Carmo 15

 

Sónia não respondeu e em vez disso encolheu os ombros. O melhor era não dizer mesmo nada ou ainda corria o risco de ser despedida. O patrão já era grandinho, e apesar de gostar e de se preocupar com ele, não iria arriscar o seu emprego. Dependia dele para cuidar de si e do filho.

Já Sandra não pensava do mesmo modo. A amiga tinha de “desemburrar”. Desde que acabara com Mauro que parecia um caracol, sempre enfiada na casca. Como era possível que um fulaninho daqueles conseguisse por uma mulher daquelas daquele jeito?!

Não, mas ela, Sandra, não ia deixar as coisas assim.

Carmo sempre a ajudara, em todas, as muitas, vezes que se metera em problemas e agora era a vez dela, por isso, e mesmo antevendo a fúria da amiga, resolveu responder por ela:

 “Olá, António.

Ainda bem que me compreendes, e acho essa uma ótima ideia.  Às vezes a vida surpreende-nos. Diz-me coisas sobre ti. O que gostas de fazer, o que fazes na vida, o que sentes sobre a amizade.

Beijos, Maria”.

Ia a carregar na tecla enviar, quando um “anjinho da guarda” lhe soprou ao ouvido e resolver esperar pela amiga. Iria enfrentá-la e obrigá-la a tomar a atitude.

Dona Maria, entretanto, estava deliciada. A verdade é que gostava muito da “sua Carminho” e já lhe sentia a falta.

Carmo, ela e o Rato tomavam o pequeno-almoço na cozinha soalheira da senhora.

Falavam de banalidades, deliciadas com o momento e com as iguarias que a dona Maria fazia questão de ter sempre “à mão”.

O Rato, aproveitando o sol e o colo de Carmo, oscilava entre o cochicho e uma dentada nos pedaços de bolo que a amiga lhe dava às escondidas da dona.  Sim, oscilava entre as duas situações. Quem tem gatos sabe como eles têm uma capacidade enorme de adormecerem e de acordarem de repente…e nos locais mais inóspitos…

Foi entre duas dentadas, com o ar mais natural do mundo, que dona Maria começou o ataque:

- Carminho. Ando muito preocupada com a menina. – estendeu-lhe o prato com mais um pedaço de bolo.

Carmo rejeitou-o.

- Não, dona Maria. Não posso mais. Estou a rebentar. Está preocupada com o quê?

- Ora, é só mais este bocadinho. Para acabar com o bolo. - insistiu com o prato. – Estou preocupada com a menina. Desde aquele seu último namorado que a menina não parece a mesma. Olhe que não há homem nenhum que mereça o nosso sofrimento. Acredite em mim que já vivi muito.

Carmo abriu os olhos de espanto e aceitou mecanicamente o prato com o bolo, embora não lhe tocasse.

- Como assim?

- Como assim, como? – dona Maria punha um ar angelical.

Carmo fechou os olhos. Parecia uma conversa de doidos.

- Está preocupada comigo porquê? Eu não estou doente…

- Ai, está, está. Está doente da alma. Olhe para si menina! – ralhou-lhe amigavelmente.

- Dona Maria. Não estou a perceber. Porque é que diz isso?

- Olhe para si. Está com um ar…- fez uma pausa para escolher as palavras. – Pouco cuidado, quase não sai de casa e está aqui a estas horas! Em vez de estar no seu atelier de onde, antes, era preciso um guindaste para a tirar de lá.

- Ó dona Maria. Que coisa. Estou só a aproveitar melhor a vida. Não era isso que me dizia sempre? Então…

Fez um gesto com os braços para elucidar o que dizia e o Rato incomodado por ter sido incomodado saltou do colo dela para o chão. Antevia uma discussão e queria estar longe disso quando acontecesse.

- Sim, mas não era assim.

- Assim como? – Começava a arrepender-se de ter ido tomar o café com ela.

