Amigas Improváveis


         Maria e Rita eram duas mulheres do Norte. Duas mulheres de fibra e teimosia.  Duas mulheres a viver em Lisboa. Duas mulheres com personalidades fortes.
Além destas características pouco mais as unia, não fosse o destino e elas teriam passado pela vida sem se cruzarem, mas o destino é quem manda e neste caso mandou assim. Que elas se encontrassem.

Maria.
Maria era uma mulher de 45 anos, que tendo ficado viúva muito nova viu-se obrigada a criar os filhos sozinha e sobreviver numa cidade onde os costumes e as pessoas eram bem diferentes daquilo a que se habituara a conhecer enquanto crescia além dos montes, entre ruas de lama e casas de pedra. Onde as pessoas eram poucas, mas unidas. Onde a palavra valia mais que o ouro, onde a ajuda chegava quando precisa, mesmo sem ser pedida. Onde uns tomavam conta dos outros. Sentia-se lá bem, era feliz no meio da dura vida que levava, tinha as mãos e os pés frios, mas tinha o coração sempre quente e um sorriso sempre pronto nos lábios que faziam conjunto com uns olhos negros e vivos numa pele queimada pelo vento e pelo sol.
 E foi esse sorriso, ou esse calor do coração, ou os dois que encantaram Manuel que, neto de uma geração já mais lisboeta que transmontana, ali foi passar um verão com os avós.
- Para ver se crescia- dizia o pai.
- Para ver se apanha melhores ares – dizia a mãe.
- Para fugir à rotina – pensava ele.
E para fugir à rotina começou por perseguir Maria quando ela ia à fonte encher o cântaro, ou quando ela passava para ir à mercearia. Ela rejeitava-o. – Querem lá ver que este emproadinho pensa que chega aqui e pode tudo? – dizia para as amigas. E isto atiçava-o, e o que, a princípio, começou como uma diversão, depressa ganhou outros contornos e no final do verão estavam noivos. O casamento deu-se passados 9 meses para que não restassem dúvidas na boca do povo e ela veio viver para Lisboa, para a casa da porteira, pois como o casamento não era de acordo com os pais dele que sempre lhe vaticinaram um futuro brilhante como doutor das leis ou das ciências,( tanto fazia desde que fosse doutor ) e vendo esse futuro desviado por Maria, depois do casamento fizeram como Pilatos, “lavaram as suas mãos” e entregaram-nos ao seu destino. 
Manuel que ainda mal tinha acabado o secundário, foi-se empregar num escritório de advogados e Maria tornou-se porteira do prédio onde viviam. E eram felizes. Naturalmente vieram, depois, os filhos e Manuel teve de arranjar um outro emprego para fazer face às despesas, mas apesar de cansado, andava contente. Demasiado contente. Tão contente que a morte o quis levar com ela (deveria estar aborrecida de não ter amigos) e veio-o buscar numa madrugada, quando Goreti tinha apenas 7 anos, e o bebé 4.

Rita.
Rita era uma jovem. 28 anos, quase metade da idade de Maria. Nasceu em berço de ouro e em berço de ouro viveu e cresceu até que por capricho, diziam uns, ou para se tornar independente, dizia ela, decidiu vir para a grande cidade.  Na verdade, sentia-se sufocada lá em cima onde não podia dar um passo sem que lhe estendessem a mão para a amparar.
Onde não podia usar as roupas que via as jovens da sua idade usarem na internet pois não eram adequadas à sua posição. Onde não podia namorar com um rapaz sem que a família dele fosse aprovada pela sua, onde não podia…
Veio então para Lisboa, decidida a conquistar a sua independência, cheia de projetos na cabeça e sonhos no coração.
Filha única, de pais tardios, foi muito a custo que conseguiu o aval para esta aventura, no entanto teve de ceder a algumas condições. Os pais teriam de lhe escolher a casa e iria trabalhar para a empresa do “tio” Domingues. Claro está que continuou em berço fidalgo, não de ouro, mas de prata, porque aqui em baixo o ouro é caro.
Através das mãos que sempre a ampararam, foi trabalhar para uma firma importante, uma firma grande, mas não muito grande pois assim poderia manter a ajuda/controle que os pais lhe enviavam.

