Carmo 21

 

- Carmo?! – repetiu com a faca empunhada no ar.

Sónia aproximou-se dele e tirou-lhe a faca da mão. “Antes que aconteça uma desgraça “- pensou.

- Sim, a Carmo. Já pensaste nisso?

Ele não respondeu, mas o vermelho que inundou o seu rosto respondeu por ele.

- Porque é que se zangaram? – perguntou de “Chofre”

- Quem é que te disse que nos zangamos? – respondeu ele depressa demais.

- Eu vi. – colocou o dedo indicador no olho naquele gesto mundial que ilustra o espreitar.

- Tu viste… Deixa-te de coisas. Em vez de prestarem atenção ao serviço, prestam atenção às conversas, por isso é que acontecem coisas como aquelas. - referia- se ao café que ela tirara a mais.

- Não mudes de assunto. Estás a querer dizer-me que… que se ela aqui entrasse, falarias com ela como antigamente?

Ele cruzou os braços numa atitude defensiva.

- Pois claro que sim. É uma cliente como outra qualquer.

- E já trocamos umas palavras depois disso – disse baixinho de modo que ela não ouvisse.

- Aaaah! Então quero ver…

- Queres ver o quê? Olha vai mas é lá para fora que já devem ter ido pessoas embora com esta demora. - enxotou-a. – Vai. Deixa-me acabar de preparar o almoço.

Sónia foi e assim que se viu sem ninguém para atender, telefonou a Sandra. Tinha novidades, mas não podia falar ali.

- Combinamos outro almoço? No mesmo sítio? Desta vez, pago eu…– decidiu Sandra.

- Combinado. Segunda feira?  Estou de folga, e posso estar mais à vontade.

Sandra concordou e resolveu passar pelo café para marcar mesa e avisar o Ivo de que daquela vez seria ela a pagar. Ele que se lembrasse disso.

Ivo estava atrapalhado, o café estava cheio, mas sorriu-lhe com um sorriso aberto e depois de combinarem as coisas, disse-lhe à laia de despedida:

- Não se preocupe que eu vou guardar a melhor mesa para si e para a sua namorada.

- Namorada?! – Sandra ficou tão embasbacada que nem respondeu.

Quando tomou consciência do que acontecera e desenvolveu uma resposta para dar era tarde demais. Ivo já estava empenhado numa mesa a espalhar o seu charme. Sandra ainda esperou um pouco para desfazer o engano, e enquanto esperava deu por si a observar as mesas ocupadas. Todas tinham parelhas do mesmo sexo. Seria coincidência ou algo mais?

Incomodada com o que aconteceu, resolveu virar costas e sair. Iria telefonar à Sónia e marcar noutro sítio.

Ele realmente há com cada uma… - abanava a cabeça em tom de reprovação enquanto saía e pegava no telefone.

- Não posso. A sério? – Sónia ria-se a bom rir. – Jura! - pediu.

- Juro. Tu já viste? Nunca me tinha acontecido uma coisa destas!!!

- E o que tem? Poderia bem ser. – Sónia brincou.

Sandra afastou o telefone do ouvido e olhou para o ecrã horrorizada. Estaria Sónia a falar a sério?

- É que nem brinques. – acabou por dizer.

- Não estou a brincar. Quero dizer estou, mas não estou. Não somos namoradas, mas que mal teria se fossemos? – Sónia gostaria de prolongar a conversa, mas não podia. O trabalho e o António chamavam-na. Despediu-se com um “até amanhã no sítio marcado”.

Sandra regressou ao trabalho pensativa. Realmente não tinha da de mal, se pensasse bem, mas por outro lado…

 Só a ideia dava-lhe asco.

Como era isso possível?! Ela que sempre se considerara liberal, e que tinha vários amigos homossexuais, porque é que ficava tão incomodada com uma sugestão destas? Não percebia e isso causava-lhe apreensão.

- O que tens mulher? – perguntou-lhe Carmo ao vê-la entrar sorumbática.

- Nada. – respondeu indo-se sentar na secretária com má vontade.

- Nada. Nada. – Carmo levantou-se do sofá onde estava sentada a ver uns catálogos de novos materiais e foi até à secretária. Colocou as mãos no tampo de modo a ficar de frente para ela.

- Eu conheço-te bem. Saíste daqui toda animada, e agora…

- Agora o quê? – perguntou mal-humorada.