- Assim, cabisbaixa, sozinha…

- Ah! Sozinha. É esse o ponto, não é?! Mas sabe? Estou muito bem assim. Melhor do que estava antes.

Levantou-se.

- Gostei muito do café, mas tenho de ir trabalhar.

- Mas… Nem acabou o café.

Carmo aproximou-se da sra. e deu-lhe um beijo na cabeça.

- Dona Maria, não se preocupe.  Eu não estou a sofrer.

Saiu da casa da vizinha e foi para o carro. Sentou-se ao volante e sem saber porquê, as lágrimas começaram a correr rosto abaixo. Parecia que uma comporta se tinha aberto, e sem se conseguir controlar chorou e chorou até esgotar todas as lágrimas que tinha. Até se esgotar.

Depois deixou-se estar. Simplesmente a existir.  Mente vazia, corpo vazio.

E estaria assim por mais tempo não fosse um carro a apitar-lhe querendo saber se ia vagar o lugar para que pudesse estacionar.

Foi como se tivesse renascido.

Quem for mais cético ou mais prático não perceberá o que se passou, mas às vezes a vida tem destas coisas, e o choro desenfreado libertou muitas coisas que lhe prendiam a alma e depois de uns momentos em sossego para se aperceber de que estava liberta, a alma renasceu com toda a força.

Animada de uma força e vontade interiores, Carmo partiu para o atelier, onde Sandra a esperava com a mensagem em aberto.

- Bom dia. – Cumprimentou Carmo entrando na sala e indo poisar a mala e o casaco no cabide, já esquecida da zanga.

- Bom dia, alegria. – Sandra sorriu-lhe matreiramente.

- Mau, o que se passa? – Carmo conhecia bem a amiga, e sabia que aquele sorriso trazia sarilhos.

Sandra aproximou-se languidamente, e levou-a até à secretária.

- Temos de falar. – disse sentando-a de costas para o tablet.

- Não. Outra conversa não. – Suspirou. - O que se passou? Foi a chata da Zerix? Caramba, não sei mais o que lhe dizer. A mulher nunca está satisfeita com nada. Olha que estive ontem a tarde, tooooda, com ela.

- Não. Não é essa chata, embora já tenha ligado hoje para pedir só um ajustezinho

Sandra imitou a cliente e Carmo riu-se. Como era bom estarem as duas bem outra vez.

- Então?

- Então, temos de falar acerca de ti.

- Mau. - repetiu-se. – Já tive hoje a minha dose com a dona Maria.

E contou-lhe a conversa que tiveram. No fim, Sandra sentou-se na beira da secretária, de frente para ela e disse:

- Sabes que mais? A senhora tem razão. Era mesmo sobre isso que queria falar contigo. Tu tens tido até agora só relações descartáveis. Usa-los e deitas fora. Tudo bem. Se tu fosses uma pessoa assim. Mas o problema é que não és. E isso nota-se.

Carmo torceu o nariz. Tinha decidido mudar e estava na hora de o mostrar.

- O que aconteceu no passado, fica no passado. A partir de hoje sou uma mulher nova. – disse com um ar importante.

- Ai sim? E em que te tornaste nova?

- Numa mulher independente a todos os níveis. E sem medos. Corajosa.

Dizia aquilo mais para si do que para a amiga, mas Sandra não perdeu a oportunidade.

- Ai sim? Então vamos lá. Prova-o. – Esticou-se na mesa e pegou no tablet. Entregou-lho de imediato e desafiou-a:

- Responde. Anda. Já te fiz a papinha quase toda, mas podes acrescentar o teu toque pessoal.

- O que é isto? – Carmo não percebeu de imediato.

- Lê. – ordenou-lhe a amiga.

Carmo leu, e de imediato a ira assomou ao seu peito. Como é que ela se atrevera? Não aprendera nada? Ia começar a ralhar quando mudou de ideias.

- Pois bem. – respondeu perante uma Sandra espantada. – Vou responder mesmo.

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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