Carmo 10

 

Regressada a casa e sentindo-se de repente sem energia, e com uma melancolia do tamanho do mundo, recostou-se na cama.

Com o tablet na mão, e, olhando para as várias aplicações que tinha, pensou que estava na hora de fazer uma limpeza ao aparelho.  Aquela que sempre dizia que devia fazer, que lhe diziam que devia fazer, mas que por um motivo ou por outro, que é como quem diz por preguiça, deixava sempre para depois. Mas hoje seria o dia. Tinha muitas aplicações que não usava e que lhe consumiam a bateria que por esse motivo estava quase sempre em baixo.

E não eram raras as vezes que a deixava em maus lençóis numa ou noutra reunião.

Apagou alguns jogos, entreteve-se com outros, apagou mais algumas aplicações e no meio delas surgiu-lhe uma que desconhecia. 

- Estranho! – Pensou. - Não me lembro de ter instalado isto…

Clicou nela e começou a explorar. Cedo reparou que era uma aplicação de encontros, daquelas em que se mete os gostos e se reponde a questões, e a aplicação através de um algoritmo matemático, encontra supostamente o par romântico ideal de quem a utiliza. Tinha porem uma particularidade, ao contrário das outras, não apresentava fotos. 

Alegava que as pessoas deviam-se conhecer pelo interior e deixar o exterior para o fim.

Claro que mediante o pagamento de uma mensalidade poder-se-ia aceder ao portefólio de quem comunicava connosco. Óbvio!!!

Carmo não se lembrava de a ter instalado, e depois de pensar um bom bocado, calculou que tivesse sido a amiga que o tivesse feito. Quando a Sandra terminara com o Rafa, ou melhor, tinha sido deixada por ele, tinha estado muito em baixo, e para piorar a situação, ele tinha-lhe levado o tablet, pelo que Carmo emprestara-lhe o dela desde que ela se comprometesse a levá-lo para as reuniões.

Agora que se esforçava para pensar, lembrava-se de ela lhe ter dito alguma coisa do género, mas que ela nunca ligara.

Abanando a cabeça em sinal de desaprovação, ia a remover a aplicação, quando uma frase lhe chamou a atenção:

“Descobre o rosto do ser. Vê se te agrada"

- Hã?! – Carmo olhou para a frase sem a compreender. – Quem escreve isto percebe bem de português. – Comentou irónica. E ia a desconectar a aplicação, quando, sem saber ao certo porquê, resolveu pesquisar um pouco.

Clicou no ícone e apareceu-lhe, depois de uma mensagem de boas-vindas, um questionário.  Começou a respondê-lo preenchendo os seus dados.

Nome: Carmo 

Idade: 32

Sexo: Feminino

Depois olhou e arrependeu-se.

Nome: Maria (em homenagem às mulheres portuguesas, pensou)

Idade: 35 (não sabia porque mentia em relação a isto, mas apeteceu-lhe.)

Sexo: Feminino 

Nacionalidade: Portuguesa 

Gosto de: Ler, caminhar, rir e dançar.

As outras perguntas eram como estas, genéricas e pouco davam a conhecer de quem as respondia e a quem as lia, pelo que, quando acabou o questionário, atirou com o aparelho para o lado e adormeceu.  Estava exausta.

 

Uns dias depois, quando a vida estava restabelecida em questões de normalidade e rotina para todos, e ninguém pensava no outro mais do que um relâmpago que surgia como uma tempestade de Maio, inesperada e seca, Carmo recebeu uma mensagem no tablet. Estava numa reunião com uma cliente, pelo que, viu, mas não prestou grande atenção. A cliente era exigente e toda a atenção que ela lhe pudesse dar era pouca.

Já à noite, recolhida no sofá, lembrou-se da mensagem e resolveu abri-la. Era da tal aplicação.  Tinham-lhe encontrado um par. 

Divertida, ela resolveu ir ver quem era.  Clicou nela, e depois de introduzir a sua senha, foi direcionada para um perfil masculino.

