Carmo 17

 Sónia, olhou-a com um ar aflito. O que estaria a velha senhora a pensar desta vez?! Com toda a certeza que sobraria para ela…- pensou exasperada.

- Nem quero saber qual. – respondeu limpando a mesa que já brilhava de tanto ser limpa naquele dia.

- Como assim não queres saber? Vais desistir?

- Vou. Antes que me arrependa. – mais uma volta com o pano na mesa.

- Cobarde! - injuriou-a a Dona Maria. – É esse o exemplo que deixas ao teu filho?

Sónia fez uma cara de zangada.

- Não faças cara feia que eu não tenho medo. Queres que o teu filho cresça com uma mãe cobarde? Que vê um amigo a ir para o poço e não o salva?

- He! Tanto dramatismo. Ele só vai encontrar-se com uma mulher. Não vai casar com ela.

- Sabes lá tu. Não foste tu que me contaste de uma amiga que largou o marido por causa de um encontro desses? E tinha filhos ainda por cima. – elevava o dedo no ar para dar enfase ao que dizia. - E deu-se mal, que foi o pior. – atacava. Implacavelmente.

- Sim, mas, não foi bem assim. Não foi só um encontro. – Sónia vacilava.

Espetando ainda mais o dedo no ar, a velha senhora argumentava:

- Mas tudo começou com um encontro, não é verdade? Não vês a semelhança? E além do mais eu já tenho uma mulher para ele. – rematou com uma voz malandra.

Aqui Sónia deixou cair o pano no chão com o espanto.

- Uma mulher para ele? Como assim? Uma coisa é impedir que ele caia nas garras de uma galdéria, qualquer, outra coisa é arranjar-lhe mulher. Isso eu não faço. Pobre homem. Se ele sonhasse…

Como se estivessem no teatro e esta fosse a deixa dele, ele chamou-a.

- Sónia! Podes vir aqui? A dona Estrela está à meia hora à tua espera.

- Que exagero! – refilou Sónia. – meia hora… Pf!

Entretanto o cérebro da Dona Maria fervilhava. Quem a olhasse com atenção seria capaz de jurar que ouvia os neurônios a saltar uns por cima dos outros.

Levantou-se e dirigiu-se ao balcão onde o telemóvel do António estava esquecido, mesmo à mão de semear.

- Estes homens não aprendem. – comentou para si.

Olhou para o lado para ver onde ele estava e o que os poucos clientes que aquela hora ali se encontravam, estavam a fazer. Pareciam estar todos entretidos, nenhum a olhar para ela ou para o balcão, ainda assim teria de ser rápida.

E tão rápida quanto a sua idade e agilidade lhe permitiam, colocou o casaco no balcão, em cima do telemóvel, foi buscar um copo com água rezando para que o aparelho não apitasse e voltou, depois de beber um golo do líquido, e, pegando no casaco e no telemóvel escondido sob este, saiu. Antes, porém, fez sinal a Sónia de que a esperava lá fora. E que fosse rápida.

Sónia estava atónita. A mulher tinha uma lata. Respirou fundo e inventando uma desculpa para a cliente que estava a atender, saiu quase de imediato.

Pelo caminho pensava. Iria dizer-lhe das boas. Ai se ia. E como não demoraria mais que cinco minutos, não disse nada ao António.

Lá fora, procurou-a por uns instantes e foi dar com ela sentada na paragem do autocarro uns metros mais a frente. Estava de costas, debruçada sobre algo.

- Dona Maria! – ralhou-lhe. – Pensa que eu não tenho que fazer? Não posso sair assim do trabalho. Ainda sou despedida!

A dona Maria assustou-se.

- Credo!  Não precisas de aparecer assim. E és lá agora despedida! O António é incapaz de fazer mal seja a quem for, e depois disto. – abanou o telemóvel dele em frente do nariz dela.

- Dona Maria! – Sónia gritou de espanto. – O que é que foi fazer? Isso é roubo!

- Mas que mania a menina tem de rotular tudo. Isto não é roubo, porque a menina vai levá-lo de volta assim que…

- Assim que? – Sónia tentava perceber onde é que ela queria chegar.

- Assim que ler, com calma, a mensagem que ele enviou. Temos de impedir o encontro a todo o custo.

- Ó Dona Maria. Acha isso bem?

- “Em tempo de guerra não se lavam armas”. Já o meu marido dizia. Ou, os “Fins justificam os meios”, conforme queiras. Deixa-te lá de lérias. Já tínhamos decidido ajudá-lo não foi? Então…

- Então? – Sónia tinha-se esquecido do sermão que lhe ia ministrar.

- Ouve. Lembras-te da Carmo?

Sónia acenou afirmativamente com a cabeça.

- O que tem? Não me diga que…

- Ai digo, digo. Ela é uma excelente rapariga é está sozinha. À espera do príncipe encantado.

