Simão 8




Rosária tinha escolhido um prato simples e saboroso.
Nada de muito elaborado, para que ele a pudesse acompanhar na confeção.
Tinha escolhido rolo de carne, acompanhado de batatinhas assadas no forno.  Era simples de fazer e fazia uma bela vista depois de pronto. E com certeza que seria do seu agrado…
Simão olhou para o avental que ela lhe estendeu e sorriu. Era um avental de cozinha, preto com letras grandes que diziam:
“Chef..., Mas pouco!”
Era uma referência a uma série televisiva cômica dos anos 90 que ele não identificou. Pensou que era uma indireta à sua falta de conhecimentos de culinária e fez um ar de falso amuado.
O avental cheirava a novo. Colocou-o, apertou o cinto e ficou à espera de ordens...
Ela foi buscar o seu, colocou-o também e foi buscar dois copos que encheu com um vinho suave. 
- Bebes? – Perguntou ao mesmo tempo que lhe estendia um.
- Claro! – Respondeu ele melindrado. – Não sou nenhum bebé.
Ela riu-se e virou-lhe as costas, começando as preparar as coisas.
Simão respirou fundo, bebeu um gole maior do que era suposto e entrou “na onda”. Se era para passar vergonha, ao menos passá-la-ia em grande estilo!!!
Depois, poisou o copo na bancada, arregaçou as mangas, pegou numa faca, e com um ar ameaçador, brincou, de faca em punho:
- Muito bem. Por onde começo?? – Perguntou com voz teatral.
Ela olhou-o como se de um louco se tratasse, e rindo-se respondeu:
- Pois bem, já que estás cheio de vontade, começamos pela delicada e mui difícil arte de descascar batatas. - Estendeu-lhe uma e pegou noutra para si.
- Pf !!! como se isso fosse difícil. Tu não conheces o cheff Simas!!!
- Ai não é difícil? Ótimo!! Quero ver essas batatas sem pele, mas com
“carne”.
- Carne?
- Sim, não quero que com a pele venha metade da batata atrás. E tens
que tirar os “olhos” também ...
- Olhos? Agora estou a ficar assustado. Quem és tu? – Perguntou ele com um ar horrorizado.
- Os olhos da batata, palerma. As manchinhas pretas que ficam depois de descascares..., Mas que raio de chef me saíste tu?!
Ele olhou para o avental, e rindo-se disse:
- Chef ... Mas pouco!!!
Riram – se muito e ela sem se aperceber levou a mão ao pescoço. Ao
reparar nisso, Simão lembrou-se do fio.
- Espera! Disse ele sério, e poisando tudo na mesa.
- Hã? – Retorquiu espantada.
- Já venho! - e saindo da cozinha foi até a sala procurar o casaco.
Rosária na cozinha, pegou no copo de vinho e bebeu-o de um só trago. Não estava habituada a beber, e sentia- se nervosa pelo que o efeito calmante do vinho foi suplantado pelo efeito desinibidor ... Mas disso ela não se apercebeu...
Simão regressou logo depois. Trazia as mãos atrás das costas e aproximando-se dela estendeu-lhe os braços, de mãos recheada e disse, como no jogo infantil:
- Escolhe!
Ela olhou-o e sorriu, depois fez um ar de quem pensava seriamente na escolha e
bateu na mão que estava mais cheia.
- Agora fecha os olhos – Continuou ele
Ela obedeceu.
- Ele rodeou-a e com muito cuidado abriu a caixa e colocou-lhe o fio ao
pescoço. Ela estremeceu.
-Tcharam!!! Podes abrir! – Ele parecia um miúdo pequeno.
Ela levou as mãos ao pescoço e puxou o fio ligeiramente para a frente para ver melhor o penduricalho. Era um anjo. Olhou-o emocionada, interrogando-o com o olhar. Sensibilizada.
Sempre iria receber uma prenda no seu dia de anos, ainda que ele não soubesse. Ou saberia? Não queria saber. Não resistiu ao impulso que sentiu e abraçou-o. Há quantos anos ela não recebia nenhuma prenda?
- Obrigada! - Disse com a voz embargada.
- Ora. É só um fio. Uma prenda pelo jantar. - Respondeu ele sem jeito.
- Claro! Desculpa a minha reação. Mas há muito tempo que não recebia uma... - Respondeu arrependendo-se de imediato, e começou a afastar -se embaraçada, e ele que de repente olhou para ela, não como Rosária , a sua mentora, mas como Rosária, a miúda pequena que recebeu uma prenda, sentiu o coração cheio de uma emoção que desconhecia, e puxou-a para si, abraçando-a novamente com toda a força que tinha e sem falarem, assim ficaram, agarrados um ao outro, a perderem-se um no outro até que o telefone de Rosária tocou.
