Alice 10

 

- Já te disse que não tenho nada. – Pedro apelava a toda a sua calma para não iniciar uma discussão com Isabel. – Estou só cansado, e preocupado. A livraria não está a ir muito bem…

Falou-lhe sem a olhar nos olhos. Embora não estivesse a mentir, também não estava a dizer toda a verdade…

Isabel olhou-o com uns olhos tristes. Ela sabia que aquele não era o seu Pedro. Por muito que ele a tranquilizasse e lhe apresentasse justificações para o afastamento que ela sentia existir, e que ele negava, ela sabia!

Ainda há pouco, no médico tinha falado acerca disso. Ele aconselhara-a a ser frontal, a falar com ele olhos nos olhos, mas como fazer isso se os olhos dele já não eram os mesmos?!

Desistiu. Saiu da sala e foi para o quarto ler um pouquinho. Pelo menos ali, enroscada no seu cadeirão e com um livro nas mãos, podia deixar sair por uns momentos aquele peso que lhe oprimia o coração e que não a deixava sorrir.

Até ela estava farta de estar sempre assim, quanto mais ele… Pelo menos ali, entre as páginas da estória, podia ser outra, viver outra vida, tomar outras decisões.

Pedro foi até à garrafeira e encheu um copo com whisky. Geralmente não bebia, aliás muito, muito raramente o fazia, e se a Isabel ali entrasse e o visse, teria com certeza mais uma preocupação para acrescentar às tantas que ela ultimamente trazia, mas hoje estava mesmo, mesmo a apetecer-lhe.

Com o copo não, sentou-se no cadeirão em frente à televisão, que desligada não lhe fazia companhia, e fechando os olhos bebeu o conteúdo de um só trago.

Estremeceu. Parecia ter lavado a garganta. Pudesse assim lavar a alma também…

Quando é que tudo começara? Como é que tudo começara? Porque é que tudo começara?

Filho de pais divorciados, Pedro jurou a si mesmo, e a Isabel, que nunca se separariam. Que enfrentariam juntos os obstáculos que a vida lhes pusesse, que nunca a faria sofrer, e agora…

Agora não só a faria sofrer, como também ele estava a sofrer. E muito.

Não lhe apetecia estar com ela, não tinha paciência para a ouvir, não lhe apetecia estar em casa, e… sentia-se um miserável. Um canalha.

Só lhe apetecia estar com Alice. Ao pé dela recuperou o riso fácil, e o gosto pela aventura, pelo infantil. E isso fazia-o sentir-se tão bem.

Sim, ele sabia que ela era casada, tal como ele. Ele sabia que a princípio tudo é excitante e que com o tempo tudo muda. Sim, ele sabia que ela não estava nem aí para ele.

Sabia? Disso ele já não tinha tanta certeza…

- Amor. Voltaste? Aconteceu alguma coisa? – Alice surpreendeu-se ao ver o marido em casa.

- É preciso acontecer alguma coisa para eu voltar para casa? – Respondeu-lhe ele com maus modos.

- Nnão… Só que disseste que ias passar a semana fora. O que aconteceu?

Aproximou-se dele e tentou abraçá-lo e beijá-lo. Irritado ele sacudiu-a e começou a desfazer a mala

- Nada! Cancelaram o evento. Só isso. Acho que houve alguém com esse maldito vírus.

Magoada, ela cruzou os braços numa atitude defensiva.

- O covid? – Apesar de magoada ela estava decidida a não brigar com ele.

- Conheces outro? – Respondeu-lhe rudemente.

Ela podia-lhe responder que sim, que conhecia vários, mas achou por bem não o fazer. Não merecia a pena.

- Por onde andaste? Já cheguei à um par de horas… - Perguntou-lhe agressivamente ao vê-la ali parada e muda.

- Fui à livraria. – Respondeu animada.

- À livraria? A um domingo?

Alice animou-se e começou a contar a história do livro e como tinham descoberto que havia um impostor, e … Calou-se. Ele não a estava a ouvir. Uma qualquer mensagem no telemóvel tinha ganho uma importância desmedida.

Desistindo de ter mais uma conversa com ele voltou para a sala. Tim esperava-a enroscado sobre si mesmo, deitado em cima de uma almofada que ele roubara à cama quando era bebe e que ficara a sua cama. Gigante quando ele a tirou, agora deixava-lhe parte do corpo de fora, mas mesmo assim ele não desistia dela, rejeitando toda e qualquer outra que lhe comprassem.

Dormia a um sono solto.

- Que sorte tens! – Disse-lhe Alice fazendo-lhe uma festa na cabeça.

- Sabes? Há vezes em que detesto o teu dono. E hoje é uma dessas vezes. É mesmo estúpido. Sempre agarrado ao telemóvel, não nos liga nenhuma. Depois admira-se que eu procure estas coisas para me entreter. O que é que ele quer? Era melhor que eu andasse com outro?

- Uof, UoF! – Tim que, entretanto, acordara lambeu-lhe o rosto.

- Pois. Porque é que não pode ser mais como tu? Porque é que não pode ser mais como…

Pedro – Dizia-lhe a sua cabeça.

- Como no início de namoro – Ela recusava-se a admitir que algo se começava a formar entre ela e aquele homem tão simpático, paciente e amigo…



 

 

 

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