- É esse príncipe é? – perguntou divertida já sabendo a resposta. As conversas entre ela e a dona Maria oscilavam entre a afronta e o riso.

- É o António. – A Dona Maria completou a frase por ela.

- Oiça, isso não funciona assim. – Sónia a abanava a cabeça para dar ênfase ao que dizia.

- Porquê? – perguntou muito séria a velha senhora.

- Porque não. – argumentou Sónia fracamente.

- Porque não, não é resposta. - Olhava-a desafiando-a.

- Oiça, isso talvez funcionasse no seu tempo, mas nos dias de hoje…

- Os dias de hoje são iguais aos de ontem e serão iguais aos de amanhã. Os homens serão sempre homens e as mulheres, sempre mulheres e os corações funcionamento de igual modo através dos séculos. Confia em mim. Agora só temos de arranjar uma maneira de os pôr em contacto.

- Como? Se a Carmo já não aparece há meses no café. Até parece que da última vez discutiram. – Sónia já estava rendida ao plano. Sempre adorara estórias de amor…

- Isso deixa comigo. Tenta, mas é ver as mensagens antes que ele dê pela falta desta coisa é vê se respondes por ele e cortas com o mal pela raiz.

- Está doida? - A ousadia de dela fê-lo lá esquecer as boas maneiras, mas um olhar acervo logo a lembrou.

- Desculpe. – apressou-se se a dizer.

- Então o que quer que faça ao certo? Responder por ele, isso eu não faço. Digo-lhe já. Mas posso tentar ver as mensagens dele, ver como as coisas evoluem. Isso basta?  – perguntou. -Agora tenho mesmo de ir. Disse que demorava 5 minutos e já lá vão mais de10.

- Por agora basta. – A dona Maria também percebeu que tinha ido longe demais, mas longe de si dar o braço a torcer. - Olha, ela não tem uma amiga lá no escritório? – resolveu mudar a direção da conversa. - Como é que ela se chama? Andam sempre juntas. Eu não gosto muito dela, mas agora pode dar jeito.

- A Sandra?

- Sim essa. Ela continua a ir ao café, não continua? Eu até falava com ela, mas da última vez que nos encontramos a coisa não correu bem…

Sónia ficou calada. À espera de mais desenvolvimentos.

- Tu é que podias falar com ela. – Levantou-se também.

- Eu? E dizer-lhe o quê?

- Sei lá. Qualquer coisa. Tentar trazê-la para o nosso lado. – respondeu com um ar triunfante.

- E digo lhe exatamente o quê?! Que estamos a arranjar um arranjinho entre a Carmo e o António?

- Sim. Não. Mais ou menos. Mas por outras palavras. – pensava ao mesmo tempo que reparara no emprego das palavras arranjo e arranjinho. Ia a corrigi-la, mas calou-se. Agora o importante era tratar daqueles dois.

- Sabe que mais? Tenho mesmo de ir. E dê cá isso, antes que faça algum disparate. – disse tirando-lhe o aparelho das mãos.

E saiu deixando a Dona Maria, de pé, na paragem do autocarro a magicar. Maria estava tão emaranhada nos seus pensamentos que foi, sem se aperceber, mal-educada para o homem do autocarro que, entretanto, parara à espera que subisse.

Sandra, por sua vez, estava de olho na Carmo. O que teria respondido? Teria mesmo marcado o encontro? Tentava ver se lhe apanhava o tablet, mas a amiga desta vez tinha-o bem guardado. Frustrada resolveu ir apanhar ar.

- Vou tomar um café. – disse para Carmo que estava embrenhada numa capa. - Queres alguma coisa?

- Uma tosta mista se faz favor. – respondeu sem tirará os olhos do écran.

- Certo. Sem manteiga, não é? – perguntou já da porta.

- Sim, eles sabem como eu gosto. – respondeu mecanicamente.

Eles sabem, eles sabem – refilou Sandra mentalmente. – Obriga-me a ir ao António, já se vê. E eu que queria ir espreitar o gato do Katequero.  – suspirou. – Oque eu não faço por ti. – disse para o vazio.

Katequero, era um novo café que abrira há poucas semanas e cujo dono tinha a fama de, não só ser simpático, como extremamente bonito. Sandra andava louca para o conhecer.

Saiu do escritório e olhou para o lado direito.

Umas portas mais abaixo, estava o Katequero. Tinha à porta uma tabuleta de ferro forjado com uma cerveja desenhada e lá dentro um borracho à sua espera.

Deu dois ou três passos nessa direção, mas depois arrependeu-se e voltou para trás.

Iria ao António.

- Ainda por cima é mais longe! – reclamava enquanto caminhava.

- Boa tarde. – cumprimentou quando entrou no café.

