Carmo 9

Sentindo-se apanhada em flagrante, a velha senhora vacilou um pouco, mas depois logo se recompôs e recorrendo ao santo António que sempre a livrara dos sarilhos em que se metia, e respondeu com o ar mais natural do mundo.

- Olá, Carminho, vim ver se tinham visto o meu Rato. Aquele malandro fugiu outra vez.

Abanou a cabeça e levantou os braços mostrando impotência perante o facto, ao mesmo tempo que saía do banco e começava a caminhar em direção à porta, não sem antes se voltar para trás e lançar a António aquele olhar.

- Pois fugiu. Fugiu para minha casa. Como sempre. Porque é que pensou que viria para aqui?

Carmo não queria acreditar naquela desculpa, mas, mais uma vez, ela não se descaiu.

- Então, porque…Porque bati à porta e a menina não me abriu. Pensei que tivesse saído, tinha as janelas fechadas… - Deixou no ar a insinuação de que com as janelas fechadas era óbvio que qualquer pensasse o mesmo estando no lugar dela.

Carmo olhou-a desconfiada e António estava boquiaberto com a desfaçatez da senhora.

- Bom, mas ainda bem que tudo está resolvido. – Disse a dona Maria agradecendo mentalmente mais uma vez a Santo António e prometendo acender-lhe uma vela na próxima vez que fosse à missa.

E, avançando de um modo altivo, acercou-se de Carmo, deu-lhe o braço e arrastou-a para longe dali antes que a situação se tornasse mais perigosa.

Já na rua, Carmo, desconfiada, insistia:

- Não percebo, juro que não percebo. Tem a certeza de que veio aqui à procura do Rato?

- Claro que sim querida. Porque outro motivo cá viria? – Mentiu com um à-vontade descomunal. – Até parece que a menina não me conhece. Eu lá sou frequentadora de cafés? – Perguntou-lhe sem na verdade querer saber a resposta. – Então o malandro foi para sua casa? Menos mal, menos mal… - Pensava em voz alta.

- Hum… - Carmo não acreditava, mas sabia que não valia a pena insistir.

Durante o breve caminho falaram de trivialidades e uma vez o Rato devolvido à dona foram cada uma para sua casa, pensar no que tinha acontecido.

Ainda magoada com a situação da conversa com António e com a “pulga atrás da orelha" com a ida da dona Maria ao café, Carmo resolveu enfiar-se na sua concha por uns tempos e voltar à rotina que lhe trazia uma sensação morna de calmaria e segurança.

Assim, empenhou-se mais no trabalho e no resto do tempo fechava-se em casa, tendo o cuidado de evitar a vizinha, e ia andando, nem contente, nem descontente. Ia, como os portugueses gostam de dizer, “indo".

Ora num destes dias, um dia em que ela vinha do trabalho, resolveu, contra o que era costume, ir ao supermercado comprar alimentos para reabastecer o frigorifico e um outro chocolate para reabastecer a mesinha de cabeceira que na realidade era uma cadeira, que pertencera à avó.

Uma cadeira alentejana pintada de branco com aqueles motivos florais típicos do Alentejo, e que colocada ao lado da cama e servia além, de mesa de cabeceira, de cabide para as suas echarpes e chapéus e de suporte para os seus colares.

Estava então a deambular pelo corredor do café, olhando para as múltiplas embalagens, sentido a mistura dos odores que ela adorava, e, ora pegava num, cheirava-o e poisava-o, ora pagava noutro que, depois de cheirar, colocava no cesto, e que dois passos adiante, voltava a colocar na prateleira por ter encontrado outro que lhe parecia melhor.

Na realidade ela tinha uma marca predileta que era presença frequente lá em casa, mas desta vez apetecia-lhe mudar, experimentar algo de diferente, já que não conseguira retirar a rotina aos seus dias, iria introduzir alimentos novos.

Quem sabe não teria uma ideia brilhante?! Afinal o paladar e o odor eram 2 dos 5 sentidos, e estimulando-os…apresentando-lhes novos desafios… Talvez…Quem saberia?!

Era assim que a mente dela trabalhava…

- Esse é muito intenso.  Não sei se vai gostar. - Aconselhou-a uma voz masculina atrás dela.

- Desculpe?! - Virou-se para trás pronta a dar uma resposta à altura de um intrometido quando deu de caras com o António.

- Está desculpada. – Brincou ele.

- António!  - O seu espanto levou-a a falar mais alto do que era costume.

- Olá. – Mais uma vez o sorriso dele iluminou-lhe os olhos, e ela sentiu o corpo a aquecer com o calor que deles emanava.

Sorriu-lhe embaraçada ao lembrar-se do que acontecera.

- Olá, achas?

- Acho. – Respondeu-lhe tirando um frasco da prateleira e estendendo-lho disse-lhe:

- Tens andado fugida. Estás bem?

- Hum, estou, estou. – Respondeu ainda embaraçada.

Pegou no frasco e cheirou-o. Involuntariamente fechou os olhos para melhor sentir o odor e ele, naquele momento, achou que ela era a mulher mais sensual que já tinha visto.

- E tu? – Perguntou uns segundos depois. – Já arranjaste ajuda?

- Já. – Respondeu ele suavemente.

Ela sentiu uma pontada de ciúmes, mas recorreu a todas as suas forças para não o demonstrar e dar um ar casual à pergunta:

- Boa, boa. Estás a dar-te bem com ela? – Colocou o frasco que ele lhe deu no carro, e o outro no lugar.

- Ela? – Ele sorriu. - Quem te disse que era uma ela?

Mais uma vez ela corou de embaraço. Raios! Aquele não era o seu dia. Decididamente!!!

- Eeeeh. Pensei. Porque…Porque é hábito não? A maioria das pessoas que trabalham em cafés são mulheres, a última ajuda que tiveste foi uma mulher, eu nunca te conheci sem uma mulher… - Disse demasiadamente rápido.

- Puxa! – Agora ele ria-se. – Não sei se me sinta ofendido ou elogiado.

Nisto um velhote passou por eles apressado e sem se desviar acabou por empurrar António para cima da Carmo. Os seus rostos quase se tocaram, os seus olhos entraram uns nos outros e as suas bocas puxaram uma pela outra, mas não tiveram força suficiente.

- Desculpa! – Pediu ele passado o segundo de ilusão.

- Não faz mal, não tiveste culpa. – Ela afastou-se também.

- Bem, tenho de ir. – Despediu-se ele.

- Vai. Eu ainda preciso de comprar umas coisas. – Respondeu ela.

Ele ia já no fim do corredor, quando, voltando-se para trás a chamou:

- Carmo!

- Sim? – Ela voltou-se também.

- Porque não passas por lá para veres se a minha ajuda é masculina ou feminina?





 

 

 

 

 

 

Comentários

Mensagens populares