Amália Fim

 

- Estás a brincar comigo! – Rui não queria acreditar no que ouvia.

- Não, não estou. – Alice abanava a cabeça para confirmar aquilo que dizia. – É mesmo verdade. A tua avó disse mesmo aquilo. É o que eu te digo.  Olha para os meus braços.

Ato contínuo, arregaçou a manga do casaco para lhe mostrar o quanto estava arrepiada com toda a situação.

- Pobre avó! – Deixou escapar. – Nunca pensei que ela tivesse passado por uma situação dessas.

- Vês? Vês como foste injusto? Vês como as pessoas são rápidas a julgar?

Rui sentiu uma “agulhada” no peito, mas não se deu por vencido.

- Sim, é verdade, mas tudo isso não invalida que ela tenha traído o meu avô. E ele não merecia.

- Será que não? – Alice falava com uma raiva surda, transportando-se mais uma vez para o seu problema.

- Claro que não. NADA justifica uma traição.

- Mas tu não percebes mesmo nada, pois não? É muito fácil andar de um lado para outro, entretido a fazer o que se gosta, ir a jantares “ de negócios”, a jogos com os amigos, e chegar a casa e ter tudo feito, esticar-se na cama, dormir e ressonar como um porco e acordar no dia seguinte, fresquinho para mais um novo dia. E eu? E nós? – Emendou de imediato.

Alice levantou-se e foi até à janela da sala do Rui. Com o confinamento, tinham combinado encontrar-se em casa dele, uma vez que na dela estava o marido e não poderiam falar tão à vontade. E também porque ele, sem saber bem porquê, não tinha vontade de o conhecer. De fronte para o mar, Rui morava numa urbanização junto à praia, deixou-se hipnotizar pelas ondas que iam e vinham, furiosas com o vento, solidárias com ela.

Ele aproximou-se devagar, e ficando por detrás dela, tornou a insistir.

- Tu não estás a falar só da minha avó. Já nos conhecemos um pouco, não queres desabafar comigo? – Falou-lhe suavemente, meigamente, abraçando-a com as palavras, beijando-a com a voz.

Arrepiada, ela estremeceu, e abanou a cabeça numa negação muda.

- Tens a certeza? – Insistiu ele cada vez mais perto, cada vez mais suave, beijando-lhe a alma, estreitando o abraço, desejado por ambos, proibido por ambos.

- Tenho. – Mentiu ela a meia voz. As suas forças começavam a fraquejar.

Nessa manhã, antes de sair de casa, o marido perguntara-lhe onde ia, e como se não acreditasse no que ela lhe contou, começou uma discussão, sobre o comportamento dela, sobre a frieza que ela ultimamente demonstrava, justificando com isso as próprias ausências e acusando-a de uma vida dupla, o que levou a um escalar de tensão que acabou com um apertão no braço que só com dificuldade ela conseguiu soltar.

Ainda sentia o pulso a latejar, os dedos dele a apertarem o braço dela com força, o hálito dele a cheirar a vinho misturado com cerveja a invadir-lhe a respiração, e o medo ao ver a mão dele próxima, tão próxima do seu rosto, que embora não tenha completado o ato, ela conseguia senti-lo na face que escaldava.

Tinha vindo todo o caminho a chorar. A chorar por si, a chorar por Amália, a chorar por todas as mulheres presas a casamentos infelizes, e que não encontravam saída para a felicidade. Pensava muitas vezes no divorcio, mas divorciar-se era admitir que falhara, que falhara como mulher, que não o soubera cativar para ficar em casa, era admitir publicamente uma derrota, era o pensar que ficaria sozinha para sempre pois não se imaginaria a confiar nunca em mais ninguém.

Embora fosse psicóloga, e uma mulher bem formada e estruturada, a educação que tivera falava mais alto. As palavras que tantas vezes ouvira da boca da mãe quer em forma de conselho, quer em forma de crítica, em situações de fragilidade falavam mais alto do que todas as palavras que lera e estudara e com as quais concordara e as quais repetia inúmeras vezes aos seus pacientes.

