Alice 9

 

-Trim, Trim. – Como que adivinhando o que Pedro estava a sentir, Isabel, a sua mulher ligou-lhe.

- Trim, trim. – O telefone tocava e vibrava na algibeira das calças sacudindo-o do torpor em que ele entrara.

- Trim, trim. – Aquele som era-lhe familiar. Era o toque da sua mulher, que sempre gostara de coisas antigas e escolhera aquele toque pois fazia-lhe lembrar os tempos em que ia para o trabalho da mãe, que fora telefonista, e que lhe trazia boas memórias.

- Trim, trim. – Desligou o aparelho.

Sentia-se culpado. Sentia que estava a ser um canalha, pois a mulher tinha ido a uma consulta de psiquiatria e provavelmente quereria falar com ele acerca disso. Mas naquele momento não. Não lhe apetecia.

Não era por causa de Alice.

Não! - Disso tinha ele a certeza. Só que…Não lhe apetecia!!!

 Estava cansado de dramas e de discussões. E ali, com a Alice, estava-se tão bem… Era tudo tão simples…

Caramba! Ele também era filho de Deus! Também podia errar um pouquinho de vez em quando! Logo, quando chegasse a casa, logo lhe daria a atenção que ela sempre pedia, mas agora não. Agora deixassem-no aproveitar este bocadinho.

Com um sorriso no rosto que tentou manter neutro de emoções, foi ter com o passarito que piava desalmadamente, mais por medo do que por dor.

- Pronto, pronto, amigo. Deixa lá ver o que isso é.

Pegou nele e Alice acercou-se.

- Ora não é nada. É só um arranhão na asa. Vês? – Mostrou-o a Alice.

- Vou lavar com soro, para ver melhor. Segura-lo?

Passou-o para as mãos dela e mais uma vez as suas peles se tocaram e se sentiram de uma forma breve, mas intensa.

Ambos o sentiram.

Ambos o calaram.

Com cuidado, ela pegou no animal e abriu-lhe a asa para que Pedro a pudesse lavar.

- Pronto. Não é nada. Vês? – Tornou a repetir. – Acho que nem precisa de Betadine. Vamos pô-lo no ninho que a mãe deve estar preocupada.

- Achas? - Alice não parecia muito convencida.

- Acho. – Respondeu ele, olhando-a nos olhos.

Nesse momento, Alice sentiu a força dele, e nesse momento, sem saber porquê, sentiu que podia confiar nele.

É engraçado, pensaria Alice, mais tarde, sozinha no seu quarto, como é que às vezes pequenas palavras e pequenos gestos podem dizer tanto acerca de uma pessoa. Não saberia explicar, nem dizer o porquê, nem qual o gesto ou a palavra que ele fez que a levou a ter essa certeza. No entanto tinha-a. No entanto sabia-o. Podia confiar nele.

Foram os dois colocar o passarito na árvore e o telefone dele voltou a tocar.

- Não atendes? – Perguntou Alice inocentemente.

- Atendo, atendo. – Disse ele. – Deixa-me só ajeitar o ninho.

Alice pressentindo que ele não queria falar à sua frente, assentiu com a cabeça e voltou para dentro. Iria procurar o que estava escrito no livro.

- Qual a tua cor favorita?

- De que comida gostas mais?

          - Mas o que é isto? Não é a mesma letra. Nem o mesmo estilo…Não parece ser a mesma pessoa… - Alice interrogava-se sobre isto quando Pedro entrou na sala.

          - Olha. – Disse-lhe. – Não achaste estranho?

          Pedro viu-a com o livro na mão e corou amaldiçoando-se.

          - Parvo! Quem te mandou fazer isso? Porque é que não arrancaste a folha? Porque é que não ficaste quieto? – A sua mente bombardeava-o com todos estes pensamentos, enquanto tentava encontrar uma solução para a asneira que fizera.

          Pigarreando, concordou com ela.

          - Hum... Sim. Parece esquisito, não parece?

          - Sim. – Ela aproximou-se dele com o livro aberto. – Olha a letra. Olha o estilo. Não é o mesmo. De certeza. Não achas?

          - Acho…Acho sim…

          - Achas que alguém descobriu isto e pôs-se a brincar?