- Boa tarde. – retribuíram Sónia e António.

Avançando na direção do balcão, Sandra pediu um café e uma tosta mista, tendo o cuidado de dizer que a tosta era para a Carmo.

- Ela diz que só vocês a sabem fazer ao gosto dela. – gracejou.

António de imediato começou a atendê-la e Sandra sentou-se numa mesa junto à janela.

Gostava de observar o parque e o movimento dos cães e dos donos, e o dos miúdos com os avós a brincarem nos baloiços.

- Então. A Carmo está boa? – era Sónia que perguntava ao mesmo tempo que lhe entregava o café. – Há já uns bons tempos que não a vemos. Zangou-se connosco?

- Zangou-se com o mundo! - respondeu Sandra bem-disposta.

- Então? – Sónia tentava criar uma ponte para a missão de que tinha sido incumbida.

- Oh! Coisas da vida. – Sandra não queria adiantar muito.

- Pois.  Conheço mais alguém assim. – Sónia não desarmava.

Sandra bebeu um gole de café.

- E por aqui vai tudo bem?  - Não queria entrar em detalhes, já arrependida da resposta que tinha dado.

Mas Sónia não estava pronta para desistir.

- Está tudo mais ou menos. O meu “boss” também não tem estado bem.

– Então? – perguntou Sandra sem na verdade querer saber, e, sem saber, que tinha aberto a porta para a sessão de confidências

- Então - Sónia poisou o tabuleiro e olhou para o lado. – Eu acho. – e aqui frisou bem o “acho” como quem diz que não tinha a certeza, e pedia a opinião de Sandra - Eu acho que, desde que a Carmo deixou de cá vir, que ele aos poucos e poucos foi ficando mais cabisbaixo.

Ao ouvir o nome da Carmo, os sentidos de Sandra acordaram.

- Acha? Mas ela deixou de cá vir porquê?

- Pois não sei. Acho que foi qualquer coisa a ver com uma ajuda qualquer. Não sei bem ao certo. Só sei que nesse dia a Carmo saiu daqui zangada e não voltou mais.

- Não acredito. – Sandra estava verdadeiramente intrigada. – A Carmo não é de se zangar com ninguém. O que terá acontecido?

Como resposta Sónia encolheu os ombros. Ao mesmo tempo um casal que se tinha sentado à pouco, olhava para ela de forma insistente, chamando-lhe a atenção para si, que estavam à espera de serem servidos.

- Venho já. – despediu-se Sónia fazendo sinal para a mesa do casal.

- Vá, vá. Depois falamos. Também tenho de ir.

Sandra levantou-se de e foi ao balcão pagar e buscar a tosta da amiga. Foi António quem mais uma vez a atendeu.

- Então António, como tem passado? – perguntou por cortesia e para tentar saber de alguma coisa.

- Bem. E a Sandra? Como vai?

- Também. Venho buscar a tosta da Carmo. Ela diz que só você é que sabe como é que ela gosta.

Ao ouvir o nome da amiga, o rosto de António sombreou-se por uns milésimos de segundos, o que, a um olhar mais desatento, passaria despercebido, pois logo de imediato sorriu e virou costas para buscar a tosta. Esse não era, porém, o caso dos olhares da Sónia e de Sandra que de olhos postos nele, tentavam adivinhar o que lhe ia na alma através da mínima alteração facial, ou postural que ele apresentasse.

- Ela pediu desculpas pela ausência, mas tem estado sobrecarregada com um novo projeto e não tem tido tempo para mais do que as viagens casa- trabalho e trabalho- casa.  - Era mentira, mas Sandra ficou intrigada com o que Sónia contara e esta foi a melhor maneira que lhe ocorreu para indagar o assunto.

António, no entanto, não respondeu. Limitou-se a dar mais um sorriso dos dele e a cobrir a tosta com uma camada dupla de papel vegetal e a colocá-la dentro de uma caixa.

Sandra recebeu-a, agradeceu e pagou. Não ia insistir mais.

Ia a sair do café quando se cruzou “acidentalmente” com a Sónia.  Piscando-lhe o olho, despediu-se e assegurou-lhe, por gestos, que iria tentar perceber o que se estava a passar.

E tencionava cumprir a promessa.  

Chegada só atelier, foi direta ao gabinete de Carmo onde ela estava sentada de pernas cruzadas “à chinês”, no meio do chão e no meio de folhas tamanho A3 que quase cobriam o mesmo.

- Aqui tens a tua tosta. – disse-lhe.

- Obrigada. És um amor. Põe aí em cima da secretária que eu já como.

Sandra obedeceu, e ao colocar a tosta em cima da secretária olhou para o tablet. Lembrou-se das mensagens e teve uma epifania, e se?...

 

Foto do Pinterest

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Comentários

Mensagens populares