Carmo 5
Carmo saiu do café a pensar no que tinha acabado de acontecer e
sentia-se mal consigo própria.
António não era nenhum Adónis, era certo, mas também não era nada
feio. Era um homem comum. Como tantos outros que conhecia.
Era um homem alto, com uma barriguita que já se notava, mas não era
feio. Tinha uns olhos grandes, castanhos e risonhos. Tinha o cabelo cortado
muito rente que deixava adivinhar uns caracóis revoltos, mas que só se davam
conta de existirem se se olhasse bem para ele.
E ela tinha olhado. E chegara à conclusão que fora má. Bem, má não
seria bem o termo. Ela não se rira com maldade. Ela rira-se porque achara
estapafúrdia a ideia de alguém ter ciúmes dele.
Quem é que na sua perfeita visão iria ter ciúmes do António? O
António era o António. O dono do café, que servia a todos do bairro uns bons
pequenos-almoços e uns bons snacks, e que no tempo do calor oferecia mais
cervejas e sumos do que os que cobrava.
Ele era assim. Era do bairro, era deles. Nunca ele iria interferir
num relacionamento de alguém nunca!
- Até porque… - Contava à Rita que pesquisava algo num dos arquivos
da gráfica.
- Até porque? – Rita tirou a cabeça de dentro do armário onde
procurava algo que Carmo ainda não percebera o quê e encarou-a.
Incomodada com a pergunta, Carmo levantou-se da sua mesa e
aproximou-se dela.
- Sei lá. Até porque ele não é assim tão giro como isso.
- E? - Mais uma vez Rita espicaçava-a.
- E, o quê?
- E o que é que isso tem? Até parece que só os giros têm direito a
namorar. – Levantava os braços exasperada pela conversa e por não encontrar o
que procurava.
- Claro que não. – Carmo tirou uma pilha de livros do armário. –
Mas afinal que é que procuras?
- Aquele livro que aquela rapariga escreveu.
- Sério? Aquele livro que aquela rapariga escreveu?! Não consegues
ser mais especifica?
- Não. Não me lembro do nome dela nem do título, mas sei que se o
vir reconheço-o…
Enfiou novamente a cabeça no armário.
- E acho que foste má. Mesmo sem querer. Põe-te no lugar dele.
Gostarias que alguém se risse de ti?
- Mas eu não me ri dele. – Carmo tirou um livro da pilha que tinha
posto em cima da mesa. – É este?
- É mesmo esse! Como é que adivinhaste?
- Porque me lembro do quanto falaste dele aquando do seu
lançamento. Fartaste-te de elogiá-lo e em como o irias ler e divulgar na
revista etc. Coisa, que aliás, nunca fizeste! – acenou-lhe com o livro à frente
do nariz.
- Pois não. – Agarrou-o. – E é isso que quero fazer. Resolvi criar
uma nova coluna, uma coluna de divulgação de novos autores, autores que não
tenham uma “máquina” por trás.
- Muito bem, sim senhora! Finalmente essa cabeça estouvada tem uma
boa ideia! – Carmo riu-se e desviou-se de uma borracha que Rita lhe
arremessava.
- Pois, e sabes que outra boa ideia, esta minha cabeça estouvada
teve? – Perguntou já junto à porta.
- Já vais?
- Já que eu não sou patroa como tu. Queres saber?
- Diz lá.
- Acho que deves ir ter com o António e remediar a coisa.
- Remediar? Como?
- Isso, minha amiga, é coisa para a tua cabeça iluminada descobrir.
E, dito isto saiu deixando a amiga a pensar.
O dia passou-se e Carmo, embora dedicando-se ao trabalho, tinha, em
segundo plano, sempre presente a ideia de que realmente deveria remediar a
coisa, mas não conseguia lembra-se de nenhuma maneira.
Pensou em lá voltar e continuar como se nada tivesse acontecido,
mas sentia que isso não era remediar, isso era ser um pouco covarde e
correspondia a não tomar nenhuma atitude.
O dia de trabalho chegou finalmente ao fim, e Carmo fechou a porta
decidida a ir lá e esperar que alguma inspiração lhe descesse ao espírito
quando se confrontasse com ele.
Mais animada, munida de uma missão foi direta a casa para mudar de
roupa de modo a sentir-se mais confortável.
Despiu o fato que tinha vestido, pois tinha ido visitar uns
clientes, e vestiu uma camisola de linho e umas calças de ganga. Nos pés calçou
uns ténis. Não sabia explicar porquê, mas sentia-se com maior capacidade de
raciocínio e improviso quando se arranjava de uma forma pratica.
