Alice 1

 

Alice era uma mulher criança.

De altura mediana, corpo a acusar um bocadinho a falta de ginásio, tinha uma cabeleira farta, ruiva e rebelde que com os seus grandes olhos verdes e as sardas que teimavam em aparecer por mais protetor solar que pusesse, mostravam o quanto a criança dentro de si estava bem presente no seu dia a dia.

Adulta, responsável, trabalhadora, trazia sempre consigo a criança que fora e que teimava em aparecer nas alturas menos próprias, causando-lhe de vez em quando alguns embaraços, mas que ela com a têmpera infantil, relativizava e desvalorizava.

Sim, era uma pessoa contraditória. Uma pessoa com opostos. Uma pessoa como nós.

A história dela poderia ser a minha, a sua, a da vizinha do lado, a da senhora da loja, a de qualquer mulher. Mas não foi. Foi a dela. E é a dela que eu vou contar.

Tendo cerca de 40 anos, um cão e um marido, era uma mulher feliz. Pelo menos assim o pensava.

Que mais se pode dizer acerca dela?

 Era professora universitária, adorava o seu trabalho, e, como hobby, gostava de ler e de visitar livrarias à procura de um livro, à procura de um cheiro, à descoberta de algum mistério.

Como lidava com jovens, mantinha o seu aspeto juvenil, quer na apresentação, quer nos modos, quer na linguagem. Usava o seu cabelo comprido preso num rabo de cavalo, e como maquilhagem apenas um pouco de rímel que lhe realçava as pestanas que emolduravam uns grandes olhos verdes. Meigos e cheios de vida.

Vestia-se com roupa prática e nos pés usava ténis ou sapatos de caminhada, pois preferia deslocar-se a pé para o trabalho e fazer assim o seu exercício diário, ao invés de usar o carro que o seu marido lhe oferecera e que estava quase sempre parado, não fosse ele de vez em quando a dar-lhe algum uso.

E a vida corria morna para a Alice. Tinha as suas rotinas, o seu emprego, as suas coisas, e assim permaneceriam até ao fins dos tempos, não fosse uma manhã em que chegou ao trabalho, e as aulas tinham sido canceladas, devido a um rebentamento de umas condutas de gás, naquela ala do edifício.

- O que vais fazer? – Perguntou-lhe a Margarida, sua colega.

- Pois, não sei. – Respondeu-lhe. – Não e apetece ir para casa, e aqui não podemos ficar. E tu? Vais para casa, ou ficas por aqui? – Referia-se à faculdade.

- Aqui não. Vou aproveitar e fazer umas compras, que o natal está à porta e não comprei quase nada. Queres vir?

- Compras de natal? Não obrigada. Vou até à baixa. Vou passear pelas ruas e aproveitar esta bela manhã. – Levantou a cabeça para o céu e fechando os olhos inspirou o ar fresco que se fazia sentir e que trazia o aroma dos pinheiros da mata ali próxima.

- Vão à baixa? – Perguntou um professor que por ali passava e ouviu a conversa. – Querem boleia? Tenho de ir a uma livraria nova que abriu.

Os olhos de Alice abriram-se involuntariamente, e as orelhas ganharam vida própria. Uma livraria nova?

- Obrigada, mas tenho carro. – Respondeu, sorrindo, a Margarida. – Mas tu podes aproveitar. – Disse virando-se para a Alice.

- Hum, não. Não é preciso. – Recusou fazendo “aquele” olhar à amiga. – Eu vou a pé.

- A pé? Até à baixa? A colega é que sabe…- Mostrou um ar de que a achava meio maluquinha.

Ela olhou para a Margarida a pedir ajuda, mas dela só obteve o mesmo olhar.

- Não sejas tola. O colega até vai a uma livraria nova.  De certeza que a queres conhecer também.

Alice olhou-a interpelando-a com o olhar. – O que é que estás a fazer?!

Dela obteve apenas um sorriso angelical, e sentindo-se acossada pelos dois, Alice acabou por aceitar a boleia.

Sentados lado a lado no carro, e já em andamento, a situação tornou-se um pouco constrangedora, pelo menos para a Alice, que apesar de ser muito extrovertida e tagarela, era uma pessoa tímida com quem não conhecia.

Ajeitando-se melhor no banco, pigarreou e perguntou para quebrar o silêncio.

- O colega, é novo, não é? Veio substituir o professor Fernando?

- Sou novo aqui, não em idade. – Brincou.

Alice fez um sorriso amarelo e nada respondeu. Perante o silêncio dela ele continuou:

- Sim, vim substituir o professor Fernando. Só vou estar aqui um semestre. Em Janeiro já volto para a minha terra.

- Já? Então vai estar cá pouco tempo. É de onde?

- Sou de Chaves.

- Ah!

Novo silêncio.

- E essa livraria? – Perguntou ela após uns minutos. – Fica onde?

- Olhe, nem sei bem. É de um amigo meu. – Tirou um cartão de uma caixa que estava entre os bancos, e mostrou-lho. – É essa a morada. Sabe onde fica?

