Carmo 6

 

Ele era um homem comum, que à primeira vista passava despercebido. Embora fosse alto e bem constituído, o modo como se arranjava, como se colocava, escondia aqueles olhos castanhos, enormes, com um ar bondoso que pareciam querer abraçar o mundo.

Mas desta vez, Carmo olhava para ele de um modo diferente.

- Olá, António, está bom? Deixou crescer a barba? – Perguntou-lhe com uma ligeireza que não sentia.

- Não tenho tido muito tempo para cuidar de mim ultimamente. – Ironizou, virando-lhe as costas para ir desligar a máquina da loiça.

- Fica-lhe bem. – Elogiou-o, e estava a ser sincera.

- Então o que tem feito? Tem andado desaparecida. – Mudou de assunto, enfiando a cabeça dento da máquina e tirando de lá, um tabuleiro cheio de chávenas e copos.

António continuava sozinho, pelos menos à vista, e tinha um ar cansado. Os seus olhos sempre alegres e vivos, estavam agora mortiços e rodeados de olheiras.

- É verdade, tenho tido muito trabalho. – Mentiu.

Lembrou-se de imediato da vizinha e sorriu para si.

“Um a zero” para a dona Maria, contou mentalmente.

- Então, o que quer? O costume? – Perguntou ele começando a tirar um café e buscando um croissant de massa folhada. – É o último. Parecia estar à sua espera.

Ela sorriu. Como era engraçado o facto de ele conhecer os gostos dos seus clientes. Um a um. Nunca se enganava. Mesmo quando estavam longos períodos de tempo sem aparecer como era o caso dela.

- Ainda está sozinho? - Perguntou dando uma dentada no bolo.

- Ainda, como vê. – Alargou os braços naquele gesto universal de demonstração da totalidade.

- E consegue dar conta do recado?

- Claro que consigo. Sou bem capaz. – Respondeu de um modo ambíguo, deixando-a para ir atender um outro cliente.

- Tony! Meu! Então, estás a safar-te? – Perguntou-lhe o homem que se sentara ao balcão.

- Que remédio! – Respondeu ele servindo-lhe uma imperial sem que ela pedisse.

- Tens de arranjar ajuda. – Continuou o homem. – Isto é muito para um gajo sozinho.

- Cá me arranjo. - Retorquiu o António. – Chego mais tarde a casa, mas também não tenho ninguém à minha espera. – Brincou.

- Olha… - O homem riu-se. – Mais vale só que mal-acompanhado. – Gracejou.

Carmo ia ouvindo a conversa e lentamente uma ideia começou a formar-se na sua cabeça.

E se?...

Sorriu perante a ideia.

- Ora, assim é que eu gosto. – António “meteu-se” com ela enquanto recolhia a loiça suja, e com um pano limpava o lugar.

- Assim como? – Perguntou ela tirando uma nota da carteira para pagar.

- Não, não. - Ele recusou. – Hoje é por minha conta. Para celebrar o seu regresso.

- Ora, nem pensar. – Ela insistia em pagar colocando a nota no balcão.

- Não, já disse. - Ele devolveu-lha. – Assim fica obrigada a vir outra vez. – Sorriu e Carmo voltou a ver aquele brilho nos olhos dele.

- Então está bem. Está prometido!

Saiu do café com a disposição de um passarinho. Alegre e feliz, quase saltitante.

- Pronto! Assunto arrumado. – Disse para si satisfeita.

Os dias foram passando e na cabeça de Carmo a ideia ia ganhando forma. Foi algumas vezes ao café, observar o movimento, para ter uma noção do que era a vida ali.

Levou algum tempo a analisar as vantagens e as desvantagens, o modo como o iria abordar, como lhe haveria de dizer que não quereria compensação económica pela ajuda…

Ponderava se lhe haveria de dizer que no fundo, no fundo, estava a fazer aquilo, mais por ela que por ele. Que estava a atravessar uma fase da sua vida em que nada a estimulava, em que, dia após dia, os desafios eram os mesmos, as pessoas que encontrava eram as mesmas, em que os amigos, por muito que gostassem dela tinham seguido com as suas vidas e pouco tempo tinham para estarem todos juntos, enfim…

Esteve quase tentada por uma ou outra vez a dizer-lhe algo, dar-lhe uma pista acerca do que se passava dentro do seu castelo, mas não foi capaz. Chegou mesmo a abrir a boca, mas o músculo da vergonha fechou-a com toda a força.

Quem sabia o que se passava, estranhamente, era a dona Maria, que por artes mágicas ao sabor de um chá lá lhe arrancou o que lhe encobria o semblante.

Carmo falou, e falou, e falou, mais do que se lembrava de ter falado com alguém e no fim, quando ficou sozinha, depois da dona Maria ter ido embora com o Rato ao colo, ficou com a nítida sensação de que a mulher era uma feiticeira disfarçada.

Se não vejamos:

Tem um gato preto, faz chás de umas ervas que só ela conhece, e consegue tudo o que quer. Só lhe falta o chapéu porque a vassoura… Ela já viu uma lá em casa!

Riu-se deste seu pensamento e decidiu que para a próxima vez que fosse ao café iria falar com ele e propor-lhe aquilo que tinha em mente. Só esperava que ele não se aborrecesse ou que a considerasse maluca!










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