Nos primeiros tempos, o coração de Rita batia desenfreado todos os dias. Não sei se de contentamento por finalmente estar a viver a aventura da sua vida, se por medo, pois encontrava-se pela primeira vez a viver sozinha. E numa cidade como Lisboa!! E digam o que disserem, para quem está habituado a viver rodeado de gente, ver-se assim sozinha no silêncio…não é fácil, havemos de concordar…
Habituada que estava a ser protegida, e apesar de todos os avisos que tivera, era com algum receio que fechava a porta do prédio e se dirigia para a paragem do autocarro que a levaria ao serviço. Eram tantas as pessoas que passavam por ela e lhe gritavam se ela parava sem aviso para ver alguma coisa que lhe chamasse a atenção, que ficava um pouco assustada, mas a sua natureza feliz e despreocupada, fazia com que alegremente seguisse em frente e  fosse para o trabalho e alegremente relatasse todos os acontecimentos do seu dia às suas colegas do departamento, e a quem mais quisesse ouvir.
Ora, Lisboa não é como Sta. Maria da Luz, a terra que a tornara mulher, e sem desprestígio para as pessoas de Lisboa, a verdade é que não se pode, não se deve, contar toda a nossa vida a toda a gente. Isso sabia-o bem Maria, que sendo empregada de limpeza, levava as mãos ao céu e abanava a cabeça de cada vez que Rita contava como não sabia fazer comida e ia comer ao restaurante todos os dias, ou como não sabia por a máquina de lavar roupa a funcionar , ou como quando certa manhã, depois de aprender aquele difícil procedimento, chegara ao trabalho lavada em lágrimas  porque a sua blusa, a sua blusa de seda cor de pérola ficara  às manchas castanhas depois de a por a lavar juntamente com as calças pretas de cetim...
- Fedelha mimada! - dizia para si com desprezo.
Maria que desde nova lutara pela vida sozinha, que comera o pão que o diabo amassou, que passara noites sem dormir, com o estômago vazio, e o cérebro a funcionar tentando descobrir uma maneira de por comida na boca dos filhos, não compreendia, não aceitava que houvessem miúdas,  a quem nunca nada faltara, a chorarem por causa de uma blusa.
- Com tanto dinheiro que tens facilmente compras outra. - Resmoneava baixinho.
- Olha lá! - dizia-lhe várias vezes Odete cujo lugar no departamento tinha sido substituído por Rita. - Se não dás conta do recado aqui em baixo, porque é que não voltas lá para cima e arranjas um lugar na empresa do teu pai? Ele de certeza que não to negaria. Eu se estivesse no teu lugar era o que eu fazia. – E abanava a cabeça com um ar de desprezo.
E Rita que tantas vezes ouviu isto e outras coisas, e sempre se calou porque tinha uma natureza generosa e não gostava de se zangar com ninguém, mas como era transmontana e a paciência esgotara-se, disse-lhe um dia:
- Pois, mas ainda bem que não estás.  Ou talvez não, porque se estivesses no meu lugar continuavas a fazer aquilo que gostavas, em vez de estares atrás dessa secretária a ver relatórios não é verdade? 
E dito isto saiu porta fora deixando uma Odete embasbacado e sem palavras. 
- Sim senhora!! Afinal a miúda tem garras! - pensou Maria que assistiu a tudo enquanto passava lentamente o pano do pó sobre os objetos deixados displicentemente sobre uma secretária onde ainda não estava ninguém.

O tempo foi passando, com Rita a aprender a ser dona de casa e uma boa profissional. Apesar de parecer e de ser um pouco trapalhona nas coisas básicas da vida de casa, a verdade é que era uma miúda esperta e inteligente a quem só lhe faltara a oportunidade de se desenvolver.
 Foi também começando a crescer a conhecer novas pessoas e novos horizontes, mas como o que é genuíno nunca muda, Rita de repente deu - se conta da existência de Maria. Assim, de repente, num impulso, aliás, como tudo na vida da Rita ou não fosse ela uma mulher do Norte.
 E foi num impulso que cheia de boa vontade lhe disse um dia de manhã, quando a encontrou no corredor.
- Bom dia. Tenho lá em casa algumas roupas que já não uso. Ia deitá-las fora, mas ao olhar para si vejo que são capazes de lhe servir. Amanhã trago-lhas está bem?
E dito isto, abriu a porta do gabinete e entrou, sem esperar por resposta, feliz por ter feito uma boa ação. 
Maria ficou parada, de boca aberta, furiosa.
- Mas está fedelha quem pensa que é? Eu não sou nenhum caixote do lixo. Ela que espere pela reposta! - e resmungando empurrou o carrinho furiosamente pelo corredor entrando de rompante no gabinete seguinte. 
-Êh lá, Maria. O que se passa? Acordaste com os pés de fora?
-perguntava-lhe uma secretária que já a conhecia há muitos anos.
- Desculpe menina- respondeu mais calma e apercebendo-se do seu comportamento - foi só sem querer...
- Sem querer...- respondeu outra. - Pareces aquela nova que veio lá de cima. Passa a vida a "fazer coisas sem querer..."
A primeira secretária riu-se. - Nunca vi ninguém como ela. É mesmo uma totó. Acredita em tudo que lhe dizem ... - comentou com ar de gozo.
E continuaram criticando Rita, exagerando o que nela era mais característico. 
Maria ouviu, calada e não gostou do que ouviu. Com o tempo aprendera a aceitá-la melhor. A miúda era um bocado desenfreada, é certo, mas a culpa não era toda dela. Vinha de um mundo diferente, onde não havia maldade. Agora chega aqui e dá com estás víboras, é normal que se atrapalhe - pensava enquanto as outras continuavam a criticar exagerando mais uma vez nas coisas que relatavam de diferente. Mas, nada disse.
Acabou o seu turno e foi para casa. Um andar pequeno, com duas assoalhadas, humilde, mas muito asseado e arrumado, como manda a tradição nortenha.
Encontrou a sua filha deitada no chão da cozinha a espreitar por baixo do lava-louças. Ficou um tempo a observá-la antes de se fazer anunciar.
Deveriam ser da mesma idade, Rita e Goreti, a sua filha, de certo modo eram até parecidas, mais ou menos a mesma altura, o mesmo peso, os cabelos longos e revoltos de ambas, embora a sua filha o usasse quase sempre preso num rabo de cavalo, para não a atrapalhar, enquanto que Rita fazia questão de mostrar o seu solto e sedoso. Em tudo o resto eram o oposto uma da outra quer em feitio, quer no modo de vida.
Suspirou alto.
-Mãe? És tu? - Goreti perguntava sem tirar a cabeça de baixo da pia da loiça. 
- O que fazes aí? Rebentou algum cano?
- Não. Comprei " uma cena" para arrumar as coisas aqui debaixo e estou a montá-la.
Maria sorriu. " Uma cena". Tentou imaginar Rita naquela posição e desatou a rir.
- Aí! Fizeste-me bater com a cabeça.  Assustaste-me. Estás a rir-te do quê? Achas que não sou capaz?

