Amália 11

 

- Uma facada? Como assim, uma facada? - Alice estava estupefacta. Seria verdade? Ou estaria ela a delirar?

Aproximou-se para ver melhor, mas ela depressa a tapou. Via-se que ainda estava nervosa.

- E não é tudo. – Continuou. – Há uma coisa ainda pior.

- Pior do que isso? – Alice decidiu acreditar nela, e mais uma vez viajou com ela para o passado.

- Hum, hum. – Acenou com a cabeça, enquanto as suas faces enrubesciam.

- O quê, mulher?! Desembucha. – Alice levantou-se e segurou-lhe os ombros ficando de frente para ela.

- Diz! Já te disse que podes confiar…

Amália, respirou fundo, inalando pelo nariz a coragem para deixar sair o segredo pela boca.

- É que eu, é que eu… Eu estou grávida!

Virou o rosto para o lado para esconder a vergonha.

- Grávida? – Alice não se conteve e riu-se ao imaginar a Amélia dos tempos de hoje a dizer aquilo. Mas depressa se arrependeu.

- Estás a rir? Não tem piada nenhuma. – Ralhou-lhe Amália. -  Eu sabia que não devia ter-te dito nada. - Estava mesmo zangada.

- Desculpa, desculpa. A sério, desculpa. Mas, é uma notícia boa… Ou, não é?

- É. Se…

- Se?

- Se…

- Sim?

- Se o filho for do Alfredo. – Expeliu a dúvida para fora, como quem esvazia um balão.

Os olhos de Alice iluminaram-se e foi com um esforço que ela conteve o sorriso. Agora percebia tudo.

- Pois…Não sei o que te diga. – respondeu-lhe o mais sério que conseguiu.

Ela olhou-a de lado, mas deixou passar e continuou:

- Não digas nada. Não há nada a dizer.

- Espera. – Sentou-se e sentou-a também.

- Vamos começar pelo princípio. Em primeiro lugar porque é que ela te eu essa facada?

- Foi um “acidente”.

- Um acidente?

Enquanto Falava, Amália ora torcia as mãos, ora tirava um borboto invisível do casaco.

- Sim, há três semanas, ela apareceu lá em casa, toda delicodoces, a dizer que como eu era nova na aldeia, devia começar a dar-me mais com as pessoas de lá, não estar tanto tempo sozinha, etc., e em sinal de boas vindas, trazia um bolo, para que eu lhe oferecesse um café. O que é que eu podia fazer?

Alice não respondeu.

- Nada. – Respondeu-se. - Convidei-a a entrar, dizendo-lhe que o Alfredo não demoraria. Mentira, né?

Alice acenou com a cabeça incentivando-a a continuar.

- Ela não se deixou atrapalhar e ainda eu não tinha fechado bem a porta, já ela estava na cozinha a colocar o bolo na mesa e a perguntar-me onde tinha os pratos. Já viste a lata dela? Bem me avisaram que ela era perigosa…

- E depois? O que aconteceu? – Alice chegou-se mais para a frente.

- Depois coloquei a água ao lume e enquanto punha a mesa ela começou a falar, nos maridos que passavam muito tempo fora de casa, e como nós, as mulheres que ficam sozinhas, temos de nos ajudar e proteger umas às outra, que os homens não são como nós, que é perigoso ficar tantos dias sozinha, enfim, uma conversa parva.

- E a facada? Como aconteceu?

- Calma. Já lá chego. Eu ia dizendo que sim a tudo, não querendo entrar muito no assunto, já prevendo que a intenção dela seria outra, e a ver se ela “despejava” o que lá tinha ido dizer e se ia embora.

- Fizeste bem. – concordou a amiga.

- Pois, a coisa resultou, até que a água ficou pronta e enquanto eu fazia o café, ela começou a cortar o bolo, e de repente, com a faca na mão diz-me isto:

“Eu se soubesse que o meu Feliciano me enganava, não sei o que faria”

Imitou-a com uma voz esganiçada e um ar tão cómico que Alice desta vez riu com bom rir.

- Ri-te, ri-te. – Ralhou-lhe bem-disposta.

- E depois?

Alice estava ansiosa, e ajeitou-se melhor no banco.

- Depois, eu disse-lhe que o marido dela, com toda a certeza que não a enganava e que se estava fora, era para ganhar sustento para os dois. Olha o que eu fui dizer… A mulher virou uma fera. Levantou-se com a faca na mão e começou aos berros a dizer que ela também trabalhava, que o trabalho de casa é tão ou mais puxado que o outro e que além do mais era arriscado estar tanto tempo sozinha, podia entrar algum ladrão e …

- E?

- E, fez o gesto de ser atacada por ele com a faca, atacando-me a mim. Como se tivesse sido um acidente e a faca lhe tivesse escapado da mão sem querer.

- Fogo! – Deixou escapar Alice.

- É claro que pediu desculpa e saiu a correr a chamar o enfermeiro e a dizer a todos que foi um acidente, mas eu bem vi os olhos dela. Não foi um acidente, foi um aviso. Aquela mulher é louca. E imagina agora quando souber que estou grávida.

