O destino 1

 

Alice

Alice era a mais nova de 3 irmãos. Dois rapazes e ela.

Viviam com a mãe numa aldeia onde o tempo tinha dificuldade, por teimosia, em acompanhar o avanço dos dias de hoje.

A casa, de Xisto, era composta por dois andares. No rés do chão ficava a "loja", onde eram guardados os animais e as alfaias agrícolas, no primeiro andar ficava a casa de família, modesta, com dois quartos uma sala e uma cozinha. A casa de banho era uma divisão na varanda que acompanhava toda a casa.

Embora não tivesse luxos, era acolhedora e quentinha no inverno, graças à enorme lareira que, situada na cozinha, aquecia toda a casa.

Nas varanda, duas, estavam pendurados nas sacadas, vasos com sardinheiras brancas e vermelhas que pendiam destes, transmitindo uma imagem de paz e serenidade.

A aldeia ficava em Trás-os-Montes, e estando escondida no meio das montanhas, ficava resguardada de tudo, dos males da dita chamada civilização e dos benefícios da mesma, das influências boas e más, das doenças e dos progressos.

Mas os habitantes não reclamavam. A vida era assim. Já assim o era no tempo de seus avós e assim o seria no tempo dos seus filhos e netos.

Não havia volta a dar.

Era deste modo que todos falavam quando aos domingos depois da missa se juntavam no átrio da Igreja.

A missa era ainda dita em latim, com os homens separados das mulheres e a canalha sentada junto às mães com os sapatos apertados nos pés, envergando as roupas desconfortáveis, mas bonitas, e os cabelos bem penteados. 

Alice, também não reclamava. Gostava da vida que tinha.

Gostava de se levantar de manhã cedinho, com o chamamento do galo, de acender a fogueira e aquecer a casa e o café, que bebia quentinho, devagarinho, cheiroso. Sem pressas… 

Gostava do facto de conhecer todos os que ali viviam, de sair à rua e sentir-se em casa. De saber-se protegida.

Porém, e embora gostasse de tudo isto, e de abrir a janela e ver-se rodeada de montanhas, sonhava muitas vezes que estava presa num castelo e que algum dia, algum cavaleiro a viria buscar num cavalo castanho e tirá-la ao seu destino.

Sim, destino, porque como todos sabem a nossa vida já nasce traçada.

Rezava a tradição, e com esta não se brinca, que sendo a mais nova dos irmãos e sendo mulher, teria de ficar a tomar conta da mãe enquanto esta vivesse. Não se poderia casar enquanto a sua mãe não falecesse, e esta, viúva, contaria com os cuidados da filha e a sua total dedicação, até ao fim dos seus dias.

- É a paga por te ter carregado durante 9 meses. – Respondia-lhe quando Alice se queixava.

- Mas a mãe também carregou os meus irmãos, e eles não são obrigados a isto! – Sem se aperceber levantava a voz.

- Toma! – Entregava-lhe qualquer coisa para as mãos. – Vai trabalhar. – E assim acabava com a conversa.

- Tradição injusta e retrógrada! – Revoltava-se quando ao fim do dia, se punha à janela a olhar para as montanhas na esperança de ver chegar o seu cavaleiro.

Bom, falar em cavaleiro é um bocado rebuscado.

Alice sonhava em sair dali, sim.  Em conhecer outros lugares, outros costumes, e pessoas com mentes mais abertas, como o professor de liceu que há dois anos se fora embora da aldeia.

Ele ensinara-a a ver o mundo com outros olhos, ensinara-a que havia mais da vida além disto, que havia outros mundos, outros olhos e que ao contrário do que ela dizia, o seu destino não estava traçado.

O seu destino era ela que o fazia. E ela tinha de o fazer, e não deixar que o fizessem por ela. Dizia-lhe isso muitas vezes quando se encontravam por acaso na aldeia.

Mas à Alice faltava-lhe a coragem para abandonar a mãe, para abandonar o conforto, para romper com a aldeia.

Mais uma vez, era assim...  – Desculpava-se para si e para ele.

No entanto, não era ela a única.

Nos fins de tarde do verão, descendo pela rua empedrada, aproveitando a sombra projetada pelas sacadas das casas de xisto que a ladeavam, Alice juntava-se a Lurdes, que tal como ela tinha o destino traçado.

Também ela tinha de ficar a tomar conta da sua mãe até que Deus se lembrasse dela.

Lurdes, no entanto, não se conformava.

- Olha lá. - Dizia-lhe muitas vezes. - Já viste a Olinda? Desde que veio de Viseu parece outra. Roupas novas, penteado novo, sapatos de salto. Aquilo sim. Até parece… Sei lá. E diz que não vai acabar os seus dias aqui.

- Pois…- Respondia-lhe Alice. - Ela teve sorte. Os pais são imigrantes, têm ideias diferentes dos nossos. Eu também gostava de sair, mas não vejo como...

- Podíamos fugir, íamos as duas para Vila Real.- Tornava Lurdes.

- Sim, e vivíamos do quê? – Alice era muito sensata e prática.

- Lá nos arranjaríamos – Tornava Lurdes sonhadora.

- E tinhas coragem de abandonar a tua mãe? – Lembrava-lhe Alice.

- Pois...- Lurdes baixava a cabeça arrependida da leviandade.

De repente, após uns momentos de silêncio, Lurdes com uma voz malandra, dizia:

- Podemos sempre matar as nossas mães. Já viveram a vida delas e nós estamos aqui a definhar...- Brincou.

- Chiu... Parva! – Alice batia-lhe no braço. - Ainda te ouvem. És mesmo parva!

Ria-se com Lurdes. Como não rir? Daquela cabeça só saíam ideias disparatadas.

Mas a verdade é que ela não deixava de ter alguma razão...



 

 

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