 Sendo a sua filha mais velha, cedo aprendeu a substituir o pai e a ajudar a mãe na criação do irmãozinho. Na escola era ela quem o defendia, e para não sobrecarregar a mãe raramente lhe pedia ajuda para resolver fosse o que fosse. Desenvolvera assim um carácter independente e orgulhoso. Não admitia falhas nem críticas. 
Maria aproximou-se dela e beijou-lhe o "galo" que já se começava a formar -Toda a gente sabe que os beijos das mães curam tudo- 
- Não, estava só a compara-te à Rita lá do trabalho e ao pensar nela aí deitada de chave de fendas na mão deu-me uma vontade de rir enorme.
Goreti riu-se também.
- Mas ela é assim tão atadinha?
Maria parou de se rir e pensou um pouco.
- Não. Ela não é má miúda e até é muito inteligente pelo que oiço dizer aos chefes, mas é muito inocente, muito verde ainda.
-Hum, está cá a parecer-me que gostas dela. – Goreti picou-a.
- Está doida? Ainda por cima quer dar-me roupa que ia deitar fora. Deve pensar que sou um caixote do lixo…
E dizendo isto foi direita ao quarto mudar de roupa, a segunda parte do seu dia, ia continuar…
No dia seguinte, à hora de saída, Rita estava à sua espera à porta, com dois sacos em cada mão.
- Bom dia, dona Maria, quis entregar-lhe isto aqui sem que mais ninguém visse. Não a queria envergonhar. Olhe, tem aqui, separei as camisolas, das calças e das saias. Lavei e passei tudo a ferro. Estão como novas. Espero que goste e que lhe fiquem bem. – Parecia uma miúda a anunciar um grande feito a um adulto. – Consegue levar? – disse ao mesmo tempo que lhe passava os sacos para a mão. – Não precisa agradecer, agora tenho de ir, antes que deem pela minha falta.
Maria não soube o que dizer, aquela miúda era um furacão, mas coitada, parecia tão contente que não foi capaz de lhe levar a mal. Afinal pensara nela, lavara e engomara a roupa, e não queria envergonha-la!? – mas isso diz-se a alguém? – riu-se enquanto caminhava para o autocarro com os sacos na mão.
- “Só me saem duques “- pensava.
Os dias foram-se passando e Rita parecia estar mais ambientada, estava mais reservada, pedia menos desculpas e era menos falada, talvez porque como tudo o que é novidade passa depressa e ela não fugiu à regra. Maria por sua vez começara a ganhar uma certa afeição por ela. Naquele dia em que chegara a casa com os dois sacos de roupa, a sua filha orgulhosa como era, fartou-se de ralhar com ela, de dizer que não precisavam de caridade, e que aquele tipo de roupa pertencia a uma classe a que, felizmente, elas não pertenciam, já Manuel, o seu filho mais novo que herdara do pai o otimismo e generosidade, defendeu Rita fazendo-lhes ver que talvez aquele fosse um gesto de boa vontade, sem a sobranceria que elas lhe estavam a por, e que se elas se pusessem no lugar dela, talvez não achassem assim tão ridículo as atitudes que ela tomava, e virando-se para a mãe recordou-lhe o que ela sofreu quando para aqui veio, rejeitada pelos sogros. As humilhações a que fora sujeita.
- E tu tinhas o pai do teu lado! – exclamou elevando o dedo.
- Baixa esse dedo, que estás a falar com a tua mãe e não com uma colega da escola. - Maria indignou-se. Mas no fundo sabia que ele tinha razão, e a partir desse dia começou a olhar para Rita com outros olhos. Não quero com isto dizer que Maria não se indignasse e se irritasse com algumas das atitudes de Rita, mas era um pouco mais branda nos julgamentos que fazia.
Uma das manhãs, ao acabar o seu turno foi dar com a rapariga fechada na casa de banho. As lágrimas corriam soltas pela face, deixando dois caminhos onde a maquilhagem era removida.
- Então menina, o que se passa? – perguntou espantada. Já a vira passar por muita coisa, mas nunca a vira chorar.



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