Carmo 11

 

Carmo foi para casa a pensar no que a amiga lhe dissera.

Deveria ou não responder?

A curiosidade debatia-se com a repulsa e com a vergonha numa luta feroz. Lutaram durante todo o caminho, roubando-lhe a atenção ao que se passava à sua volta, acabando por vencer, claro está, a curiosidade que de tão forte que era, lhe roía a alma.

Bom, roer a alma, é, claro está, uma figura de estilo, porque, na realidade, o que foi, de facto, roído, e com afinco, foi o chocolate que ela trouxe para reabastecer o stock da dita cadeira!!!

Na verdade, estava realmente curiosa, mais do que o costume e não estava a gostar nada da sensação.

- Carmo Maria! – Falou para si. - O que estás a fazer? Tu sempre criticaste esse tipo de coisas e, agora estás realmente a ponderar fazer isso?! Muda, mas é o rumo dos pensamentos, vai distrair-te e deixa de comer o raio do chocolate. Qualquer dia não cabes nas portas!!!

Animada então de uma fúria que também lhe era conhecida nestas situações, atirou com o pouco que restava do chocolate para a mesa-cadeira e foi buscar o tablet, decidida a eliminar a dita aplicação.

Momentos depois, recostada na cama apoiada entre dois almofadões grandes e fofos, passava o dedo pelas aplicações à procura daquela, quando viu um sinal de mensagem a piscar furiosamente como se tratasse de um farol em noite de tempestade.

Involuntariamente, o seu coração deu um pulo. Deveria lê-la ou apagá-la sem mais demoras? – Perguntava-se indecisa quanto à atitude a tomar.

Mais uma vez, a curiosidade, campeã, resolveu fazer-se valer da sua vitória anterior e Carmo não teve outro remédio, que não o de lê-la. Afinal não viria mal nenhum ao mundo, e ninguém precisaria de saber. – Convencia-a a curiosidade.

- Sim. – Respondia-se naquele debate interior. – Caramba! Era só o raio de uma mensagem. Não iria decidir sobre o destino do planeta. – Ironizou. - Não era preciso tanto dramatismo, iria só ler e depois apagar a aplicação. Estava decidido.

Excitada, carregou no botão com a forma de um envelope. De imediato surgiram no ecrã as seguintes palavras.

- Olá! Sou o António.  Ao que parece, o computador acha que somos compatíveis. Não sei bem o que ele quer dizer com isso, e como tal fiquei curioso. E…tu/Sra. (não sei bem que termo usar, sou novo nestas coisas, como é fácil de se ver…)

Involuntariamente, sorriu ao ler as primeiras linhas. E de imediato, começou a imaginar um homem na casa dos 30, gordo e com caracóis negros a emoldurar um rosto redondo onde uns olhos grandes, castanhos e meigos acompanhavam um sorriso tímido.

Continuou a ler:

E tu? (vou tratar-te por tu, fica mais fácil. Se não gostares diz-me que eu volto ao tratamento respeitoso). Não que este não seja respeitoso… (Sabes isto de não se poder editar as mensagens complica um bocado as coisas…)

Aqui Carmo parou para refletir. Realmente ela tinha lido algures, logo no início, que as mensagens não podiam ser apagadas, nem editadas, e na altura achara piada, mas como não pensara bem no assunto, não medira bem o alcance disso.

- Interessante! – Pensou. – Temos mesmo de pensar bem antes de responder.

Não se apercebia de que já estava “apanhada” pela curiosidade e pela singularidade da aplicação. De tal modo que já decidira ter cuidado ao responder à mensagem que inicialmente iria só ler. Continuou:

Sabes, foi, esta, característica da aplicação, esta e a de não haver fotos, que me espicaçou a curiosidade e me levou a experimentar. Penso, e diz-me se estou errado, que assim somos mais verdadeiros. É claro que podes sempre refletir muito antes de escrever, até porque sabes que assim que escreveres a mensagem será enviada, quer queiras quer não, mas se algum dia entrares num diálogo com alguém, o teu verdadeiro “eu” irá aparecer e poderás fazer, ou não, bons amigos.

