A Viagem

7.30 am. João saiu de casa a correr, literalmente.
Mochila às costas, o pão numa mão e o iogurte líquido na outra. Os degraus, 20 ao todo, desceu-os dois a dois. Assim era mais depressa.
Era assim todos os dias. Um correria louca, para o trabalho, no trabalho, do trabalho.
Uma correia louca na vida, em tudo, no trabalho, na amizade, no amor, na família.
Aquele dia não era exceção.
Entrou no carro, colocou o último pedaço de pão na boca, engoliu -o com a ajuda de um gole do iogurte e jogou a garrafa vazia para o banco do passageiro, onde repousou. Ao lado das outras…
-Tenho mesmo de limpar isto. - Pensou enquanto atirava a mochila para o banco de trás, tendo o cuidado de retirar o telemóvel primeiro. Esse nunca ficava fora da vista, nunca era atirado junto coma as outras coisas.

Era um dos seus bens mais preciosos. Colocou-o no suporte para o mesmo que a mãe lhe oferecera pelos anos, e que estava mesmo ao lado do volante, no seu campo de visão.
- Qualquer dia ainda tens um acidente. - Avisava-o preocupada. Mas João não ligava. Aliás João não ligava a ninguém, era dono da certeza, era dono da razão, era dono do Mundo!!
Ligou o carro e acelerou, a autoestrada não tardaria a encher e ele tinha de se despachar, queria passar as portagens antes das oito horas. Depois desta hora o trânsito era o caos....
Estava a pensar nisto quando o telefone tocou. Era o Rui que já estava no escritório a preparar a reunião que iriam ter daí a pouco e queria esclarecer umas dúvidas antes de os Finlandeses chegarem.
- Podes falar agora? - Perguntou-lhe.
- Claro que sim. – Disse-lhe. - Dá- me só um instante para procurar aqui no drive o documento...
Um instante. Um instante foi tudo o que foi preciso para que aquilo acontecesse.
Após passar a portagem, outro “João “que também corria na vida, por entre a vida, mudou de faixa repentinamente, encaixando-se no espaço mínimo entre os dois dos vários carros que aquela hora corriam para os trabalhos. Colocou-se mesmo à frente deste João, e este João não viu.
Estava a consultar a drive, só por um instante.
E o seu carro enfiou-se por baixo do dele. Rodaram ambos numa dança demoníaca que os levou à perda dos sentidos, à perda dos bens, à perda do instante.
João, o nosso João, acordou no hospital, e por um milagre, sem graves mazelas. Tinha partido as pernas e deslocado a clavícula. O nariz estava em mau estado, a cabeça com um hematoma, vulgo “um galo”, um grande galo!!!
Teria de ficar internado algum tempo e fazer fisioterapia intensa, mas que rezasse e agradecesse muito a Deus, pois fora um autêntico milagre o que lhe acontecera, dissera-lhe o médico.
Ao seu lado, quando acordou, estava a sua mãe. Aflita, aliviada, zangada, preocupada, agradecida.
O seu filho, o seu único filho tinha sobrevivido. E sem graves danos na saúde.
Sentir a mãe lá, ao seu lado, sentada numa cadeira a segurar-lhe a mão, a ajeitar-lhe os lençóis, dias após dia, com um sorriso, um ralho, um afago na testa, foi bom, muito bom. E João reconhecia-o como nunca antes o fizera.
Ela nunca lhe falhava, estava sempre a cuidar dele, a ampará-lo, mas havia coisas que ela não podia, não conseguia resolver, como a culpa.
E lidar com a culpa não era fácil. Nada fácil. Sentir-se responsável pelo acidente, sentir -se parado, sentir-se com tempo para pensar e refletir…
Há quanto tempo ele não o fazia? Era difícil pensar nas coisas, enfrentar as coisas, esperar pelas coisas. Era tão mais simples quando tudo era a correr...
Assim que pode andar com a ajuda de canadianas foi visitar o outro João. Ele estava numa cadeira de rodas. Para ele não haveria recuperação, não haveriam mais correrias, para ele… todos os instantes do mundo.
E fora isto que ele, Paulo (era esse seu nome), lhe dissera quando o nosso João o visitou.
Disse-o sem mágoa ou raiva na voz. Afinal a culpa também tinha sido dele, com a pressa mudara de faixa sem olhar. Estava a ler uma mensagem no telemóvel...
Tudo isto fez-los pensar, fez-los pensar e refletir. ...
Afinal ainda não se tinham esquecido, ainda o sabiam fazer, embora achassem o processo doloroso. Necessário, revigorante, mas... doloroso. Muito doloroso.
João era obrigado a olhar para si e perceber que afinal não era dono do mundo, dono da razão, e mais importante que tudo, não era dono da vida.
A vida.
E finalmente percebeu que o que tinha tido até ali não era “vida”.
Era uma “coisa” sem vida, sem tempo, sem sabor.
Não!!! – gritou para si com uma força que lhe veio das entranhas, uma força que desconhecia.
Não queria isto para si. Iria mudar, iria tomar decisões, iria ter uma Vida.

