Alice 3
Alice acordou bem-disposta, com uma energia que há muito não
sentia.
A trautear uma música alegre, tomou o seu banho, e, depois de se
arranjar, desceu para tomar o pequeno almoço. Tim, o seu fiel amigo, já a esperava
junto da taça da ração. Também ele queria comer.
- Bom dia, Tim. – Cumprimentou-o uma festa na cabeça. – Estás à
espera de comida? O dono não ta deu já?
- Uof, Uof.
- Tens a certeza? – Riu-se com vontade do ar dele, de cachorro
abandonado, com a taça na boca. À espera de que ela a enchesse.
- A tua sorte é eu estar bem disposta. – Disse-lhe enquanto lhe
tirava a taça da boca e a enchia.
- Calma, calma. Ainda me fazes cair. – Ralhou-lhe suavemente quando
ele, impaciente, se pôs em pé querendo tirar-lhe a taça.
- Toma. – Mais uma festa na cabeça. - Sabes porque é que estou tão
contente? – Perguntou-lhe com a boca cheia de torrada. - Porque descobri a
primeira pista! Ah, pois é, bebé! Tão simples! Nem sei porque é que demorei
tanto tempo…
- Logo, depois do trabalho, já vou à biblioteca.
Tim estava demasiado ocupado a comer para lhe responder, e Alice
terminando o seu pequeno almoço, saiu para o trabalho.
O dia parecia não avançar. As horas arrastavam-se pelos minutos,
pelo menos para ela que estava ansiosa para ir à biblioteca e requisitar o
livro “O crime perfeito”. Sabia que ao lê-lo iria descobrir a arma do crime.
Aliás, estava até um pouco desiludida ao perceber o quão simples tinha sido
desvendar o desafio, o que a levou a pensar que se calhar eles tinham razão e
aquilo era coisa de gaiatos.
- Boa tarde, Alice. Como vais?
- Olá Miguel, bem e tu?
Depois daquela visita à livraria tinham começado a tratar-se por
tu. Agora, reencontravam-se na cafetaria onde tinham ido lanchar.
- Cá ando. Às voltas com o novo livro. Isto de ir a casa aos fins
de semana, rouba-me tempo. Perco imenso tempo nas viagens.
- Pois é…Tu és de longe… Olha, por falar em livro, já descobri o
enigma.
- Enigma? – Miguel deu um gole no sumo.
- Sim o do caderno da livraria, lembras-te?
- Ah! Sim. Então?
- Então, ele estava a referir-se ao livro “O crime perfeito” de Michael
Lund.
- Nunca ouvi falar. – Deu uma dentada na sandes de queijo, não
dando importância ao assunto.
Mas o que é que se passa com esta gente? – Pensou Alice. – Parecem
um bando de apáticos, sem interesse por nada… Mesmo assim insistiu:
- Ouviste sim. Até foi feito aquele filme, com aquele ator escocês.
Aquele, muito conhecido, que morreu logo a seguir às filmagens. Até houve quem
ironizasse isso por causa do filme.
Enquanto falava agitava os braços para dar ênfase à narrativa.
- Ah! Sim, já sei. Tu estás mesmo a levar isto a sério não estás? –
Olhou para ela achando-lhe graça.
- Bem, a sério, a sério… Não. – Mentiu ao achar que estava a ser
alvo de troça. – Mas o que é a vida sem um bom desafio?
- É verdade, é verdade. – Concordou ele. – E agora, o que vais
fazer?
- Agora. – Ela acabou de beber o café e arrumou a chávena no
carrinho dos tabuleiros de loiça suja. – Agora vou à biblioteca requisitar o
livro e lê-lo. Tenho uma arma de crime para descobrir.
Despediu-se e saiu para o seu gabinete. Queria despachar o trabalho
e sair antes que a biblioteca encerrasse.
Já de volta a casa e depois de ir passear um Tim impaciente, mais impaciente
naquele dia com a impaciência dela, que ansiosa para regressar a casa encurtou
o passeio, sentou-se no sofá da sala em frente à lareira que estando acesa dava
ao lugar um calor especial.
Com os pés em cima de uma banco de apoio, e umas meias grossas a
espreitarem por baixo de uma manta de lã, ela poisou a chávena de café no braço
do sofá e ajeitou-se. Estava pronta para começar.
O Tim ao seu lado dormia…
Começou a leitura. Como era diferente do filme. Já não se lembrava
bem dele, mas não lhe soava aquilo que estava a ler. À medida que ia avançando
na estória, ia começando a ficar intrigada. O livro estava mesmo bem escrito. O
enredo era apaixonante e não conseguia perceber nem quem, nem como, tinha sido
morto o Davis.