- E tu não fizeste nada? Não disseste ao Alfredo? Ou ao Feliciano? Ou à polícia?

- Ao Alfredo não foi preciso dizer, ele já sabia quando chegou a casa. Já lho tinham dito Ao Feliciano vou dizer-lhe quando o vir.

- Amália! – Graça mais uma vez vinha interromper a conversa. – É agora a sua vez. Vamos? – Pegou-lhe no braço e sorriu-lhe.

- Vamos, vamos. – Amália deixou-se levar, mas olhando para trás, piscou o olho a Alice e colocando um sinal à frente dos lábios, pediu-lhe segredo.

Alice sorriu e acenou com a cabeça.

- Claro!

 

- Eu não me deixo de espantar com a mente da tua avó! – Comentava Alice com Rui enquanto sentados num banco à beira da praia.

- Então? – Rui tinha os pés esticados para cima do murete que os separava da arriba, e de olhos fechados recebia os raios de sol que timidamente espreitavam naquele fim de tarde outonal.

- Então, espanta-me como é que ela passa de uma realidade para a outra assim. – Estalou os dedos para melhor exemplificar a sua ideia.

- Acho que é como nós. Também mudamos de um pensamento para outro em menos de nada. Aliás, a velocidade mais rápida é a do pensamento, e isso não é à toa.

- Ah! Aí é que te enganas.

Rui recolheu os pés e abriu os olhos. Quem os visse ao longe pareciam um casal com uma longa intimidade que calmamente disfrutava de um fim de tarde, conversando amenamente sobre coisas banais.

- Onde é que eu me engano? – Perguntou divertido.

- A velocidade maior não pertence ao pensamento.

- Então? Pertence à luz?

- Nope. – Alice sorria com um ar de que-eu-sei-e-tu-não-sabes.

- Então? – Agora, direito no banco, revelava verdadeira curiosidade.

- Queres mesmo saber? – Perguntou coquete. Ao mesmo tempo o seu pensamento perguntava-lhe sobre o “que raio estava a fazer”, o que a fez ter a noção de quão rápida era a velocidade dele e se estaria realmente certo o que iria dizer.

- É o chicote. O som que ouves aquando uma chicotada, não é o som do chicote a bater no objeto, mas sim o quebrar da barreira do som. Um golpe que estala no ar desloca o chicote a cerca de 400 metros por segundo, ultrapassando a velocidade média do som, que é de 350 metros por segundo. – Terminou com um ar vitorioso, tão cómico que ele começou a rir, arrastando-a consigo na boa disposição.

- Agora a sério. – Interrompeu ela passados uns segundos. Chamei-te aqui porque tenho um montão de coisas para te contar.

- Um montão? O melhor é usares a velocidade chicote ou então tenho de te levar a jantar. – Brincou olhando para o relógio. – Já são 18.30h…

- AH, AH. Que piada! – Deitou-lhe a língua de fora. – Queres ou não saber o que se passou com a tua avó?

Rui tornou-se sério.

- Quero sim. Disseste ao telefone que tinhas feito grandes progressos. O que descobriste? Foi através do diário?

Ao ouvir isto Alice corou, ao pensar que esteve prestes a fazê-lo.

- Não, não foi preciso. Ela contou-me tudo.

- Diz. O que é que ela te contou?

 

Fiuuuu! – Rui Assobiou quando Alice acabou.

- A minha avó, com um caso? Grávida de outro? Espera. Isso quer dizer que o meu pai, é… - De repente deu-se conta do que toda aquela situação implicava.

- Filha da mãe! – Deixou escapar.

- Então? – Ralhou-lhe Alice.

- Então? Enganou-nos a todos, toda a vida, e ainda dizes então?!

- Calma. Não sabemos.

- Não sabemos? Ela acabou de te contar que estava grávida do outro. – Levantou-se e levou as mãos à cabeça num sinal de desespero. Numa fração de segundos todas a sua vida “perfeita” tinha ido “por água abaixo”.

- Calma. Ela não me disse de quem é o filho.

Rui olhou-a enojado.

- Ainda pior. Andou a dormir com os dois ao mesmo tempo!

- Não sejas tão duro a julgar. Tenta percebê-la.

- Percebê-la? Ela enganou o meu avô, enganou o meu pai, enganou-nos a todos! Não percebes? E ainda por cima sempre com um ar altivo, de Senhora que nunca faz nada de errado, que nunca perde a classe. – O desprezo que sentia mostrava-o no tom com que proferias as palavras.

- Ouve. Tu não a ouviste. Tu não sabes o que é estar casada com um “fantasma”, não sabes o que é passar, noite, após noite, sozinha, jantar sozinha, não ter ninguém especial para te ouvir, para te abraçar, para te dizer que tudo vai ficar bem, quando tudo parece estar mal. Tu não sabes!

Sem se aperceber, estava a falar de si própria, as palavras saíram-lhe mais emotivas do que queria.

Rui apercebeu-se disso.

- Não, mas, tu sabes?

 


 



 

 

 

 

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