- Nada acontece por acaso- dizia-lhe a mãe vezes sem conta.
- Nada acontece por acaso - contrapôs João quando a mãe o criticou pela decisão que tomou de mudar radicalmente de vida.


- Vais deixar o teu emprego? - Perguntou escandalizada. - E vais viver do quê?
O seu raciocínio de mãe, de loba, era rápido e acutilante. Teria ele sofrido algum traumatismo craniano? Algum derrame? Alguma trombose?
Tinha de ter sofrido qualquer coisa. O seu ser procurava qualquer alteração física para esta mudança. Alguma justificação palpável e lógica e reversível. Ela precisava de compreender a mudança e não estava a conseguir.
- Eu tenho algum dinheiro de parte. – disse-lhe com resolução. - Posso bem largar o emprego.
- E quando o dinheiro acabar? - insistia ela.
- Também já pensei nisso. Tenho 2 quartos que não uso. A casa está perto da faculdade, vou alugá-los. Há quem viva assim.
- Há quem viva assim??- Ela não queria acreditar no que estava a ouvir.
Olhou para ele, sentado na cama do hospital, já vestido e à espera de que o médico chegasse para lhe dar a alta, e sentiu um aperto no peito.
Aquele não era o seu filho, sempre cheio de vida, de pressa, de garra e de vontade.
Aquele parecia, parecia... Nem sabia o que parecia. Mas não parecia o seu João. Isso ela sabia.
Mas ele continuava com a garra e com vontade, só que estavam direcionados para outro lado, para outro modo de encarar a vida, e isso a mãe não queria ver, não conseguia ver.
A mudança tinha sido grande e como todas as grandes mudanças, era assustadora.
A força recém-descoberta veio para ficar, firme, inabalável.
Era como um choque de adrenalina, muito mais puro e muito mais intenso do que o provocado pela adrenalina da correria anterior, lhe proporcionava.
Sentia que estava a fazer o certo e isso dava-lhe uma calma que lhe dava muita energia…
Saiu do hospital e foi para casa, e alugou os quartos, e foi fazendo a fisioterapia, e foi melhorando e foi conhecendo novas gentes, novas culturas, novas vidas, novas formas de amar, sendo a mais doce, a mais sublime aquela que lhe mostrou a Sandra.
Sandra era uma estudante italiana, de cabelos revoltos, olhos verdes e sardas no nariz que mostravam o seu temperamento fogoso, alegre e rebelde. Filha de mãe portuguesa, tinha vindo para Portugal para tirar um curso de teatro.
Na ideia, trazia um projeto engraçado, inovador.
Queria através do teatro chegar aos jovens, abrir-lhes horizontes, fazê-los pensar sobre os desafios a que estavam sujeitos, as drogas, a violência entre casais, a pobreza, a falta de confiança em si próprios, o bulling cibernético a que estavam sujeitos, a dependência das redes sociais, o não saberem falar, estar uns com os outros, confiarem, expressarem-se.
Faria com eles workshops em que eles representando iriam conhecer-se a si próprios e aos outros. Eles encenariam as peças e levá-las-iam ao palco.
Queria percorrer escolas, hospitais, prisões, lares de acolhimento, enfim, lugares onde sentisse que fazia falta, que faria a diferença.
João apaixonou-se desde logo por Sandra e pela ideia.
- Era isso! – Pensou. - Era isso que queria fazer. – A diferença. -
Mexeram-se. Contactaram o Ministério da Cultura, o Ministério da Juventude, procuraram Camaras, financiamentos, apoios e conseguiram.
Iriam partir dali a seis meses. Iriam correr Portugal e depois se tudo funcionasse, iriam além-fronteiras.
João estava feliz, muito feliz. Sentia que tinha encontrado o seu lugar na vida, o seu par, estava completo, sentia-se Homem. E foi isto que disse à mãe quando se foi despedir dela.
A mãe entrou em pânico. Já quase tinha perdido o seu filho no acidente, aliás, sentia que perdera um pouco do seu filho, pois aquele não era o mesmo, já não precisava dela, já não a acarinhava tanto…
Era o que sentia, e num último rasgo de egoísmo, de amor, pediu-lhe que antes de partir fossem os dois fazer uma viagem à Irlanda. Sempre quisera conhecer aquele país e o pai nunca a tinha levado para fora de Portugal. Nunca tinha tempo para viajar.
-Quando chegasse a reforma. - prometia-lhe.
Mas a morte antecipou-se à reforma e se não fosse agora, se não fosse com ele, nunca iria….


