Alice 4
Alice saiu o autocarro e olhou para o relógio. Faltavam 10 minutos
para as 7h da tarde. A livraria devia estar a fechar.
Talvez com uma corrida ainda tivesse sorte.
- Olá Pedro. Está bom? Desculpe vir quase na hora de fechar, mas
tive uma ideia, e antes que ela se fosse embora, resolvi arriscar. Não demoro.
Prometo.
Entrou com um sorriso no rosto e um ar travesso. Ofegante, por causa
da corrida, tirou o gorro que sempre trazia na cabeça e aproximou-se do balcão
travando a muito custo o ritmo do seu andamento.
Pedro estava de costas para ela, a arrumar uns livros numa estante
e ao ouvir o seu nome virou-se:
- Olá Alice. Não tem de pedir desculpa. Na verdade, eu não tenho
hora de fechar. – Sorriu. - E hoje até vai haver aqui uma reunião de um clube
de leitura que se está a formar. Talvez queira assistir?
- Um clube de leitura? Que ótima ideia. – Os olhos dela iluminaram-se.
- Hoje infelizmente não posso, mas na próxima reunião não faltarei.
É semanal? Ou mensal?
- Nem uma coisa nem outra. – Respondeu bem-disposto. – É quinzenal.
Pelo menos agora que estão a começar… Parece ser um grupo simpático. Tal como a
Alice. Com certeza que irá gostar.
Os olhos de Alice encheram-se de um brilho que iluminou a sala. E
Pedro sentiu-se iluminado também. Com um sorriso franco perguntou-lhe:
- Então? A que devo o prazer da sua visita? Qual é a ideia tão
fugidia?
Aproximou-se e cumprimentando-a com dois beijos no rosto, sentiu o
seu aroma a frutos do bosque e o toque de veludo da sua pele. Foram breves os
segundos em que se tocaram, mas ele ficou com a marca da pele dela na sua.
- É uma visita de médico na verdade. Só queria escrever uma coisa
no caderno.
- No caderno?
- Sim aquele que eu encontrei no outro dia, com um enigma,
lembra-se? Ainda lá está, espero…
- Ah! O caderno…Sim. Lembro-me, sim. E sim, ainda está lá. Ninguém
se aproximou dele, pelo menos que eu visse.
- Ora então, se me dá licença…
Sem esperar pela resposta, Alice, dirigiu-se à sala e à prateleira
onde o tinha deixado. Mais uma vez se colocou em bicos de pés e puxou para fora
o caderno, admirando-se de ainda ninguém ter pegado nele.
Depois abriu a mala, tirou de lá os óculos e uma caneta, e
colocando o caderno em cima de uma mesa de apoio, baixou-se e escreveu:
Já
descobri a arma. É a cicuta, deixada pelo sobrinho para que ele cometesse um
suicídio inconsciente.
Agora
lanço-te eu um desafio:
Um homem
duplicado, duas vidas trocadas, consegues dizer-me como acaba esta situação
complicada?
Se
mais queres jogar, a tua identidade tens de me dar…
- Pronto! – Disse para o Pedro que a observava divertido. – Desafio
cumprido e lançamento de um novo. Sempre quero ver o que ele vai responder.
- Está mesmo convencida de que não é uma coisa de miúdos, não está?
– Perguntou-lhe acercando-se dela.
- Estou. – Respondeu mais agressiva do que queria.
Ele calou-se e afastou-se um pouco, fingindo ter uns livros para
arrumar. Ela apercebeu-se de que tinha sido indelicada e foi ter com ele.
- Desculpe-me. – Disse sincera. – É que tenho sido alvo de troça, e
isso não é nada agradável. Até pode ser uma coisa de miúdos, e daí? Que mal
tem? Porque é que todos olham para mim como se eu fosse uma tonta?
Ele virou-se e com os livros na mão, demorou um pouco a responder.
- Todos não. Eu pessoalmente também gosto de uma desafio. – E dito
isto mostrou-lhe de entre os livros, um livro igual ao que ela requisitara. –
Só não sou tão corajoso…
Ao ver o livro, os olhos dela iluminaram-se e ela deu um gritinho
de contente.