Alice leu o cartão. – “Clube dos Livros” Assim se chamava a livraria.

- Tem um nome engraçado. – Comentou divertida. – E fica na rua dos Doutores!

- Tem. – Concordou ele sempre a olhar para a estrada. – Sabe onde fica?

- Sei sim. Fica numa rua junto à universidade velha. Não é na baixa.

- Não?

- Não. Tem de virar na próxima à direita e subir tudo até lá acima, junto à Universidade. Depois é uma rua que desce na parte de trás da faculdade de Engenharia. Chama-se assim porque foram aí as primeiras residenciais de estudantes. O seu amigo abriu a livraria há pouco tempo, não abriu?

- Sim, há cerca de um mês. É um projeto diferente.

- Como assim diferente? – Sem se aperceberem o constrangimento inicial ia desaparecendo dando lugar a uma conversa agradável.

- É uma loja com livros para consulta, para estudo, para venda, claro, e com um espaço multifunções, onde se podem realizar alguns eventos mais intimistas de modo a unir a comunidade. Eu não a conheço, só por fotos, mas vi que tem uma salinha acolhedora, com uma grande lareira e cheia de janelas com vidros enormes que dão para o rio.  Deve ser muito agradável ter lá uma tertúlia.

- Hum. Estou curiosa. Ali. – Apontou para um lugar vazio junto a um prédio baixinho de tresandares.

- Estacione ali. Vamos o resto do caminho a pé que já perto.

Estacionaram, e ele dirigindo-se à bagageira do carro, abriu-a e tirou de lá um saco cheio de livros.

- Quer ajuda? – Ofereceu-lhe os seus braços.

- Já agora… - Ele depositou uns poucos de livros, todos iguais, nos braços que ela tinha estendido.

- Mas o colega vem para comprar ou para vender livros? – Brincou Alice.

- Nem uma coisa nem outra. – Respondeu ele carregando mais um molhe. – Vim oferecer. Fica onde, a rua? Isto pesa mais do que eu pensava. Devia ter aceite os sacos que a minha mulher me quis dar. – resfolegou.

- É já ali. – Apontou com a cabeça para uma pequena rua situada à esquerda daquela onde estavam.

Começaram a andar e Alice olhou melhor para os livros. “Crimes Embrulhados em café”. Reparou no nome do autor, Miguel Correia, e olhou para ele. Seria que? Apressou o passo.

- Chegámos! – Disse. – Agora é só procurar a loja.

- Não precisamos de procurar. – Disse ele. – É aquela com a tabuleta de madeira pendurada. Vê? – Afirmou perguntando e começando a dirigir-se para lá.

Ela começou-o a seguir, mas a meio do caminho fez um compasso de espera para tirar a dúvida. Poisou os livros numa mesa de uma esplanada de um pequeno café e pegando num livro abriu-o. Lá estava ele. Miguel Correia, a fotografia do colega a encimar uma nota biográfica. Era ele o autor.

- Então? Vem? – Perguntou Miguel parado em frente à livraria.

- Vou sim. – Respondeu ela pegando nos livros. – Já estou a ir.

- Não sabia que escrevia. – Disse-lhe assim que chegou ao pé dele.

Ele fez um ar misterioso e sorriu. Não chegou, porém, a responder, o amigo veio cumprimentá-lo e a conversa seguiu outro rumo.

Alice deixou-os e foi dar uma volta pela livraria. Era um rés do chão de uma antigo palacete, e a avaliar pelo tamanho da lareira, e pelas portas janelas que davam para um jardim interior aquela divisão teria sido a cozinha. O chão, de pedra granítica, estava coberta com uns largos tapetes coloridos, que combinavam com uns sofás de pele, castanhos, onde uma mantas convidavam a sentar num dia de frio como aquele.

Entre os sofás, e espalhadas pelas frechas entre as janelas, estavam estantes de madeira cobertas de livros.

Alice perdeu-se no meio delas até que ao procurar um romance que lhe tinham recomendado, encontro, no meio de vários livros todos modernos, um caderno de capa rija, com uma lombada em tecido, vazia de imagens e de letras.

- Estranho. – Pensou. – Alguém arrumou mal este livro.

Curiosa, esticou-se e em bicos de pés puxou-o para fora.

Pegou nele e virou-o para perceber a qual género ele pertenceria e assim o poder arrumar na estante certa.

O caderno, de tamanho A4, tinha uma capa em pele, castanha, ladeada por uma lombada de tecido creme.

Na capa uma simples frase escrita a tinta preta numa letra de imprensa, masculina.

“Não Leias”

Alice ficou um tempo a olhar para aquilo.

- Não leias? – Repetia para si. – Como, não leias?! Quem é que escreve um diário, ou o que quer que seja, que não quer que leiam e o deixaria assim ao alcance de todos?! Não leias…Pf…

 Virou o caderno de um lado para o outro à procura de alguma identificação. Nada. Nem um nome, nem um sinal, uma marca qualquer nada…

- Que se lixe! – Pensou. – Vou abrir, se não como é que o posso arrumar bem?



 

 

 

 

 

 

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