Já tinha percebido que a morte “por causas naturais” era falsa. Talvez
tivessem usado veneno, mas como? E quem? E como tinha acesso a ele?
- Querida? – Filipe chamava-a da porta da sala.
- Alô? Terra chama Alice! – Brincou quando ela não o ouviu.
Muito a custo ela levantou os olhos do livro.
- Hã?
- O jantar está na mesa.
- O jantar? Nem te ouvi chegar…
- Pois. Isso já eu reparei. Estavas tão embrenhada nesse livro, que
podiam assaltar a casa e nem davas por isso.
- Óh! Desculpa. - Levantou-se e indo ter com ele deu-lhe um beijo.
- Vamos. Estou cheio de fome.
Alice seguiu-o pensando em como tinha saudades dos beijos que
trocavam aquando do início de casados. Como eram bons e vibrantes. Há quanto
tempo não sentia isso?
- Queres vinho? – Perguntou ele abrindo uma garrafa.
- Não obrigada. Ainda quero ver se leio mais um bocado.
- O que estás a ler desta vez? – Perguntou ele sem se interessar
realmente pela resposta.
Ela percebeu, mas mais uma vez resolveu insistir. É aquele mistério
de que te falei. O da livraria. Já descobri qual era o livro que ele queria que
eu lesse.
- Muito bem. E agora? – Perguntou ele enquanto cortava a carne, sem
olhar para ela.
- E agora o quê? Tim. Para baixo. Já comeste.
- E agora? Lês e depois?
- Depois, vou descobrir a arma do crime.
- Repito. E depois?
Filipe achava aquilo tudo uma parvoíce e não se inibia de o
demostrar.
Alice não respondeu. Realmente ele tinha alguma razão. O que faria
depois de descobrir, se descobrisse, a arma do crime?
- Vês como tudo isso é uma perda de tempo? Tens coisas mais
interessantes com que ocupar o teu tempo, tenho a certeza.
- Ai sim? Quais? – Alice sentia-se magoada pelo facto de ele a
estar a humilhar gratuitamente. Pelo menos era assim que sentia.
- Olha, vamos, mas é mudar de assunto e comer em paz. Daqui a meia
hora tenho uma reunião por zoom e já estou a ver onde isto vai parar.
Alice engoliu o que tinha para dizer e comeu o resto do jantar em
silêncio. Só queria voltar para o seu livro, mas estava desanimada. O melhor
era ir-se deitar, e esperar como dizia Vivian Leigh que “amanhã fosse um novo
dia!”.
Ouvi alguém dizer, e concordo plenamente, que uma das coisas boas
que a vida tem, é a de que a cada novo dia, existe uma nova oportunidade, um
novo recomeço, e para Alice, a vida deu-lhe de facto um novo começo, embora disso
ela não se apercebesse.
Usando a hora do almoço para acabar de ler o livro e regressando à
biblioteca para o devolver, aproveitou para fazer uma rápida pesquiza sobre que
tipos de venenos são comummente usados para induzir um ataque cardíaco, e que
plantas ou insetos podem provocar o mesmo.
Cruzando a informação com o que lera no livro chegou à conclusão
que a “arma” usada fora a Cicuta. Sobre ela lera o seguinte:
A
Cicuta, que se encontra, tem uma toxicidade muito alta devido aos alcalóides
presentes em toda as partes da planta, que produzem ardor na boca e garganta,
náuseas, vómitos, diarreias, paralisia progressiva dos músculos, esfriamento
das extremidades e convulsões.
Em
caso de intoxicação, é necessária hospitalização urgente. No entanto,
manipulada da forma certa e em pequeníssimas doses por profissionais, é usada
em farmacologia como analgésico, estimulante e repelente.
Ora a personagem tinha vindo de uma caçada onde se tinha molhado
e apanhado frio. Cansado, com dores e frio, resolveu, ao chegar a casa, fazer
um chá. O seu sobrinho e herdeiro, um farmacêutico, tinha já há uns tempos
enchido a lata do chá com esta planta, e ia-lha dando em pequenas doses,
fazendo-o associar aquele chá à cura de situações de analgesia e desconforto,
esperando, pacientemente, que um dia acontecesse o que naquele fatídico dia
aconteceu.
Sozinho, cansado e febril, David pegou numa mão cheia da planta
e fez o chá que o sobrinho sempre lhe dava quando se sentia mal. Resultado.
Sofreu uma intoxicação que lhe provocou a morte. Estando trancado e só em casa,
quando foi descoberto, a solução mais obvia e politicamente correta, para não
chocar a comunidade, foi a de um enfarte fulminante.
Esta foi a conclusão a que Alice chegou e num impulso, depois de
sair da biblioteca decidiu ir à livraria. Falaria com Pedro, ele com certeza, não
faria pouco dela.
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