Carmo 1

 



Carmo ouviu o som do despertador a tocar e virou-se para o outro lado da cama.

Estava a dormir, e no seu sonho uma campainha tocava incessantemente. Não lhe apetecia ir abrir a porta, mas quem quer que fosse não se ia embora. Tinha de ir.

- Que chatice! – Sonhou. – Nunca mais se calam!

Virou-se para o outro lado da cama, mas o barulho continuava. Irritada, levantou-se num ápice e, com a pressa, o seu pé ficou preso no lençol levando-a a dar um valente trambolhão.

Acordou.

A muito custo abriu um olho e olhou para o despertador. Era ele quem tocava e não a porta. Com prática, estendeu a mão, carregou no botão de silenciar e virou-se para o outro lado pronta a dormir mais um bocado.

Enroscou-se no namorado e recomeçou o sonho. Onde é que ia mesmo?

- Trim, trim.

- Bolas! A porta não se cala. – Resmungou mais uma vez no sonho. - Não quero ir. Não me apetece ver nem falar com ninguém.  Este livro que estou a ler é mais importante.  Se eu ficar quieta será que se vão embora?

- Trim, trim. - Não desistiam.

Tornou a acordar.

Virou-se para o despertador e viu que continuava no modo de silêncio.

- Estranho. – Pensou, desta vez já acordada.

Tornou a virar-se para se enroscar novamente, quando ouviu, o som estridente da campainha.

- Trim, trim.

-  A esta hora? Quem será? – Pensou enquanto se levantava. – Só pode ser uma emergência.  O que se terá passado? – Vestia o robe já aflita.

-Trim. Trim.

A campainha tocada cada vez com mais força, cada vez mais rápido. Quem quer que fosse que a estivesse a tocar estaria com certeza aflito.

- Já vou! - Gritou do corredor. – Já vou!

Acercando-se da porta, espreitou pelo óculo antes de abrir. Era a dona Maria a sua vizinha do lado. Uma velhinha de 80 e poucos anos que vivia sozinha com o seu gato. Tinha, realmente, um ar aflito.

- Dona Maria. O que aconteceu? Sente-se mal? – Perguntou abrindo a porta e olhando para a senhora que esbracejava e balbuciava algumas palavras que ela não conseguia entender.

- Os dentes fazem realmente muita falta. – O pensamento fugiu-lhe ao reparar que a vizinha se esquecera de os colocar naquela manhã.

Sem mais explicações, assim que Carmo abriu a porta, a Sra. entrou direitinha à sala, não esperando o convite que as regras de boa educação mandam.

- Venha venha. - Chamava-a aflita. – Venha. O Rato fugiu para a sua varanda. Se não o apanhamos depressa ainda salta para a árvore e depois…

O Rato era o gato da Dona Maria. Um Neblung cinzento, que embora fosse muito meigo e sossegado, aproveitava cada ocasião que se lhe apresenta para esculpir.

A pobre senhora passava a vida atrás dele, não se conseguindo convencer que como gato de rua que fora, ele gostava de ir dar a sua volta e voltar.

Quando lhe assim aprouvesse, não quando a dona queria…

Carmo encolheu os o ombros e suspirou. Esta não era a primeira vez que o gato fugia para a sua janela, e não seria a última, disso tinha a certeza, mas tão cedo… Essa era uma variante nova.

- Resignada a não dormir mais, lá abriu a porta da varanda e empoleirando-se no escadote de dois degraus que ali estava guardado, e equilibrando-se, esticou os braços e apanhou o Rato que miando de frustração, lá se deixou apanhar.

- Pronto dona Maria.  Aqui tem fujão. Como é que ele escapou desta vez? – Perguntou sem na verdade querer saber.

- Ora Caminho. A menina sabe com o ele é esperto.  Veio da rua habituado a ser desenrascado.  – A senhora afagava-o com carinho ao mesmo tempo que lhe ralhava.

Rato, esse nem sequer a ouvia.  Com os olhos fechados ressonava ligeiramente, deixando Carmo mais uma vez espantada com a facilidade com que aquele gato alternava entre o sono e o estado de vigília. Era uma coisa impressionante! Que inveja!

- Bom, já que estamos levantadas… Quer um cafezinho? – Perguntou enquanto se dirigia para que cozinha.

- Café a esta hora?! – Não, obrigada. – A dona Maria não se deixava de escandalizar com os hábitos da juventude.