- Ao menos isso. – Brincou.

Chamava-se António e tinha 39 anos. Vivia em Lisboa e tal como ela gostava de ler e de passear.  Não dizia mais nada.

- Ora bolas! - exclamou mentalmente. - Isto é realmente muito útil. – Ironizou.

Depois, olhando com mais atenção, viu um ícone que lhe dizia que ele lhe queria enviar uma mensagem. Permitiria? - Perguntava-lhe a aplicação...

- Não! Claro que não! – Exclamou em voz alta e pegando no comando da TV, procurou a sua série favorita. Nada como um bom policial para se distrair…

- Nem acreditas no que me aconteceu! - exclamou Sandra ao almoço, entre duas garfadas de salada.

Carmo olhava para ela e invejava a sua boa forma física e a determinação em manter aquele tipo de alimentação, frugal. Ela era incapaz. Já o tentara muitas vezes, mas a meio da tarde, subiam-lhe uns apetites estomago acima, direitos ao cérebro, e que lhe tolhavam o raciocínio e a obrigavam a comer rudo aquilo que não devia…

Era mais forte do que ela…

- Estás a ouvir-me? – Mais uma garfada de tomate com rúcula. – Nem vais acreditar!

- Em quê? – Perguntou olhando com desalento para a enorme pizza que tinha no seu prato e sentindo-se culpada pelo pecado da gula.

– Eu devia comer só metade…- Tentava-se disciplinar sem resultado.

- Oi! Estás cá?! – Agora era um gole de uma bebida energética de aspeto e sabor repugnantes.

- Estou, estou.  Conta lá. - Uma boa garfada de pizza. Queria lá saber. Nem todos podiam ser iguais.

- Vou ter um blind date. - Anunciou orgulhosa.

- Vais ter o quê? – Outra garfada, desta vez com mais energia.

- Um blind date. Conheci, melhor, vou conhecer um tipo. Vou jantar com ele.

Carmo olhou para ela confusa.

- Queres explicar-te melhor?! Mesmo vindo de ti, isso é muito confuso

Sandra sorriu e fez uma cara cómica.

- É através de uma aplicação, em que podemos conhecer outras pessoas. É uma coisa nova que descobri quando o outro me deixou… Não tem nada a ver com aquelas aplicações de engate conhecidas… - Apressou-se a dizer perante o olhar de reprovação da amiga.

Carmo olhou-a espantada, parando uma garfada a meio do caminho entre o prato e a boca.

- Mas tu estás louca? Tens alguma necessidade disso?

- AI deixa de ser retrógrada. O que é que tem? Vou só jantar com ele. Não é como se fosse casar!!!

- Eu não acredito, Sandra Maria. Foste tu que puseste aquela aplicação no meu tablet não foste?

- Qual aplicação? – Perguntou arrumando os talheres no prato indicando ao empregado que já tinha terminado a refeição.

- Já comeste? – Carmo olhou para o prato dela quase cheio. – Isso era pouco e mesmo assim tu deixas? Vais jantar com ele onde? Na cantina?

Sandra deitou-lhe a língua de fora.

- Qual aplicação?

- A dos encontros. – Olhou para a carta das sobremesas. Resistiria?

- Dos encontros? Não me lembro…

Carmo olhou-a para ver se ela estava a fazer-se de tola, e resolveu dar-lhe o benefício da dúvida.

- Esta! – Mostrou-lhe o tablet.

Sandra pegou no aparelho e abriu a dita cuja.

- Ahhh! Esta! Mas tu já lá foste. E tens um match!

Carmo arrancou-lhe literalmente o aparelho das mãos.

- Calma! Já lhe respondeste?

- Achas?! Claro que não. Não sou doida como tu. – Levantou-se depois de comer a sobremesa. – Vamos.

- Doida ou não vais responder. – Disse-lhe Sandra seguindo-a. – Ou então respondo eu por ti.

Carmo voltou-se.

- É que nem te atrevas!!!





 

 

 

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