- Porquê? – Repetia vezes sem conta. – Porque é que aturas isto? És jovem. És independente. Sai disto. Muda de vida. Não precisas de ninguém para ser feliz. – Dizia-se bastas vezes.

Mas as palavras da mãe, que classificava as mulheres divorciadas como falhadas, fracas, incompetentes, vergonhosas, empurravam-na para a inércia, para o sofrimento, mudo, porque uma senhora nunca se queixa, aguenta tudo estoicamente, porque as mulheres são assim. Fortes. O pilar das famílias. E cabe-lhes a elas, só a elas, mantê-las unidas. Os homens, esses servem para procriar e manter o equilíbrio económico. E acima de tudo há que manter as aparências.

- Não queremos ser as coitadas na boca de ninguém, ouviste minha menina? – Repetia-lhe rispidamente. – Mete isso bem na tua cabeça. O que se passa dentro da tua casa, fica dentro da tua casa!

- Tu estás a ouvir o que dizes? – Rui estava chocado.

Alice, lavada em lágrimas, tinha aberto as portas da alma, quando ele ao ver a negra em forma de dedos, que se formava no pulso, a agarrou, gentil mas firmemente e a obrigou a contar o que se tinha passado.

- Como é que ainda ponderas em ficar com ele? Como é que tu, uma mulher como tu, atura um gaijo desses? O que ele merecia era um murro nas trombas.

Sem se conseguir controlar, deu um murro na parede.

- Desculpa. – Apressou-se a dizer perante a cara de assombro dela. – Eu sei que é teu marido, mas nenhum homem tem o direito de tratar assim uma mulher. Só um cobarde age desse modo.

- Ele tem andado stressado, com muito trabalho. – A “mãe” dentro de si fazia-a lutar pela família, pelas aparências.

- Ele tem andado é estúpido. Aliás ele é estupido, para não lhe chamar o que ele merece. Alice, olha para ti, pelo amor de Deus. Tu não mereces isto.

Ela encolheu os ombros como resposta.

- Não encolhas os ombros. Isso não é resposta. – Disse-lhe rispidamente.

- O que queres que faça? – Gritou ela. – Queres que me divorcie? – Voltou para a janela.

- Claro! – Respondeu espantado com a reação dela. – Não percebo qual é o problema.

- Qual é o problema? Qual é o problema? Queres mesmo saber?

E perante o silêncio dele desfiou todas as suas dúvidas, os seus complexos, as ideias da sua mãe gravadas a ferro e a fogo na sua alma, dentro do seu ser.

Ele não sabia se havia de rir perante tanto disparate ou de a levar a sério. Resolveu, sabiamente, optar pela segunda hipótese.

- Ouve. – Disse-lhe de um modo suave, mas firme. – Nem a minha avó, que cresceu na época da outra senhora, pensava dessa forma. Tu já te ouviste bem? É isso que aconselhas aos teus doentes?

Ela corou de vergonha e baixou o rosto, sem o conseguir encarar. Num só instante tinha mostrado os seus problemas a alguém de fora e tinha posto em causa a sua reputação profissional. Só queria desaparecer…

- Não fiques assim. – Ele condoeu-se do ar dela. – Tudo tem solução, e eu estou aqui para ti. Sempre. - Aproximou-se dela e segurou-lhe o rosto, olhando-a dentro dos olhos.

Ela fez uma tentativa de sorriso que se transformou numa cara cómica.

- Obrigada. – Disse-lhe enxugando as lágrimas com a mão, mostrando mais uma vez a marca da mão do marido.

Ao revê-la ele sentiu uma fúria descomunal dentro de si, e ia libertá-la quando olhando para os olhos dela, sentiu a fúria transformar-se numa sensação que não sabia identificar, mas que sentia ser forte e poderosa, tão poderosa que se atreveu a dizer-lhe:

- Deixas-me amar-te como mereces?

Fim.

 


 

 

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