Sim, ainda não vos disse, mas Carmo era jovem. Pelo menos para a dona Maria que considerava todos que tivessem menos de 40 anos uns jovens ainda “cheirar a cueiros”.

E Carmo tinha 32 anos.

Era definitivamente jovem. Era uma rapariga alta, de corpo esguio, com os cabelos longos e rebeldes cuja cor alternava consoante o seu estado de espírito, passando por várias tonalidades de castanho entre o louro e o ruivo. Preto nunca tinha usado. Fazia-a lembrar as pessoas da aldeia e ela fugia disso a “sete pés”.

- Vou para casa e trancar as janelas todas. Este malandro não há-de fugir outra vez!

Dona Maria dirigia-se para a porta.

- E…Desculpe se a acordei, mas bem vê, era uma emergência.

Despediu-se com o ar autoritário que a caracterizava, fruto da vida de filha e de esposa do Sr. Coronel que é o mesmo dizer, fruto da vida de quem está habituado a mandar e a ser obedecido.

Não me interpretem mal. Dona Maria não era uma má senhora, era apenas uma senhora que felizmente, ou infelizmente, nunca conhecera outra realidade que não essa, e ainda hoje, apesar de estar viúva há um bom par de anos, continuava assim.

Como diz o ditado, “O que nasce torto jamais se endireita!”. Mas quem a conhecesse bem sabia que tinha um coração de ouro. Era uma mulher esperta e inteligente e era a primeira a ajudar quem precisasse, ainda que não lho pedissem.

E gostava muito da Carmo que via como a filha que nunca teve. E Carmo gostava muito dela. Tão diferente das “velhas” da aldeia de onde fugira assim que pode. Com 19 anos.

Viera para Coimbra, para trabalhar como “caixa” numa loja de roupa na baixa e depressa subira na carreira, passando em poucos meses a gerente de loja.

Dona Maria, inteirando-se da sua situação, insistiu para que ela tirasse um curso de gestão, ainda que em horário pós-laboral, oferecendo-se para o pagar, refutando as suas desculpas com:

- Isto é um investimento! – Dizia-lhe de dedo espetado no ar. – Quando a menina for rica, vai pagar-me com juros e ajudar-me a gerir a minha reforma. – Vaticinava sem na verdade querer alguma das coisas que dizia.

Embora negando, a princípio, a ajuda, Carmo lá acabou por ser convencida (e aprendeu a não subestimar o poder de influência da dona Maria) e tirou o curso.

Da loja passou para uma empresa gráfica e acabou por criar a sua própria empresa. Um atelier de escrita criativa que dava oportunidade a jovens escritores de publicarem as suas obras.

Cada jovem pagaria o preço da impressão e das cópias com o trabalho necessário para que a empresa funcionasse, até que o custo da obra fosse atingido. Depois era opção sua e/ou da Carmo continuar ou não na empresa, consoante as necessidades e vagas disponíveis.

Eles teriam também de tratar, com o apoio da empresa, dos contactos com as livrarias e outros locais onde quisessem ver a sua obra exposta. Isso dava-lhes um vislumbre do mundo real ao mesmo tempo que os ensinava.

- `Mor! Vens? – Mauro, o seu namorado chamava-a com uma voz de desejo.

- Vou já! – Respondeu Carmo deixando-se estar no mesmo lugar.

Não lhe apetecia estar mais com ele. E tinha de lho dizer. E não sabia como. Nunca sabia como…Detestava quando as relações chegavam a este ponto.

Abeirou-se do quarto e deixou-se estar encostada à ombreira da porta a observar Mauro que, entretanto, voltara a adormecer. Nesse apeto, e noutros, lembrava-lhe o Rato. Como era lindo. Que imagem soberba, um corpo musculado, forte, de cor de café com leite, a aparecer, nu, por baixo dos lençóis.

O seu rosto encimado por uns caracóis castanhos, mostrava uma barba “mal semeada” que escondia uns lábios cheios que condiziam com uns olhos grande e verdes escondidos agora atrás de pálpebras cerradas por umas pestanas longas e fortes.

Parecia um…Nem sabia bem explicar.

Carmo aproximou-se dele e sentou-se à beira da cama.

- Como é que te vou dizer que tens de te ir embora? – Disse baixinho para não o acordar.

- `Mor?

Ele sentiu-a.

Abriu os olhos e num ápice puxou-a para si, mostrando-lhe a força do seu desejo.

Ela não resistiu. Quem resistiria?

 

 


 

Comentários

Mensagens populares