fraco.
- Não sejas assim.…Estas a julgar. Logo tu que não queres ser julgado...- O tom dela era neutro. Sem críticas. Sem acusações. Apenas a alertá-lo para algo que fazia errado.
Ele levantou-se e deu um pontapé numa pedra. De costas para ela deixou escapar. 
- E ainda por cima por causa de um namorado!!! Como se alguma relação valesse a pena o nosso sofrimento. Só gente burra reage assim.
Ela riu-se.
- Nunca digas “Desta água nunca beberei” ... Já vi muitos como tu caírem de quatro por uma rapariga...
Ele riu-se também, mas depois disse com um ar demasiadamente sério para a sua idade.
- Eu não. Eu nunca me apaixonarei. Nunca!!!
- Simão! – O enfermeiro vinha à sua procura. – Ah estão aí os dois! Sabem que há trabalho a fazer, não sabem? Simão o Sr. José quer falar contigo. E tu, Rosária, a enfermeira Maria anda à tua procura. 
Simão deu um salto e despedindo-se por cima do ombro foi em direção ao quarto do sr. José.
Rosária, no entanto, deixou-se ficar mais um pouco.
Tinha-se impressionado com a força da última afirmação de Simão.
Sabia que ele era novo, e que vida daria muitas voltas, mas raramente tinha visto uma expressão daquelas. Uma expressão que não sabia bem identificar, uma mistura de raiva, com dor, com desapontamento e com.…um pedido de ajuda? Seria?

Rosária tinha 27 anos. Apenas mais 10 do que Simão, mas já passara por muito na vida. Órfã desde os 5 anos, fora criada com uma tia paterna que fez dela a sua criada pessoal, apenas a inscrevendo na escola aos 8 anos, quando alguém dos serviços sociais, após uma denúncia, a obrigou a isso sob pena de a retirarem da sua guarda. E isso a tia não queria de modo nenhum, era uma vergonha perante as amigas e, além do mais ficaria sem a sua criada de serviço ...Assim não teve outro remédio que não o de a inscrever na escola mais próxima. 
Essas foram, para Rosária, as horas mais felizes da sua infância.
Quando estava na escola, fora do alcance da tia, longe do trabalho de escrava a que ela a sujeitava, era como os outros meninos, embora mais velha, não se sentia assim. Era aceite. Porém, como qualquer prisioneiro, ansiava pela liberdade e assim que teve idade, e alguém que lhe mostrou um sorriso e um afeto, saiu de casa para se casar, para ser livre.
Isto era o que ela pensava, e foi-o de facto nos primeiros meses, mas assim que o período de encantamento passou, o marido mostrou o seu verdadeiro eu, um ser obsessivo e possessivo, raiando muitas vezes a barreira da agressividade. 
Rosária sofria em silêncio, mas como não era independente financeiramente, e voltar para casa da tia estava fora de questão, e também, sobretudo também, porque não queria desistir o sonho, ia aguentando, lutando, esperando que ele se emendasse, que um milagre acontecesse. 
Ora como quem espera sempre alcança, já o diziam os antigos, o milagre acabou por acontecer.
A sua cunhada, que era estudante de enfermagem, veio viver com eles, durante o curso, e estimulou-a a seguir-lhe o exemplo. Fora difícil convencer o irmão, mas uma carta bem jogada, uma carta que até aquele dia Rosária desconhecia, obrigou-o a não só aceitar que a mulher tirasse o curso, como que, a seguir a isso, fosse trabalhar. 
De cara fechada e humor reprimido ele foi aguentando, até que chegou um dia, em que entrou porta dentro com um ramo de flores e dirigindo-se à Rosária, lho estendeu dizendo.
- Toma. Cada flor representa um ano de vida em comum. Quando as flores murcharem partirei para uma nova vida. Sairei de casa. Tu e a minha irmã podem aqui ficar o tempo que quiserem. Para sempre até, desde que nunca, mas nunca mais me contactem. Estão aqui os papéis do divórcio. Agora que estás muito erudita, podes lê-los e assiná-los. Verás que a divisão dos bens foi feita de uma forma justa, mais do que justa, tendo em conta que vieste com uma mão à frente e outra atrás!
- Mas, o que? Divórcio? O que estás para aí a dizer? 
- Sabes bem que desde que começaste a estudar que nunca mais foste a mesma. Tu e eu já não somos nada um ao outro há muito tempo. Apesar de te sustentar, tu nem sequer...Não vale a pena viver assim. Quero ter uma mulher decente, não uma...- E olhou-a com um ar de desprezo.
- Uma, quê? – Rosária sentiu uma fúria que desconhecia a crescer dentro de si. Era preciso ter lata. Ela tomava conta da casa, cozinhava para ele, tratava-lhe da roupa, cuidava dele quando estava doente, e ainda engomava para fora para ter alguns tostões para si evitando dessa forma, pedir-lhe mais do que o pouco que ele lhe dava, e agora, só porque resolvera recomeçar a estudar, a fazer algo por si, era tratada como uma parasita?!
Atirou com as flores para o chão. 
- Podes ficar com a tua casa, e tudo o que nela está. Eu saio hoje mesmo. E fica descansado, que te pagarei o dinheiro que gastaste comigo até ao último cêntimo. 
Naquele dia, Rosária pegou numa mala, enfiou lá dentro o pouco que podia chamar de seu, e deixando um bilhete à cunhada, saiu porta fora.
Fora o fim da sua prisão. 

- Rosária! Estás surda, ou quê? A enfermeira Maria está farta de te chamar. – António gritava da porta da sala dos enfermeiros. – Vens ou não?
- Vou, vou. – Respondeu Rosária levantando-se e sorrindo. Estava longe de tudo aquilo. Estava bem...




Comentários

Mensagens populares