Carolina 6

Filipe chegou a casa cansado. Aquela vida de repórter free lancer era esgotante.
Tinha de se esforçar o dobro dos colegas, andar sempre de um lado para o outro à procura da melhor notícia e tinha de ter a notícia melhor e em primeiro para ser aceite pelos jornais.
Era um desafio constante, e ele gostava, mas ultimamente sentia-se esgotado.
Era regressado da Síria onde por um especial favor conseguira aceder ao cenário da guerra, e embora esta não fosse a sua primeira reportagem do género, desta vez sentia-se mais abalado. Teria sido aquele miúdo que o impressionou?
Estava a atirar à parede uma granada, como se fosse uma espécie de jogo, e quando ele lhe alertou para o perigo de a granada explodir e ele poder morrer, ele simplesmente virou-se para Filipe e com aqueles olhos grandes e tristes, a cara suja e com ar de fome, apenas respondeu:
- E depois? Se não for hoje é amanhã! -  E, encolhendo os ombros atirou com a granada para longe e foi-se embora.
Filipe seguiu-o com o olhar, incapaz de dizer ou fazer algo, viu-o desaparecer na rua, mãos nos bolsos, andar indolente e cabeça erguida.
A morte não o assustava.
Depois desta cena, Filipe ficou mais dois dias e veio-se embora, sempre com aquela imagem na cabeça.
Assim, quando o seu colaborador o chamou para ir cobrir aquela notícia da morta no jardim, fê-lo sem grande vontade, e fê-lo mais porque era o jardim perto do trabalho da irmã e já tinha saudades dela.
De repente sentiu uma necessidade de voltar à infância ao seu mundo seguro de contos e aventuras. 
 Foi por isso que aquele e mail lhe chamou a atenção.
Lembrou-lhe a infância e os serões na quinta onde as suas avós lhes cantavam músicas destas à roda das espigas de milho. Cada molhe de espigas desfiadas, cada canção, e quem acabasse primeiro o molhe, tinha o direito de escolher a próxima música...
Estava nestas cogitações, sentado no sofá de olhos fechados e whisky na mão, quando o seu relógio deu sinal da entrada de um mail novo na caixa do correio. Olhou para o pulso para ver de quem era e como era do seu colega resolveu levantar-se e ir ver de que se tratava.
Muito preguiçosamente, largou o copo. Levantou- se e arrastou-se até à secretária, onde se sentou e ligou o computador que quase de imediato lhe deu o mesmo sinal de correio novo na caixa de correio virtual.
Abriu o mail. Eram novas informações sobre o caso de hoje e a confirmação de que o jornal tinha aceite a sua reportagem da Síria. Terminava com os parabéns pela excelente reportagem e um aviso de que se ele queria vender a de hoje também, era bom que se despachasse.
Filipe bufou.
Não lhe estava mesmo nada a apetecer escrever acerca daquilo. Nada. Mesmo nada.
Foi então que os seus olhos resvalaram para o mail abaixo.

Sorriu e resolveu abri -lo.
Começou por ler a descrição que a pessoa fazia de si própria e a motivação que a levara a escrever. Nada de especial, o trivial.
Depois decidiu ler os contos, por descargo de consciência, convencido que a sua irmã deveria ter razão. Leria apenas o primeiro, para não dizer que julgava em vão.
Imprimiu-os, porque apesar de não ser ecológico, ele não gostava de ler no computador, gostava do papel e de escrever anotações nas margens.
Começou sem interesse, a ler na diagonal, mas pouco a pouco foi ganhando o interesse e quando deu por si, tinha-se levantado, tinha ido buscar um lápis e tinha rabiscado as margens não de um, mas dos três contos.
Há muito tempo que ele não lia nada assim. Uma escrita simples e “limpa”, honesta, com humor e muita observação e reflexão acerca das pessoas e das suas vidas, descrita de uma forma que prendia o leitor até ao fim e lhe deixava na mente um “sabor a pouco”, fazendo-o querer saltar para dentro da estória e ir até ao fim, conhecer e falar com cada personagem.
Ficou impressionado.





Comentários

  1. Não tenho seguido a Carolina, penso que li o primeiro e o segundo. Mea culpa. Mas este, lido separadamente , apenas por si próprio, está muito bem escrito, límpido . Gostei bastante e não é por ser Natal.

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    1. Obrigado. Um grande beijinho. A sua opinião é muito importante para mim, já sabe...Feliz Natal.

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  2. Vim aqui para acompanhar este café de natal, com a casa ainda silenciosa, com uma história-companhia . Custa tanto o disparate da disparidade do mundo... Obrigada pela partilha :) bom Natal

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    1. Obrigado eu pela sua partilha. É importante saber que cheguei a alguém de uma forma boa. Bom Natal

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