- Agora parece que todos te devem e ninguém te paga. - brincou.

-Oh! – Sandra encolheu os ombros. - Deixa já passa.

Carmo levantou os braços num sinal de rendição e afastou-se.

- Não queres falar, não fales.

Sandra não lhe respondeu e enfiou a cabeça num relatório que tentava, já à alguns dias, analisar.

- Raio dos ingleses- pensou. – Porque é que tem de complicar sempre tudo? Porque é que não fazem como o resto da europa? - questionava-se em vão. - Não consigo perceber nada disto. – disse passado uma horas em que tinha teclado tão furiosamente o computador que só um milagre o livrara se se ter avariado. – desisto.  – explodiu em voz alta.

- É melhor é. – respondeu Carmo aborrecida.

Gostava muito de Sandra. Muito mesmo. Mas as vezes perdia a paciência com as mudanças de humor bruscas e repentinas da amiga. Especialmente nas situações em que não as conseguia perceber! E esta era uma delas.

- Sabes que mais? – Sandra olhou para o relógio grande que imitava um daqueles relógios das estações de comboio do século passado e que estava pendurado na única parede livre de estantes do gabinete de trabalho que as duas partilhavam.

Quando para ali foram cada um tinha o seu. Duas salas contíguas.

Mas passavam a vida a entrar e sair da sala uma da outra até que Rui, um dos estagiários que tinha um irmão arquiteto se lembrou de ideia de partir a parede entre os dois e fazer um só. Amplo e soalheiro, abrindo uma janela de pé entre as duas mais pequenas que cada uma das salas tinham.

A princípio riram-se da ideia e brincaram com o assunto até que este foi sendo falado e falado e acabou por ser concretizado.

Hoje tinham um grande gabinete onde em cada uma das pontas estavam duas secretárias rodeadas por estantes onde figuravam os vários livros que eles tinham impresso e outros à espera de impressão entre outros projetos. Na parede lateral a este estavam 3 janelas, uma grande de pé, ladeada por duas mais pequenas, mas que deixavam entrar todo o sol que conseguiam e que iluminava desde muito cedo até mesmo ao raiar da noite aquele espaço de trabalho acolhedor.

No meio da sala a fazer uma espécie de divisão estava um sofá em S onde os clientes eram recebidos.

À frente de cada curva do S estavam duas mesas baixas quadradas e grandes onde eram colocados os vários portefólios dos vários trabalhos.

As cores do atelier, gabinete, escritório ou sala de trabalho, conforme lhe queiram chamar, variavam entre o branco, o creme e o azul-marinho, ponteadas por pedaços de verde que as várias plantas espalhadas davam à palete de cores.

- Vou-me embora. Amanhã compenso…

Levantou-se e fechou a tampa do computador sem o desligar. Pegou no casaco que tinha atirado de uma forma displicente para o sofá,  colocou a mala ao ombro e saiu batendo a porta com um pouquinho de mais força do que queria.

- Vai, vai. – respondeu Carmo para um porta já fechada.

Sandra chegou a casa e foi ao frigorífico. Abriu-o e a vista que obteve desiludiu-a. Além de uns iogurtes magros que em vão tentava comer, e uma salada que já vira melhores dias, estava vazio.

Resignada, pegou na garrafa de vinho que tinha sobrado do último jantar que fizera lá em casa com uma amiga, foi até à sala e atirando os sapatos para o meio do chão, foi buscar um copo à garrafeira.

Sentou-se no sofá e acendeu a televisão. Procurou demoradamente, pelas várias sugestões de um canal streemio, por alguma coisa que lhe agradasse, sem conseguir encontrar algo.

Via um título que lhe parecia sugestivo, começava a ver, e aborrecia-se. Mudava. Outro titulo, o mesmo processo.  Até que, com os sentidos embriagados, lá escolheu um que passou o teste e começou a ver com alguma atenção. Não chegou, porém, até ao fim. Cansada e vencida pelo néctar que lhe embotou os sentidos adormeceu. Deitada no sofá, sem manta e sem sapatos. Copo caído no chão. Vazio.

Acordou de madrugada, despertada pelo frio, pelo mau estar físico mental. Tinha sonhado que namorava com a Sónia. Ou melhor que tentava namorar, que a perseguia falando-lhe do seu amor por ela, e ela juntamente com a Carmo e o António riam-se e faziam pouco dela.



 

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