          - Pppois. Se calhar… - Mais uma vez amaldiçoava-se por não ter disfarçado a letra. E se ela a reconhecesse?

          - E agora? O que fazemos?

          Não lhe respondeu. A conversa com a mulher e a vergonha da asneira que fizera impediam-no de raciocinar, e como sempre fazia quando se sentia atrapalhado, calou-se.

          - Já sei. - Disse ela num repente e os seus olhos iluminaram-se.

          Como brilham quando está contente! – Observou ele. – Quem me dera…

          Alice virou-lhe as costas e foi até à mala. Remexeu-a um bocado, à procura de alguma coisa e passados uns breves instantes, tirou de lá uma caneta.

          - Vamos escrever e dizer-lhe para ele responder e esconder o livro.

          - Como assim? Não estou a perceber.

          Aproximou-se dela, que, entretanto, se sentara no cadeirão com o livro aberto em cima das pernas.

          - Se ele o esconder como vamos saber onde o encontrar?

          - É simples! – Respondeu entusiasmada. – Vamos-lhe dizer onde.

          - Mas assim qualquer um sabe. – Pedro não a estava a seguir no raciocínio.

          Ela não lhe respondeu e continuou a escrever como que impelida por uma força invisível. Parecia saber o que estava a fazer.

          - Pronto! – Entregou-lhe o livro para ele ler.

          - Mas… - Insistiu ele. – Como é que vais saber que não é o impostor a responder?

          - Lê! – Ordenou-lhe.

          - Sim, mas…

          - Anda lê e vais perceber.

          Alice estava orgulhosa e divertida ao mesmo tempo.

          Resignado, ele pegou no caderno.

          Não tentes enganar-me. Não foste tu quem escreveu esta última mensagem, por isso não vou responder. Não sei rimar, por isso escrevo-te em prosa.

          Se queres saber algo acerca de mim, segue o meu raciocínio. Mostra-me do que és capaz. Procura o calor da autora e deixa o livro junto à Pousada.

          Quando tornares a aparecer, diz-me, porquê este desafio? O que esperas alcançar? Porquê em adivinhas? Porquê com livros? Porquê o policial?

          Responder-te-ei então ao que me perguntares. Se fores o autêntico há uma pergunta que não me farás. Aí saberei. Não me desiludas!

          Pedro olhou-a como se ela fosse maluquinha. Ela riu-se com vontade.

          - Não percebo. Que pergunta é que ele não te fará?

          - Verás. – Respondeu-lhe coquete.

          Tirou-lhe o livro das mãos e colocou-o no lugar.

          - E agora?

          - Agora, caro Watson. Agora esperamos.

          - E nós? – Apeteceu-lhe perguntar Pedro. – Quando nos voltamos a ver?

          - Achas que ele vai responder? – Foi o que perguntou.

          - Espero que sim. – Respondeu ela decidida. – Detesto impostores.

          Falou-lhe para os olhos, de uma forma inocente, mas que ele sentiu como se estivesse a ser acusado. Sentindo o rubor característico das suas faltas, a aparecer no rosto, baixou-se para fazer uma festa ao Tim, esperando que ela não o notasse.

          Ela imitou-o e aproveitou para colocar a tela no bicho que tornou a ficar louco.

          - Tim, pára! Já vamos! – Ralhou-lhe.

          - Já vão? – Ele pensava a todo o vapor numa forma de a reter. – Mas e se o impostor responder por ele? Não é melhor deixar algo mais rebuscado?

          - Não. Não te preocupes. – Ela tentava controlar o Tim que ladrava e puxava a trela em direção à rua. – Fica atento.

          - Trim, trim.

Novamente o telefone. Novamente Isabel.

- Raios! – Deixou escapar.

- Atende. Eu vou-me já embora.

Aproximou-se dele para se despedir com um beijo no rosto. Mecanicamente, ele pegou no telefone, para desligar o som e ao senti-la perto de si, virou o rosto, mesmo no instante em que ela lhe oferecia os lábios. Beijaram-se. Os seus lábios roçaram ao de leve. De uma forma inocente, mas que os marcou como um ferro em fogo.

Instalou-se um silêncio confrangedor, apenas quebrado por uma voz feminina.

- Estou? Estou? Amor, estás a ouvir-me?

 




 

 

 

 

 

 

 

Comentários

Mensagens populares