Carmo 8
- Caridade? – A indignação que sentia saía-lhe pelos olhos, mas
ficava-lhe retida na boca. – Eu estou a querer ajudar-te, a querer reparar a
ofensa que te fiz, a tentar ser tua amiga, que amigos deves ter poucos, e é
assim que reages?! – Pensou, mas não disse.
Ao invés respondeu-lhe:
- Desculpa, não te queria ofender.
Não era caridade o que tinha em mente, era ajuda mútua. Um alívio para ti e uma ocupação para mim. - Disse com um tom frio.
E, levantando-se, deixou o dinheiro em cima do balcão e saiu.
- Espera! - Disse-lhe António. – Desculpa-me a mim.
Mas ela já não ouviu.
Por um lado, porque já estava a caminho da rua, por outro porque as
ideias movimentavam- se juntamente com os sentimentos num turbilhão de direções
que lhe embutiam os ouvidos.
Já de regresso a casa, e ao entrar no prédio deu de caras com a
Dona Maria que vinha despejar o lixo à rua. Arranjada como sempre, porque “uma
senhora, nunca, mas nunca sai de casa sem se arranjar. Nunca se sabe o que pode
acontecer e uma senhora bem arranjada, é sempre uma senhora bem arranjada”. –
Dizia-lhe muitas vezes.
- Olá, menina! - Cumprimentou-a a velha senhora bem-disposta.
- Olá. – Respondeu-lhe Carmo
de uma forma seca e continuou em frente.
A dona Maria estacou por uns segundos e abanou a cabeça. Estes jovens… - Pensou. – O que se terá
passado desta vez? Teria sido com o António? Ainda há pouco tempo tinham falado
acerca disso, e ela vinha daquela direção. E não vinha do trabalho, porque já a
tinha sentido em casa umas horas antes. À hora do costume…
- Só pode ter sido. – Pensou para si.
E sem pensar mais, deitou o saco no contentor do lixo e dirigiu-se
ao café.
Era um tiro no escuro, mas a sua intuição nunca lhe falhara e ela
detestava ver aquela miúda sofrer. Fosse pelo que fosse. Era certo que ela não se
distinguia pela democracia, pelo que imaginava o que se tinha passado. Tinha de
intervir. Aquela miúda sem ela…
Aquela hora estavam lá poucos clientes pelo que foi fácil encontrar
António desocupado.
Estacou por um tempo impercetível à porta, e recorrendo à sua
autoridade de filha e mulher de comandante, e ao estatuto de figura emblemática
do bairro, direcionou a sua marcha para ele que assim que a viu a acolheu com
um sorriso sincero.
- Dona Maria. Aqui? A esta
hora?
- Boa noite, jovem. É verdade. Não é costume, mas hoje venho aqui
numa missão.
Acercou-se do balcão e esperou que ele lhe ajeitasse o banco para
que se pudesse sentar. Podia ser um balcão ao invés de uma mesa com cadeiras,
isso não invalidava que o homem não tivesse de ajeitar o assento à mulher. Era
assim que ditavam as regras da boa educação, e ela pautava-se por segui-las e
fazê-las seguir.
António que já a conhecia, saiu do seu lugar, de trás do mesmo, e
ajeitou-lhe o banco.
- Antes de mais, diga-me. – Falou com um ar cavalheiresco. – o que
quer beber? Ou quer comer alguma coisa?
- Não, jovem. – Como a memoria já ia falhando para pormenores como
os nomes, ela tratava por “jovem" aqueles com quem privava menos evitando
assim embaraços. - Venho aqui como lhe disse numa missão. E não conto demorar. Tem por acaso uns
minutos que me possa dispensar?
António olhou
em volta. Das 6 mesas estavam duas ocupadas com dois casais que a olhar pela
envolvência com que se falavam, não deveriam querer consumir nada tão depressa.
Suspirando, deu
a volta ao balcão e encostou-se a ele de modo a ficar mais próximo dela.
- Diga, minha senhora. O que quer falar
comigo? – Perguntou bem-humorado.
Ela endireitou-se mais, se mais fosse possível, e colocando um ar
sério começou:
-António. É esse o seu nome, correto?
Ele acenou afirmativamente e ela sorriu para si. Afinal a memória ainda
funcionava.
- Há uns dias, quando aqui vim, falei-lhe da Rafaela, recorda-se?
Ele não respondeu e ela tomando o silêncio como uma afirmação,
continuou:
- Falei-lhe dela, e de uma forma discreta, dei-lhe a entender, ou
melhor julguei ter dado, porque pelos vistos não consegui, que ela era uma boa
rapariga e que o queria ajudar.
Aqui, ele abriu os olhos de espanto.
- Ajudar-me? Em quê? Não preciso de ajuda. – Lembrou-se do que se
tinha passado mais cedo e começou a ficar aborrecido. Detestava mexericos
acerca da sua pessoa.
A dona Maria não desarmou:
- Ao que percebi precisa sim, e garanto-lhe que não irá encontrar melhor
ajuda do que ela, que é uma rapariga formada e bem formada, se me faço
entender, e dispõe-se a trabalhar aqui Pró-bono.
-Pró-bono?! – António estava deveras espantado com a petulância das
duas.
-Sim, de graça. - Esclareceu-o de uma forma impertinente.
- Eu sei o que é Pró-bono. - Retaliou ele bruscamente. – Mas continuo
a dizer que não preciso de ajuda. Nem dela, nem de ninguém. Não sei onde foram
buscar essa ideia, mas não me agrada.
Nisto, e como que respondendo a uma deixa teatral, um dos homens
que estava sentado à mesa, levantou-se e acercou-se deles:
- Tony! Meu velho! Tens mesmo de arranjar ajuda. Isso ou pôr um
aparelho nos ouvidos. Estamos a chamar-te há não sei quanto tempo e não
respondes!
Dona Maria ao ouvir isto, sorriu-lhe vitoriosa e ele fechou o
rosto.
- Desculpa. Estava aqui numa conversa que estava quase a terminar.
O que queres? Outra cerveja?
- Não, que a patroa mata-me. Venho só dizer-te para pores na conta
que vou andando. Até amanhã.
- Até amanhã! – Despediu-se António dele.
E, saindo de trás do balcão, colocou-se em frente da senhora Maria,
de modo a segurar-lhe o banco quando se levantasse e perguntou-lhe:
- Estamos conversados?
- Não. – Respondeu-lhe ela sem se mexer. – Só ficaremos conversados
quando me ouvir. Tudo o que tenho para lhe dizer. Tem de deixar de ser
casmurro.
António revirou os olhos impaciente. Não era por norma mal-educado,
mas aquela senhora estava a tirá-lo do sítio…
- Dona Maria! – Carmo Chamou-a da porta. – Afinal está aqui.
Procurei-a por todo o lado.
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