Simão 6
-
Olá Sr. José, queria falar comigo?
-
Entra rapaz. Senta-te aí. - O Sr. José indicou ao Simão o cadeirão que ele
reservava para as visitas de quem gostava. Quem ele não gostava era convidado a
sentar-se numa cadeira de ferro. Dura e fria. E, se algum mais atrevido se
dirigia para o cadeirão, o Sr. José tinha já o discurso pronto e ensaiado.
-
Aí não! Aí era onde se sentava a minha saudosa mulher. Esse lugar é sagrado.
E
as pessoas, acreditando ou não, obedeciam, pois, ninguém queria contrariar um
velho herói de guerra.
-
Coisas de velho...- Diziam uns.
-
Privilégios de velho...- Dizia ele.
Simão
sentia-se orgulhoso no seu íntimo por ter conquistado aquele assento.
-
Então? - Perguntou ajeitando-se no meio das almofadas.
-
Então, ouvi dizer que ficaste para aí muito impressionado com a história da
moça nova...
-
Como assim? - Endireitou-se na cadeira numa atitude defensiva. - Que ficaste
perturbado por ela se ter tentado matar.
-
Mas...como é que soube? - Simão estava já a pensar na Rosária, mas tinha
acabado de falar com ela. Não havia tempo de...
-
Ora como é que soube…, como é que soube?! – O Sr. José gesticulava mostrando
que a pergunta tinha uma resposta óbvia. - Isto é uma casa de mulheres, nada acontece
aqui que não seja passado e aumentado em segundos...
O
Sr. José riu-se e ato reflexo começou a tossir. Simão levantou-se e imediato
para o ajudar. Endireitou-o na cadeira e estendeu-lhe um copo de água.
-
Obrigado. - Respondeu entre goles. - Obrigado.
Simão
voltou ao seu lugar.
-
É como diz. Elas aumentam tudo. Fez-me impressão, mas já passou.
-
Já? Isso é mau sinal.
-
Mau sinal?
-
Claro.
-
Porquê? – Simão não estava a perceber e já estava a pensar que ele tinha
começado a “variar”.
-
Porque é sinal de que não te importas com as pessoas.
-
Eu importo-me. Não sou é maricas. - “Eriçou-se” como um gato. A vivência da rua
voltava à sua pele.
-
Maricas? Importares-te com alguém é ser maricas?!
-
Não…, Mas ficar impressionado é.…- Respondeu cabisbaixo.
Gostava
muito do Sr. José. Ele tinha sido um herói na guerra. Nunca mostrava medo de
nada. Contava-lhe histórias que passara por lá, todas elas fascinantes. Não
queria parecer um menino mimado ao pé dele.
-
Mas quem te disse um disparate desses? - A voz do Sr. José parecia um trovão.
Simão
encolheu-se e não respondeu. Muito a custo o sr. José levantou-se e foi até ao
armário, recusando a ajuda que Simão lhe ofereceu. Abriu a porta, vasculhou
algumas coisas e tirou de lá de dentro um pequeno álbum de fotografias.
Estendeu-o a Simão e mais uma vez com dificuldades, e sozinho, voltou para o
seu lugar. Sentou-se.
Simão
olhou para o álbum. Era pequeno, tamanho A5 e forma retangular. Tinha uma capa
castanha e gravura a alto relevo de uma paisagem africana. As folhas eram de
cartolina preta, e por elas estavam espalhadas e presas fotografias a preto e
branco, com uma barra branca e os jeitos rendilhados.
Tudo
cheirava a antigo.
-
Abre-o na 4° página.
Simão
obedeceu.
-
Agora, está aí uma fotografia com um soldado a segurar uma arma e a fumar um
cigarro não está?
Simão
acenou afirmativamente.
-
Esse era o João. Um camarada do meu destacamento. Não o conhecia muito bem, mas,
como eu tinha uma câmara e ele não, pediu-me para lhe tirar essa foto para
enviar para a namorada. Por isso estava com esse ar tão apalermado. - Riu-se.
Simão
sorriu também sem perceber aonde é que aquilo ia dar.
-
Duas semanas depois desse foto, suicidou -se. Tinha encontrado um miúdo turra
com uma arma. Apareceu-lhe pela frente numa emboscada e ele com medo de morrer disparou
matando o rapazito. Era ele ou o miúdo, percebes? Era uma questão de sobrevivência.
Mas João era um homem bom, e não aguentou os remorsos de ter matado uma
criança, pelo que fomos dar com ele, uns dias depois, enforcado numa árvore ...
Sabes o que fiz?
-
Simão abanou a cabeça.
-
Chorei. Chorei e gritei, e desesperei e quis desistir e vir-me embora. Mas
fiquei. Sabes porquê?
Simão
estava assoberbado. Tornou a abanar a cabeça, com os olhos muito abertos para
ouvir cada pedaço daquela vivência.
-
Fiquei por ele e pelo miúdo e por todos os miúdos. Para por um fim aquilo tudo,
para que as mortes eles não fossem em vão. Se fiz bem ou não, não sei. Hoje questiono-me,
mas naquela altura foi o que me pareceu mais correto.
Simão
estava de boca aberta. Não sabia bem o que pensar acerca do que tinha acabado
de ouvir. Ia contra tudo o que sempre aprendera desde pequeno. "Os homens
não choram." " Os homens são fortes", " Os homens não têm
medo". E agora um herói de guerra que fez tudo aquilo que os homens não
fazem...
-
E não sentiu medo? - Perguntou, arrependendo-se de imediato da pergunta. Era
estúpida.!!!
Mas,
o sr. José sorriu. E respondeu como se a pergunta fosse pertinente. Ele
percebeu a desorientação de Simão...
-
Se eu tive medo? Tive muito medo mesmo. Tanto medo que muitas vezes me
aconteceu acobardar-me e fugir de certas situações.
Isto
foi demais para Simão que se endireitou no cadeirão e perguntou num tom de
acusação.
-
Então, mas um herói acobarda-se?!
-
Simão, heróis não existem. Existem homens que de vez em quando têm atos de
coragem que os outros apelidam de atos heroicos. Mas são homens iguais aos
outros. Tem medos e dor e dúvidas como todos os outros. Não te deixes enganar
por rótulos...
-
Simão? - A cabeça de Rita, uma auxiliar, apareceu à espreita pela porta do
quarto.
-
Já não se bate? - Trovejou o sr. José. Voltara a ser o mesmo velhote
rezingão...
-
Desculpe sr. José. - A cara de Rita pôs-se vermelha. - É que está na hora de
Simão ir...
-
Ir para onde? - Resmungou.
-
Ora para onde...Para casa! A mãe telefonou à procura dele.
-
Até amanhã Simão.
-
Até! - Respondeu ele levantando-se do cadeirão. E quando ficaram os dois no
quarto, a sós, Simão foi ter com o sr. José e abraçou-o com muita força, porque
afinal de contas, os homens e os heróis também gostam de afeto.!!!
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