- Ó! Também fui buscar esse livro. Qual foi a arma que escolheu?
- Foi o veneno.
- Veneno?
- Sim, provavelmente no chá.
- Sim, mas quem o envenenou? E como?
Sem darem conta de o tempo passar, embrenharam-se numa discussão
sobre o método usado, a arma escolhida e o autor do crime, e não fora as
pessoas do clube de leitura terem chegado, teriam prolongado a discussão por
muito mais tempo.
- Pois bem. – Despediu-se ele com um beijo no rosto um pouco mais
demorado do que as normas sociais permitiam. – A partir de agora, vou estar
duplamente atento aquela prateleira.
- Conto contigo, Watson. – Respondeu ela divertida. Sem querer
começara a tratá-lo por “tu”. Afinal de contas tinham estado a discutir sobre
um “crime”, logo…
- Watson? Porque não Sherlock? – Resmungou ele cada vez mais
atraído por ela.
- Porque… - Atirou ela da porta. E, sem mais dizer, saiu deixando-o
especado no meio da sala, com vontade de correr atrás dela.
No caminho de regresso a casa, ela sentiu um formigueiro no
estômago. Sentia-se leve e eufórica. Será que ele iria responder? E o que iria
responder? Era tão bom ter um desafio. Era tão bom ter encontrado alguém
com quem o partilhar…
Os dias seguintes passaram-se a um ritmo superlento para os dois.
Alice, olhava constantemente para o telefone à espera de uma chamada de Pedro
que lhe indicaria que tinha havido novidades na prateleira.
Pedro por sua vez, seguia atentamente cada cliente que entrava,
desesperando-se quando entravam em grupos e o retinham ao balcão por este ou
aquele motivo fazendo-o perder de vista o local assinalado com um “x”.
Todos os dias, quando fechava, ia ver se havia alguma novidade, mas
o livro continuava vazio de palavras extras. Às vezes estava um pouco fora do
sítio e o coração dele dava um coice quando lhe pegava e o abria, mas logo a
excitação dava lugar à deceção, à dupla deceção. A de não ter novidades, e
consequentemente, a de não ter um motivo para ligar a Alice.
Passaram-se duas semanas, e Alice, impaciente, resolveu ir à
livraria. Com tantas conversas e piadas, esquecera-se de anotar o número dele e
não o queria pedir a Miguel. Tinha ficado um pouco aborrecida com a maneira
condescendente com que ele a tratava desde que lhe falara que tinha lá ido
responder ao desafio.
Ele e o marido.
Os dois estavam, por aqueles dias, na lista dela dos enfartados.
Assim, ao fim do dia de uma sexta feira, saiu da faculdade e em vez
de virar para sua casa, correu apressada para o autocarro que a levaria à
Universidade velha, próxima da livraria.
- Olá Watson, como vão as coisas por aqui?
Alice entrou na livraria bem-disposta, com uma alegria que há muito
não sentia. Não sabia porquê, mas se lhe perguntassem diria que era por ter encontrado
alguém como ela, disposto a entrar num desafio.
Ao ouvir a voz dela, Pedro que estava ao computador, estremeceu. Se
lhe perguntassem porquê não saberia responder.
- Olá Sherlocka! – Brincou. – Fico muito contente de te ver, mas
receio o caso esteja parado.
- A sério? E eu a pensar que tinhas perdido o meu número e por isso
não me tinhas ligado.
Fez uma cara de beicinho que a ele só lhe apeteceu beijar. A custo
conteve-se e respondeu-lhe:
- Não. Nunca. Jamais. Em tempo algum. - Sou um parceiro muito
competente!!
Levantou-se e cumprimentou-a sentindo mais uma vez o seu cheiro e a
sua pele.
- Será? – Ela picou-o. – Vou espreitar, nunca se sabe…
Ele fingindo-se ofendido, afastou-se e com uma vénia, indicou-lhe o
caminho.
Entretanto chegou um cliente e ele desviou a sua atenção para o
mesmo. Estava a efetuar o pagamento, quando ouviu um gritinho:
- Eu sabia! Eu sabia!! Ele respondeu!!!
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