Amália 12
Alice calou-se. Também ela acabara de perceber o que se passava.
- Tu estás a falar de ti, não estás? – Insistiu ele baixando-se para
ficar ao nível dela, que sentada no banco, olhava para o chão.
- Não. Que disparate! – Mentiu, continuando a olhar para os
sapatos.
Ele levantou-lhe o rosto, e apenas com os olhos perguntou-lhe:
- O que se passa contigo?
Com as lágrimas a quererem desmenti-la, ela levantou-se e de costas
para ele, falou-lhe no tom mais neutro que conseguiu encontrar dentro de si:
- A tua avó não foi uma leviana. Ela sofreu mesmo. É muito fácil desapaixonares-te
por alguém que não te dá nenhuma atenção. – Mais uma vez falava de si própria.
Num impulso ele abraçou-a e ela não lhe resistiu. Sabia-lhe tão bem
aquele abraço. Há quanto tempo não tinha um peito onde se encostar? Há quanto
tempo não sentia uns braços protetores à sua volta?
- Tu não estás a falar da minha avó, pois não? – Ele perguntou-lhe
enquanto lhe afagava a cabeça dela encostada ao seu ombro.
Ela mexeu a cabeça numa resposta que ele não percebeu, mas deduziu
que seria afirmativa.
- Eu sei que não tenho nada a ver com isso. – Continuou confiando
no seu palpite. – Mas se estás a sofrer por causa do teu casamento podes sempre
desabafar comigo. Eu prometo não fazer juízos.
- Não quero falar. Deixa-me estar assim, só por alguns momentos,
por favor… - Pediu ela de cabeça ainda encostada. Sabia-lhe pela vida aquele
abraço.
Rui apertou-a mais junto a si, e sentiu no seu peito a vontade de
nunca mais a largar.
- Boas! Como está tudo por aqui? Hoje trouxe-vos um miminho.
Alice entrou na copa do lar com um sorriso no rosto e uma caixa com
bolos e cafés quentinhos para todos.
- Olá… Fazes anos hoje? – Carlos, um colega, aproximou-se dela e “roubou-lhe”
um café. – Hum, cheira tão bem. É do “Pão”, não é? – referia-se a um cafezinho que
havia na aldeia próxima do lar.
- Claro! – Respondeu Graça por Alice. – Existe outro? – Brincou.
Estavam todos a comer e a palrar quando entrou a diretora. Trazia
na mão um caderno que chamou a atenção à Alice.
- Boa dia a todos. – Disse com um ar grave.
- Bom dia responderam, desfasadamente, uns e outros.
- Não sei se já viram as notícias, mas o governo decretou, que
devido à pandemia, estão proibidas as visitas dos familiares aos idosos
residentes em lares.
- Mas não é só em casos de contaminação? – Perguntou Ana.
- Não. É, justamente para evitar as contaminações. Vou agora começar
a telefonar aos familiares. Alice começas a ronda pelos utentes?
- Claro que sim. – Alice, largou o café e começou a dirigir-se para
a porta. Ia a meio do caminho, quando ao passar pela diretora esta a intercedeu.
Alice deixou Amália para último dos seus doentes a visitar.
Encontrou-a sentada a ver televisão, o que nela era raro. Aproximou-se dela e
cumprimentou-a.
- Então? Como estás? – Há já uns tempos que desistira de tentar a
abordagem convencional.
- Mais ou menos. – Respondeu-lhe sem tirar os olhos do ecrã.
- Então? – Repetiu-se.
Ela encolheu os ombros e não respondeu. As lágrimas assomaram-lhe
aos olhos. Preocupada, Alice colocou as
suas mãos por cima das delas e apertou-lhas num gesto de carinho, que teve como
condão abrir a torneira há muito reprimida.
- Então? Então? O que se passou?
- O meu bebé. – Soluçou.
- O que tem?
- O meu bebé, o meu bebé. – Repetia triste.
- O que aconteceu? – Alice partilhava a dor como se tivesse presente
no passado.
- Morreu. – Disse num grito, olhando-a com os olhos a faiscarem de
fúria.
- Morreu? Como?
- Ela conseguiu. Ela conseguiu. Tirou-me os meus amores, os meus
únicos amores. E agora? O que é que eu faço? Como é que eu vou viver?