Bom estou farto de falar para um ecrã, sem saber se do outro lado vou ou não ter resposta, e que tipo de resposta será. Assim, despeço-me, esperando que tu me respondas e me digas coisas acerca de ti. Ou perguntes coisas acerca de mim. Ou simplesmente digas coisas acerca…de qualquer coisa.

Agora sim, despeço-me respeitosamente, com um beijo 😊.

Carmo leu e releu a mensagem algumas vezes para ter a certeza de que percebera bem o que pensava. Ou melhor para poder pensar alguma coisa como deve de ser, porque na verdade, o primeiro impulso era o de lhe responder, mas depois, lembrando-se daquelas condicionantes, resolveu ficar quieta. Ainda começou uma resposta num documento do word, mas depressa desistiu.

De repente, sentiu-se muito cansada. Os últimos dias tinham sido uma roda-viva de emoções, pelo que resolveu deixar a resposta para o dia seguinte. Com a cabeça fresca responderia melhor. Desligou o aparelho e deitou-se. Iria sonhar uma aventura.

Na manhã seguinte, acordou bem-disposta, mas atrasada para uma reunião que iria começar dentro de vinte minutos com uma cliente importante. Assarapantada com as horas, saltou da cama, e vestindo-se e comendo ao mesmo tempo, agarrou na mala, calçou o segundo sapato, saiu de casa e foi para o elevador.

- Que lento és! – Resmungou para o aparelho que tardava em subir. - Vou pelas escadas e ainda chego primeiro lá abaixo que tu cá acima!

- Carminho? – Dona Maria abria a porta.

- Bom dia, dona Maria. Hoje não posso falar. – Gritou já das escadas. – Estou super atrasada!

Os dias foram passando, o trabalho foi-se insinuando, e o tempo, sentindo-se desejado, fez-se caro e fugiu levando a que as pessoas corressem atrás dele sem que tivessem tempo para ter tempo. 

Era assim com a Carmo, era assim com a Sandra, era assim com o António. Mas não era assim com a Dona Maria, que tendo uma certa idade e estatuto, agarrara o tempo, mantendo-o bem perto de si impedindo-o de fugir. 

E, como tempo era algo que ela tinha, entretinha-se a monitorizar a vida do que lhes eram próximos e que segundo ela não tinham tempo para cuidarem de si. 

Assim, numa cruzada de boa-fé, ela resolveu acrescentar à sua lista de protegidos, o António, que depois daquela conversa se tornara numa pessoa abatida. 

- Boa tarde, António! - Cumprimentou-o sentando-se na mesa junto à janela, onde ritual de beber um chá ao lanche tinha sido instituído dias depois do encontro. 

-  Boa tarde, Dona Maria! -  Retribui-lhe o cumprimento com um sorriso bem-disposto. – O almoço foi bom? 

- Foi, foi. Muito bom. Um bacalhauzinho cozido com grão…Até o Rato se deliciou. 

- A sério? - Perguntou colocando o bule com chá de camomila e uma chávena florida na mesa. - Há gatos com muita sorte! 

- Pois há. – Concordou ela. - Mais sorte que muitos homens. - Frisou a palavra homens e olhou para ele. 

Ele fez-se despercebido. 

- O que vai ser hoje? Meia torrada ou um mil-folhas? - Referia-se ao bolo de pastelaria que era o seu favorito. 

- São de hoje? - Perguntou falsamente altiva.  

- Ó Dona Maria! Está sempre a implicar! – Exclamou Sónia, a empregada que ele arranjara e de quem ela não gostava por sentir que era uma ameaça aos seus planos. No entanto, mantinha sempre a classe, mesmo quando lhe apetecia responder da mesma forma.

- Menina. Eu não implico. Salvaguardo os meus interesses. Sabe bem que muitas vezes é isso que acontece. – Espetou o dedo no ar para ilustrar o que dizia.

Sónia encolheu os ombros e ignorou-a. Não valia a pena, dizia…

António, entretanto, refugiara-se atrás do balcão. O seu telemóvel tinha dado sinal de mensagem e curioso foi ver que era. Ao ver de onde vinha a mensagem a sua cara pôs-se vermelha, coisa que não escapou à Dona Maria.

Discretamente, ela ia bebericando o chá ao mesmo tempo que o observava e era observada pela Sónia de uma forma não tão discreta.

 

 




 

 

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