João olhou para ela, para aqueles olhos grandes e meigos e acedeu.
Partiram os dois numa segunda feira de madrugada, chegaram a Dublin de manhã bem cedinho. O frio que os esperava à porta o aeroporto fez a mãe tremer. João abraçou-a e assim juntinhos caminharam em direção ao táxi que os levou ao B&B que tinham reservado. Ficaram no mesmo quarto.
Depois de desfazerem as malas, desceram para tomarem um chá com os donos da casa, um casal de meia idade, com um ar rosado e bonacheirão, muito simpáticos.
- Bom dia. – Cumprimentou-os João. E em inglês:
- Esta é Manuela, a minha mãe. - apresentou-a enquanto a abraçava e lhe fazia uma festa na cabeça despenteando-a.
- Good morning. – respondeu a Sra. sorrindo, são servidos de um chá?
Aceitaram, e enquanto bebiam foram conversando acerca do país, dos locais a visitar e das suas vidas.
Manuela tinha reparado ao longo do caminho nas casas, todas muito juntas, todas muito iguais apenas com as portas diferentes, muito coloridas e pediu ao filho que mencionasse o facto.
O marido, riu-se e respondeu contando que existem 2 lendas que contam esse feito.
A primeira diz que em 1861, a rainha Vitória depois da morte do príncipe Alberto decretou que todas as casas irlandesas tivessem uma bandeira preta como sinal de luto. No dia seguinte, em protesto, um Irlandês pintou a porta de sua casa com uma cor alegre e foi copiado por centenas de Irlandeses.
A segunda diz que como os homens irlandeses voltam quase sempre bêbados para casa, e o facto de as portas terem cores diferentes ajuda-os a encontrar a casa certa.
Isto provocou uma gargalhada geral e foi com esta boa disposição que mãe e filho iniciaram a sua visita pela capital da irlanda. De dia visitavam, museus, parques e jardins. Sempre a pé.
Manuela de manhã preparava umas sandes para o almoço, enchia as garrafas de água ou sumo, e de mochila às costas, partiam em busca da aventura, do conhecimento e do prazer.
À noite, cansados, jantavam nos pubs, e conversavam ao som da música irlandesa e ao sabor de uma Guiness.
Foi num desses pubs, enquanto João se ausentou para ir à casa de banho, que um irlandês se aproximou de Manuela. Ela estava sentada à mesa, perdida nos seus pensamentos, feliz por estar ali com o filho, por estar no seu país dos sonhos e assustou-se quando ele se sentou à mesa de caneca na mão.
-Hello, my flower, may I? – perguntou-lhe.
-Socorro, gritou Manuela para si. Olhou para o homem em pânico. Não percebia o que ele dizia. Onde estava o filho?
- Eu não falo inglês. – disse-lhe, tentando mostrar que não estava interessada na sua companhia.
-Spanish? - perguntou o homem.
Espanhola? Isso não. Os seus olhos encheram-se do brilho da fúria e do orgulho, e abanando o dedo e erguendo a cabeça, disse com orgulho.
- Eu sou Portuguesa.
- Ah, Ronaldo. – disse-lhe ele ao mesmo tempo que levantava a cerveja em sinal de brinde e de respeito.
Sério? Pensou Manuela. Ronaldo? Mas estas homens só pensam em futebol? E de repente riu-se. Riu-se às gargalhadas perante o cómico da situação, perante o cómico da sua situação. Ela aos 50 anos a ser engatada num bar irlandês.
O homem, Jimmy, como veio a saber depois, riu-se também. Gostara daquela mulher. Esperava que o namoro dela com aquele tipo mais novo não fosse coisa séria.
Quem não achou piada foi João que nunca esperou que ao vir da casa de banho encontrasse a mãe em amena cavaqueira com um homem, e ainda por cima irlandês. Aproximou-se com um ar de macho alfa, e colocando a mão sobre o ombro disse-lhe em português.
- Está na hora de irmos. Estou muito cansado.
-Já? – Manuela parecia uma miúda pequena. – Mas está a ser tão divertido. Este é o Jimmy. - apresentou-os.
Cumprimentou-o com um ar fechado, e desculpando-se com o cansaço e com o terem de se levantar cedo na manhã seguinte, pegou a mãe pelo braço levantando-a suave, mas firmemente.
Jimmy também se levantou. Lamentou o facto, mas a vida era assim. As vezes tinha-se sorte, outras não.
O caminho, esse fizeram-no em silêncio. Cada um embrenhado nos seus pensamentos, analisando o comportamento do outro.
Foi Manuela, que já no quarto iniciou a conversa.
-O que foi aquilo. Podes explicar-me? - disse num tom que ele nunca lhe ouvira antes. Num tom de mulher e não de mãe.
Ficou embasbacado. Não sabia o que responder. Não tinha gostado e pronto. E foi o que lhe disse.
Manuela olhou-o. Parecia um miúdo pequeno, assim sentado na beira da cama, pernas cruzadas, cabeça apoiada nas mãos. Aproximou-se dele, segurou-lhe a cabeça entre as mãos e encostando a testa a testa dele disse-lhe:
- Sabes, que além de mãe, sou mulher, não sabes?
Ele levantou o rosto e pela primeira vez viu a Manuela e não a mãe.
E sentiu que podia, que tinha de falar com ela, que tinha de a perceber, que tinha de a conhecer, que tinha de se dar a conhecer.
E ela sentiu que tinha de o conhecer, de se dar a conhecer, de o libertar, de se libertar…
E foi o que fizeram, noite dentro, conversando, rindo, chorando, abrindo os seus seres um ao outro, tão longe de casa. Tão perto do ninho...
Nada acontece por acaso…



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