- Calma, calma. – Alice abraçou-a. – Respira fundo e conta-me o que
aconteceu.
- Onde estiveste? Onde estiveram vocês? – Referia-se a ela e ao
Alfredo.
Alice não sabia o que lhe responder e calou-se.
- O Feliciano ficou tão feliz quando eu lhe contei. Pulou de
alegria, abraçou-me, e jurou-me que a partir daquele dia nunca mais nos separaríamos.
Iria falar com ela, iria pedir a separação
e se ela não aceitasse fugiríamos os dois. Para longe. Para sermos felizes.
Calou-se e por momentos viajou para uma outra realidade, um futuro
no passado.
- E? O que aconteceu? – Alice sentia-se como se estivesse a ver um tríler,
ansiosa por saber o que iria acontecer na cena seguinte.
- O que aconteceu, foi que ela matou-o. Matou-os. Aos dois.
- Matou-os? Como?
- Não sei. Só sei que ele saiu de ao pé de mim para ir ter com ela.
Para lhe contar. E, horas mais tarde, ouvi uma ambulância a apitar pela aldeia.
Corri para a rua, juntei-me ao povo que aguardava junto à casa deles. Por
momentos pensei que fosse ela. Que tivesse desmaiado com a notícia, que tivesse
tido um chelique, qualquer coisa.
- E não foi?
- Não. Imagina o meu choque, quando vejo um corpo a sair deitado na
maca, dentro de um saco, e ela com um ar muito pesaroso, amparada por dois
bombeiros, a vir atrás dele.
- Era ele? Como é que ele morreu?
- Dizem que foi um enfarte. Ela diz que ele estava a jantar
e de repente caiu para o lado, mas eu sei que foi ela.
- E o bebé?
- O bebé – A voz dela quase se sumiu. – Morreu com o choque, com a
queda, não sei. Só sei que quando o vi, desmaiei e só acordei dois dias depois,
no hospital da misericórdia. Quando
acordei perguntei por ele, e disseram-me que sofri um aborto espontâneo, que
era normal numa primeira gravidez, que era o corpo a adaptar-se, mas eu sei que
não. Eu sei que foi o choque.
- Oh, amiga. Sinto muito. Sinto mesmo muito. – Amália abraçou-a e
chorou com ela.
- Onde estiveste? – tornou a perguntar-lhe passado um bocado.
- Tive de ir à terra ver a minha mãe. – Mentiu, trincando a língua
como autopunição.
- Tanto tempo?
- Sim, ela não está bem. – Num rasgo de inspiração continuou a
farsa. – E tenho de lá voltar, para tomar conta dela. Percebes? Vou estar uns
tempos fora, não te vou poder ver. – Referia-se à notícia que recebera há pouco
sobre o isolamento.
- Muito tempo? – Parecia tão perdida, que Alice sentiu uma pontada
no peito.
- Não sei. – Respondeu-lhe com o coração partido.
- Espera um pouco. – Levantou-se e foi até à secretária, baixou-se, e esticando o braço para baixo do
tampo, tirou de lá o diário.
Já levantada, parou um pouco como que a certificar-se do que iria
fazer e num gesto decidido voltou ao pé da amiga e estendeu-lho.
- Toma. – Disse.
Alice recebeu-o e inquiriu-a com o olhar.
- Guarda-o. Não sei o que o futuro me reserva, mas tenho medo de
que alguém o encontre. Não sou capaz de o destruir, apesar de achar que seria o
melhor a fazer, mas destruí-lo é destruir um pouco do Feliciano. Percebes?
Alice assentiu com a cabeça comovida com a vida e força desta
mulher e com a confiança que ela depositava nela.
- Tens a certeza?
- Tenho.
E depois, num repente, aproximou-se da porta, abrindo-a,
indicando-lhe que queria estar sozinha.
Alice percebeu e levantou-se. Ao passar por ela, não resistiu e
abraçou-a, segredando-lhe:
- Vais ficar bem. Eu sei. Acredita em mim.
E foi então que ela num rasgo de algo que Alice não soube descrever
quando mais tarde relatou o sucedido a Rui, diz-lhe:
- Pode ser que um dia o mostres ao meu neto.
E fechou-lhe suave, mas firmemente a porta.
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