Atrapalhados, como se tivessem sido apanhados nalguma falta, afastaram-se muito rapidamente.
Ela foi atender o telefone, ele foi beber o vinho que tinha no copo de uma só vez.
Não percebia o que tinha acabado de acontecer e isso incomodava-o, porém não teve tempo de pensar mais nisto. Rosária entrou logo de seguida, muito corada.
- Desculpa. Tenho de ir ao lar. O Sr. José está a ter uma crise.
- O Sr. José? Vou contigo. - Respondeu pousando o copo. - Vou só buscar o casaco.
- Mas não precisas de vir. É tarde. - Ela pegava na mala e nas chaves ao mesmo tempo que ia buscar o casaco.
- Se é o Sr. José, eu vou! - Respondeu resoluto e já com a mão na maçaneta da porta.
Ela encolheu os ombros, sabia e compreendia a amizade que os unia. Pegou no casaco e passando por ele disse:
- Vamos, então.
Desceram os degraus apressadamente. Em silêncio.  As suas mentes, porém, gritavam confusas, tentando rotular o que não tinha rótulo, alternando entre a preocupação e a emoção. O mesmo se passou durante todo o trajeto até ao lar, que por sinal era curto.
Mal, estacionaram, saíram os dois a correr, ela dirigiu-se à sala dos enfermeiros para se inteirar da situação, ele foi diretamente ao quarto do Sr. José.  O barulho que ouviu atras da porta fechada fê-lo hesitar.
Abriu-a devagar, e a medo, espreitou. Enfiou a cabeça pela fresta aberta e viu um remoinho de pessoas de volta dele. Assustou-se e tornou a fechá-la. Sentou-se no banco de pedra que nunca lhe parecera tão frio e lúbregue como naquele momento.
Estava assim, parado, sem pensar, ainda há não muito tempo, quando Rosária se aproximou.
- O que se passa? - Levantando-se, perguntou-lhe.
- Não é nada de grave, não te preocupes. Fica aqui que eu já te chamo.
Deixou-se ficar. Mais calmo. Se ela dizia que tido estava bem, era porque estava. Confiava nela a 100%.
Ela era uma mulher incrível, não tinha nada a ver com a mãe, ou as professoras, ou com as miúdas que ele conhecia. Era diferente, era muito ...melhor. E isto levou-o de volta ao abraço.  Sentira-se tão bem, e até levemente excitado. Corou ao pensar no que sentira.
- M*da! - Pensou aflito. - Será que ela dera por isso? E agora? Não tinha coragem de a encarar…
Mas o tempo foi passando e ela não vinha como prometera, e a preocupação com a reação dela deu lugar à preocupação com o Sr. José.
Rosária saiu passado algumas horas que a Simão pareceram anos.
Até lá, era um corrupio de médicos e enfermeiros e auxiliares a entrarem e a saírem, máquinas de um lado para o outro, carros com líquidos e outros instrumentos que ele não conhecia que iam e vinham e ninguém lhe dizia nada. Não tinham tempo. Nem sequer o viam.
Assim que ela saiu e ele a viu, afundou-se num cadeirão que ali estava, receando más notícias. A cara dela não era das melhores...
- Então? - Perguntou desalentado.
Ela respirou fundo e sentou-se ao lado dele, no banco de pedra corrido. Encostou a cabeça à parede e fechou os olhos por uns segundos. Estava cansada. Tão cansada.
- Então? - Repetiu ele.
- Está tudo bem. - Respondeu ela baixinho, levando a mão ao fio.
- Tudo bem? Mas ainda está tudo lá dentro. E ainda ouço uma data de barulhos. - Ele não estava muito convencido.
- Sim… Mas o pior já passou. - Ela estava sem forças. Eram muitas emoções no mesmo dia.
- Mas o que é que ele tem? - Perguntou junto à porta do quarto. Tinha-se levantado para ir espreitar.
- Ainda não se sabe bem. Ao que parece foi um AVC.
- AVC?! Mas porque é que não chamaram o INEM?! - Agora era o espanto misturado com a revolta.
- Porque ele tem um documento escrito em como não quer ser levado para nenhum, caso lhe aconteça alguma coisa. Nem quer que avisemos a filha.
- Filha? Ele tem uma filha?
- Ao que parece... Olha já é de madrugada. Eu vou levar-te a casa, hoje já não o podes ver.
- Não. Não quero ir. Não tenho lá ninguém. Posso ficar aqui?
- Aqui? Estás doidinho?
Ele regressou para junto dela e tornou-se a sentar. Aos poucos começaram a sair as pessoas e as máquinas. Iam a falar uns com os outros como se nada se tivesse passado e mais uma vez não olharam para eles.
- E tu? Onde vais dormir? - Perguntou quando o corredor voltou a ficar vazio.
Ela levantou-se.
- Aqui. Mas tu não. Anda.











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