Ia a sair do prédio, quando encarou com a dona Maria que vinha a
chegar.
- Olá, Sra. Maria, está boa? Há já uns tempos que não a via.
- Estou boa sim, e a menina? Como vai? Já resolveu aquele assunto?
- Assunto? Qual assunto?
Carmo divertia-se com o modo como a velha senhora colocava as
questões. Sabia perfeitamente ao que ela se referia, mas quis “picá-la” um
pouco.
- Ora menina, aquele assunto… - Repetiu-se revirando os
olhos. Não me diga que ainda está tudo em “águas de bacalhau”. – Pousou o saco
que trazia nas mãos, no rebordo do murete que ladeava as escadas exteriores do
prédio.
- Quer ajuda com o saco? – Prontificou-se Carmo ao dar conta do
gesto.
- Não. E a, menina quer ajuda com o assunto?
Carmo desatou a rir-se. A dona Maria não desarmava.
- Não, com esse assunto, não, mas com outro…- De repente
lembrou-se que a “velha comandanta”, como carinhosamente se referia a ela
quando estava com a Rita, era mestre na área de protocolos e gafes, pelo que
poderia muito bem indicar-lhe uma saída “airosa”, como ela vastas vezes lhe
dizia, para a alhada em que se metera. É que depois do sucedido nunca mais
tivera coragem de lá voltar, e aquele aconchego do café da manhã começava a
pesar.
- Egoísta! – Recriminou-se de imediato. Continuas a pensar em ti.
- Não. Tens razão. Estava a tentar suavizar a coisa de um modo
parvo. Eu gosto muito do António, e sabes bem disso. – Respondeu-se.
- Que assunto? Não me diga que já arranjou outro. –
Interrompeu-lhes os pensamentos a dona Maria.
- Outro? – Agora não estava mesmo a perceber.
- Outro assunto… - A velha senhora fez uma cara que a
esclareceu de imediato.
- Ah! Não… Este assunto é diferente.
E contou-lhe o que se passara.
A dona Maria ouviu-a com atenção e no final foi ela quem deu uma
gargalhada.
Carmo olhou-a espantada e meio ofendida.
- Vocês, - Disse, mais uma vez referindo-se aos jovens de hoje. –
Vocês complicam tudo. O melhor que tem a fazer, é ajudá-lo. Mostrar-lhe que se
importa com ele independentemente de ser feio ou bonito. – Aqui fez um
parêntesis. – E olhe que eu acho-o um homem muito garboso. Alto e bem composto,
independente financeiramente. Havia eu de ter a sua idade e já lhe contava como
era…
Carmo sorriu. Era verdade, mas isso não implicava que ele pensasse
que ela o considerava demasiado feio para meter ciúmes a alguém.
- Oiça, aproxime-se dele, ajude-o. Não diz que ele está aflito?
Ofereça-lhe a suas mãos e depois com o passar do tempo, numa conversa banal,
elogie-o fisicamente, invente um bocadinho, diga que o acha charmoso, que o
outro tinha bem razão em fazer aquela cena. Uma mentirinha piedosa nunca fez
mal a ninguém.
- Dona Maria! – Carmo estava chocada.
- O que foi? – Olhou-a com um ar atrevido. - Não me diga que nunca
mentiu. Olhe eu já. E algumas vezes!!!
E, pegando no saco entrou no prédio, deixando mais uma vez Carmo
estupefacta com a sua atitude.
Carmo fechou a porta, que ela tinha deixado aberta e saiu. Resolveu
ir para o café pelo caminho mais comprido. Assim teria mais tempo para pensar,
para se preparar e para ganhar coragem.
Reviu mentalmente a decisão que tomara, as conversas que tivera e
não conseguiu deixar de rir com aquela tirada da velha senhora.
- Sabes? – Falou para si. – Ela tem razão. Uma mentira piedosa nunca matou ninguém.
- Não matou, é certo. Mas sabes que a mentira nunca é boa. E põe-te
no lugar dele. Gostarias que te fizessem isso?!- Retorquia-lhe a consciência.
- Mas que raio, porque é que te tenho?!- Respondia-se ela num
diálogo interno que ia ganhando cada vez mais interrogações e considerações e que
a distraiu do caminho.
Quando tomou consciência de onde estava, deu-se conta de que já
tinha entrado no café e que António olhava para ela à espera de resposta a uma
pergunta que ela não ouviu.
- Desculpe António. Estava mesmo distraída.
- Pois isso eu já vi.
Riu-se bem-disposto e Carmo olhou para ele como se fosse a primeira
vez.
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